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O pacto fundamental da Justiça.

Num enfoque processual

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Agenda 01/11/2002 às 00:00

I. Introdução

O objetivo deste artigo é expressar um esboço teórico sobre e a respeito da Constituição como positivação mais elaborada do pacto fundamental dos homens na busca da realização do valor justiça, com especial enfoque à constitucionalização do processo, e seu impacto nos mecanismos que caracterizam o processo como instrumento de exercício da função jurisdicional do Estado em resposta às demandas apresentadas pelos jurisdicionados.

A Poder Judiciário é manifestação do mecanismo unitário de exercício do Poder do Estado, juntamente como o Poder Executivo e Legislativo, expressa o exercício da função judicial como instrumento de distribuição da Justiça, e sendo uma função estatal está subsumida ao princípio de que o seu fundamento é a Constituição, assim, reconhecer-se este princípio elementar, é fundamental para saber que o significado jurídico da Constituição não exclui o seu significado histórico-filosófico, e a partir da construção desta podermos traçar as suas relações com os institutos processuais que exprimem objetivamente um caminho na realização dos valores que a norma fundamental encarna.


II.Configuração da demanda – A Justiça é origem da positivação de garantias constitucionais.

Fundamental na exata compreensão da função estatal da jurisdição é compreender o significado da noção de demanda, pois a percepção do processo como instrumento de realização da Justiça, faz nos preferir o vocábulo demanda como o mais adequado para expressar todo o significante do ato que põe frente ao Estado-juiz o conflito a espera de uma decisão, pois carregado do sentido filosófico-lógico, como lecionado por Benedetto Croce, de que uma resposta supõe como a demanda é formulada, e esta resposta deve ser de acordo com a demanda, sob pena de ser uma falsa resposta, uma ilusão de resposta [1].

O vocábulo demanda, tem a vantagem de alertar que o problema posto ao Estado-Juiz a que se pretende uma decisão sempre deve ser pensado inteiro de questões éticas e filosóficas a que estão indissoluvelmente ligados os fundamentos dos preceitos normativos violados veiculados no processo. Alerta o juiz do seu ofício de aplicar o direito como um instrumento de realização da Justiça, mas sem deixar escapar que é sempre e somente uma resposta a um pedido concretamente formulado, somente podendo ser dada a resposta de acordo com o que foi levado ao seu conhecimento e requerido, ainda que seja para indeferi-lo.

Assim, também, com sua peculiar escrita, Dinamarco, apresenta um conceito técnico de demanda, carregado deste conteúdo filosófico, decorrente de sua visão instrumental do processo, lecionando que a demanda expressa a situação de em juízo pedir a tutela jurisdicional, contendo uma pretensão do sujeito, exigindo a subordinação de um interesse alheio ao interesse próprio [2].

Portanto, o vocábulo demanda além do sentido estritamente jurídico, sistematicamente organizado e usado no direito brasileiro, a exemplo de Barbosa Moreira e Dinamarco, expressando a situação de em juízo pedir a tutela jurisdicional, contendo uma pretensão do sujeito, exigindo a subordinação de um interesse alheio ao interesse próprio, também se apresenta adequado para configurar um pedido jurisdicional, por permitir no seu bojo pensarmos além dos elementos normativo-positivos violados, mas sim, dos significados éticos e valores que sustentam estes preceitos, e que dão na realidade significado ao seu reconhecimento pelo Direito como via de acesso à realização da Justiça, o vocábulo demanda, tem esta força de colocar o problema a ser decidido para além do processo, mas como uma situação da vida, deduzida perante o Estado-juiz.

A demanda espelha claramente que as questões éticas e filosóficas estão indissoluvelmente ligadas às questões dos preceitos normativos violados, portanto, quando o cidadão propõe uma demanda requer ao juízo que cumpra o seu ofício tornando-se imerso no problema, aberto a analisar um problema posto que exigirá uma resposta firme e decidida, não uma ilusão de resposta, fazendo-nos acreditar no direito como um instrumento de realização da Justiça.

II.1.Do contrato fundamental dos homens em busca da Justiça – A Lei como instrumental não pode superar a finalidade.

Na antiguidade clássica o tema da Justiça sempre foi posto em discussão como um assunto que deveria ser colocado em praça pública, na àgora, como o fez exemplarmente Sócrates, assim, a questão da Justiça apesar de ser um tema usualmente colocado como objeto de análise da metafísica, decorrente da necessidade de bases lógicas que ligassem o destino de todos os homens no enredo da vida, mas nem por isso a sua discussão deveria ser algo deixado apenas aos doutos, filósofos, mas deveria ser legada a todos os cidadãos. Característica peculiar do pensamento grego de pensar a ética como vinculada à ética da polis.

Platão nos seus Diálogos, expressando através da figura de Sócrates o modelo do filósofo que sabe do destino da filosofia em colocar em praça pública os problemas vitais do homem, como a Justiça, apesar de, no final da República, inferir que é da natureza do homem perseguir o supremo bem, do qual a justiça é uma das mais destacadas virtudes, aproximando-o da divindade, não deixa de registrar, no Livro II, através de Glauco, uma certa origem contratual da Justiça, decorrente da necessidade dos homens de regularem os seus conflitos de interesses, portanto, deixa bem claro, que as leis sempre surgem a fim de servir o ideal de Justiça perseguido como necessidade humana, portanto, a Lei não é um fim em si mesmo, mas surge como instrumental a este valor que é perseguido pelos homens em suas relações. In verbis:

"Por isso quando os homens cometem reciprocamente injustiça e dela são vítimas, vindo, portanto, a experimentar ambas as coisas, os que não podem esquivar-se de uma nem alcançar a outra consideram mais vantajoso firmar um acordo para não mais serem vítimas de injustiça nem vierem a cometê-la. Desse ponto foi que nasceram as leis e os contratos entre os homens, passando, então, o que é determinado por lei a ser chamado legalidade e justiça" [3]

Perceber as leis como decorrente desta busca dos homens por justiça, exposta por Glauco, onde teríamos uma origem contratual das leis que regem o homem, não substitui a finalidade primeira do contrato, ou seja, realizar-se a justiça, isto significa que as leis nunca podem ser interpretadas em si mesmas, como algo desprendido do contrato fundamental, sob pena de transformarmos o instrumento na finalidade, e não tomarmos o instrumento com meio de alcançar a finalidade, portanto, as leis nunca podem deixar de ser interpretadas como instrumentos para a realização da Justiça, do contrário perdem a sua legitimidade.

Platão deixa clara esta visão também no Diálogo Político, onde procurando solucionar a questão se é possível um governo legítimo sem leis, deixa clara a função pragmática da Legislação, mas aponta a sua fragilidade, e logo que ela sempre deve estar em função de um fim superior, assim, o Estrangeiro responde:

"Ora, é claro que, de certo modo, a legislação é função real; entretanto o mais importante não é dar força às leis, mas ao homem real, dotado de prudência."·

Lembre-se que prudência é uma virtude, assim, não pode o homem se curvar como ser racional a uma legislação que concretize o injusto, ou interpreta-la de tal forma que permita contrariar a sua natureza de ser que busca um fim supremo em sua existência, pois desta forma abdicaria de sua racionalidade. Por isso que Aristóteles apesar de seu método empirista de observação da realidade, não deixa assim como Platão de observar que existe um caráter finalista na atividade humana, assim, que logo no pórtico de sua obra Ética a Nicômaco, no Livro I, afirma que:

"Admite-se geralmente que toda arte e toda investigação, assim como toda ação e toda escolha, têm em mira um bem qualquer; e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem é aquilo a que todas as coisas tendem."

.....................

"Se, pois, para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo e tudo o mais é desejado no interesse desse fim; e se é verdade que nem toda coisa desejamos com vistas em outra(porque, então, o processo se repetiria ao infinito, e inútil e vão seria o nosso desejar), evidentemente tal fim será o bem, ou antes, o sumo bem" [4] (grifo nosso).

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Assim, mesmo no modelo da Justiça Aristotélica definida usualmente como meio-termo entre dois extremos, retirada do Livro V [5] de sua Ética, não pode ser interpretada apenas num caráter matemático simples, como simples proporção aritmética, ou onde seria bastante passar uma espécie de fita métrica imaginária entre determinada situação de conflito e o meio-termo encontrado deste embate seria o objeto a ser entregue aos interessados, realizando-se a justiça. Na realidade a proporção aristotélica serve mais a demonstrar que a Justiça pode ser pensada como algo racional, como o são as operações matemáticas, logo é uma necessidade do homem racional.

De fato, mesmo na ética aristotélica, a Lei como expressão histórica e contingente, o alcance do meio-termo não basta para configurar por meio desta operação a realização da justiça, pois, já no livro II da mesma obra, Aristóteles faz questão de ressaltar que a realização das virtudes, da qual a Justiça é a mais importante, deve necessariamente tomar em conta as particularidades relativamente a nós, ou seja, deve tomar em conta na aferição da justa medida, o meio-termo, principalmente e fundamentalmente considerando o homem, como ser histórico e, portanto, o meio-termo não é uma simples medida que em geral poderá atender a maioria dos conflitos humanos, mas envolve juízos de equidade, pois o legislador não pode contemplar todas as situações da vida, sendo essencial a perquirição do fim último das artes humanas, no caso do direito, ser instrumento de realização da justiça. Logo a Lei sempre deve ser interpretada a fim de realizar a Justiça. Isto pode ser vislumbrado nos seguintes trechos da Ética a Nicômaco:

"Por meio-termo no objeto entendo aquilo que é eqüidistante de ambos os extremos, e que é um só e o mesmo para todos os homens; e por meio-termo relativamente a nós, o que não é demasiado nem demasiadamente pouco – e este não é um só e o mesmo para todos. Por exemplo, se dez é demais e dois é pouco, seis é o meio-termo, considerado em função do objeto, porque excede e é excedido por uma quantidade igual; esse número é intermediário de acordo com uma proporção aritmética. Mas o meio-termo relativamente a nós na deve ser considerado assim: se dez libras é demais para uma determinada pessoa comer e duas libras é demasiadamente pouco, não segue daí que treinador prescreverá seis libras; porque isso também é, talvez, demasiado para a pessoa que deve comê-lo, ou demasiadamente pouco- demasiadamente pouco para Milo e demasiado para o atleta principiante. O mesmo se aplica à corrida e à luta. Assim, um mestre em qualquer arte evita o excesso e a falta, buscando o meio-termo e escolhendo-o – o meio-termo não no objeto, mas relativamente a nós" [6]( grifos nossos).

No livro V, ao tratar da equidade leciona ARISTÓTELES:

"O que faz surgir o problema é que o eqüitativo é justo, porém não o legalmente justo, e sim uma correção da justiça legal. A razão disto é que toda lei é universal, mas a respeito de certas coisas não é possível fazer uma afirmativa universal que seja correta. Nos casos, pois, em que é necessário falar de modo universal, mas não é possível faze-lo corretamente, a lei considera o caso mais usual, se bem que não ignore a possibilidade de erro. E nem por isso tal modo de proceder deixa de ser correto, pois o erro não está na lei, nem no legislador, mas na natureza da própria coisa, já que os assuntos práticos são dessa espécie por natureza."·

O que pode resultar da análise retro é que a Lei na antiguidade sempre foi percebida como instrumento da realização do justo, que era construída como elemento universal e que serve à finalidade humana de realização da justiça, portanto, sempre subordinada esta ao fim, e não o inverso, onde o fim, como bem supremo, a Justiça, tivesse que se curva ao contingente, a Lei, e que, portanto, passível de erro.

Logo, sempre ficou aberto, por que assim deveria ser, o espaço para a atuação do homem virtuoso, que poderia corrigir os erros do legislador, atendendo ao fim da legislação de servir como instrumento decorrente do contrato entre os homens de submeter-se a regras que lhes permitam viver a justiça. Assim, a realização da justiça antes de depender das normas, depende do atuar dos homens com senso de justiça, a qual a norma é apenas um parâmetro. E isto não quer dizer livre interpretação, mas atuação racional na aplicação da lei para a realização do fim racional de realizar a justiça.

Não pode existir justiça onde os homens abdicam de atuar com virtude, deixam de ter o hábito de realizar a virtude, não é por acaso, que Aristóteles constrói uma ética da ação, prática da virtude, não basta querer ser virtuoso, tem de se praticar as virtudes, assim, a realização da Justiça em Aristóteles torna-se coisa de uma sabedoria prática humana, ainda que guiada pela busca do Supremo bem. Exemplarmente:

"A sabedoria prática, pelo contrário, versa sobre coisas humanas, e coisas que podem ser objeto de deliberação; pois dizemos que essa é acima de tudo a obra do homem dotado de sabedoria prática: deliberar bem. Mas ninguém delibera a respeito de coisas invariáveis, nem sobre coisas que não tenham uma finalidade; um bem que se possa alcançar pela ação." [7]

Não pode haver justiça sem homens que não decidam sempre e impreterivelmente praticar a justiça, aplicando as leis de forma a atender a finalidade do pacto fundamental, pretendendo alcançar o bem, liberdade, felicidade, igualdade, enfim, a virtude da Justiça.

Estas premissas, em realidade, de uma origem convencional dos homens na realização desta virtude, a Justiça, podem ser observadas como precursoras das teorias contratualistas, racionalizadas de forma mais sistemática por ROSSEAU, LOCKE, HOBBES, a partir de elementos da natureza humana, mas que se identificam por serem resultado de um racionalismo que procura justificar as instituições sociais por meio racional, não sendo ontologicamente divergentes. Destarte, como destaca AGNES HELLER:

"...a natureza humana não foi nem radicalmente má, nem radicalmente boa, tanto para Hobbes quanto para Rosseau, mas ao contrário maleável, ajustável às necessidades sociais, ou á sua falta. A diferença entre Hobbes e Rosseau está em suas estruturas filosóficas e estilos. Hobbes opera com a simples justaposição do Estado de natureza e Estado civil, enquanto Rosseau faz história sobre a "natureza humana" distinguindo diferentes etapas em seus desdobramento. O estilo de Hobbes é objetivo, cético, equilibrado, enquanto Rosseau alterna entre a ruptura entusiástica e o desrespeito malicioso" [8]

Logo, a convenção fundamental dos homens é representada na norma de que as regras legais são ou devem ser feitas a fim de possibilitar a realização da Justiça, como supremo bem. A realização da Justiça deve ser construída na ação humana de todos os meios possíveis, nos quais se inclui uma atividade interpretativa que desvele nas leis significantes que cumpram esta finalidade. O pacto deve ser sempre mantido, a lei não pode contrariar o pacto que lhe deu origem e legitimidade, a lei não pode legitimar a Injustiça [9].


III.A constitucionalização do processo – legitimação pelo procedimento – as garantias constitucionais do "due process of law" – regras básicas para realização do pacto fundamental dos homens.

Como visto no item anterior, no breve estudo de PLATÃO e ARISTÓTELES e o salto que podemos estabelecer a relação com as doutrinas contratualistas de Rosseau, Hobbes, Locke, é de que as leis são resultado de um pacto fundamental dos homens a fim de realização da justiça, o que vem se consolidar no Estado moderno na idéia do constitucionalismo, onde a Constituição, a Lei Fundamental do Estado, substancializa em termos de direito positivo este pacto.

Destacamos que mesmo na teoria da Constituição Kelseniana, adequadamente definido por Paulo de Tarso Ramos Ribeiro, como o primus inter pares do positivismo jurídico [10], onde é proposta a construção de uma explicação rigorosamente jurídica daquela, excluindo da sua conceituação todo e qualquer elemento que seja estranho à Constituição como instituto jurídico, Kelsen não nega a fenomenologia social da Constituição, como um fenômeno que também têm a sua manifestação natural, pois esta como todo e qualquer outro fenômeno do direito é um elemento social e como tal não pode ser estabelecida uma simples contraposição de natureza e sociedade, pois constituição como norma que regula uma real ou efetiva convivência entre homens, pode ser pensada como parte da vida em geral e, portanto, como parte da natureza, ou pelo menos uma parte do seu ser, situa-se no domínio da natureza, pois têm, neste sentido, uma existência inteiramente natural [11].

Kelsen não se furta apontar, mesmo ante a pureza metodológica de sua teoria, que existe uma relação indireta das normas com a comunidade, refletida pela circunstância de que a conduta normatizada serve ao interesse comunitário ou lesa-o, e isto é decisivo para o fato de que esta conduta se torne objeto de uma norma, e, mesmo no caso dos chamados deveres da pessoa contra si mesma estes são deveres sociais, pois a função das normas é prescrever a conduta de uma pessoa em face de outra pessoa [12].

Destarte, a preocupação com a Constituição de sua teoria não é explicar os elementos desta relação indireta com o interesse comunitário, mas delimita-la como instituto jurídico e livre de todo e qualquer elemento estranho ao direito na sua caracterização. Esta abordagem traz o mote necessário de que tal objetivo somente será possível a partir da obtenção de um elemento ou objeto próprio e específico do Direito e partir deste a construção de raciocínios sobre outros elementos de sua teoria, no caso de nosso estudo a Constituição. Este raciocínio permite a Kelsen perceber a necessidade de obtenção de um paradigma próprio e específico para norte das reflexões de sua teoria pura, e encontra este paradigma na "norma", que ao final será identificada como a norma hipotética fundamental(grundnorm). Nas palavras de Kelsen:

"a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal como a investigação da causa de um determinado efeito, perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se pressupõe como a última e mais elevada. Como norma mais elevada ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento da sua validade já não poder ser posto em questão. Uma tal norma, pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como norma fundamental (grundnorm)" [13]

O próprio Kelsen sabe reconhecer os limites da pressuposição da norma hipotética fundamental, ressaltando que embora seja possível pensar as ordens jurídicas sem pressupor a norma fundamental, como relações entre indivíduos que comandam e indivíduos que obedecem ou não obedecem, lembra que isto é, sociológica e não juridicamente, dado que a norma fundamental, como norma pensada ao fundamentar a validade do Direito positivo, é apenas a condição lógico-transcendental desta interpretação normativa, ela não exerce qualquer função ético-política mas tão só uma função teorético-gnoseológica [14].

Uma interpretação estreita da doutrina kelseniana sobre o significado da Constituição que floriu entre nós, nos fez esquecer que mesmo numa ciência que tenha um critério epistemológico específico, não nos retira a qualidade e natureza humana, portanto, isto não exclui o pensamento do significado de nossas ações, ou seja, o indagar constante sobre a que fim servem estes fundamentos lógicos, no caso do direito, deve refletir sempre o pacto fundamental de realização da Justiça. Ou seja, a pureza do método, não exclui ou é incompatível com a ética que uma ciência humana deve ter, pois o ser desta ciência é um ser por natureza ético, o homem [15].

Registre-se que apesar do pensamento de Kelsen sobre a impossibilidade de uma ontologia da Justiça, como um valor constante e universal, não deixa de registrar um conceito do que seja a Justiça, ainda que como afirma, dentro dos primados de sua epistemologia, não deixe de ser nada mais que um conceito relativo de Justiça. Assim, Kelsen manifesta o que é a sua concepção de Justiça:

"He empezado este ensayo preguntándome qué es la Justicia. Ahora al concluirlo, sé que no respondido a la pregunta. Lo único que pude salvar-me aquí es la compañía. Hubiera sido vano por mi parte pretender que yo iba a triunfar alli donde los más ilustres pensadores han fracasado. Verdaderamente, no sé ni puedo afirmar qué es la justicia, la Justicia absoluta que la humanidad ansia alcanzar. Sólo puedo afirmar qué es la Justicia para mi. Dado que la Ciencia es mi profesión y, por tanto, lo más importante en mi vida, la Justicia, para mi, se da en aquel orden social bayo cuya protección puede progresar la búsqueda de la verdad. Mi Justicia, en definitiva, es de la libertad, la de la paz; la Justicia de la democracia, la de la tolerancia." [16](grifos nosso)

Uma saída desta encruzilhada, nesta busca permanente deste valor, foi buscada pelos homens nas Constituições escritas, através da paulatina inclusão entre as suas normas de determinadas regras processuais, desencadeando o que contemporaneamente se designa por constitucionalização do processo, percebemos este fenômeno como um meio de instrumentalizar mais objetivamente a realização do pacto fundamental.

De fato, a dificuldade em realizar-se o pacto fundamental da Justiça, através de normas substanciais inscritas na Constituição, expressando conteúdos que deveriam ser respeitados e concedidos ao cidadão, estão ligadas fundamentalmente a duas questões principais:

1º. Apontada por Kelsen da impossibilidade de se estabelecer a priori determinados conteúdos que deveriam estar na Constituição Formal, a Constituição Escrita, pois "como forma, pode assumir qualquer conteúdo e que, em primeira linha, serve para a estabilização das normas que aqui são designadas como Constituição material e que são o fundamento de Direito positivo de qualquer ordem jurídica estadual" [17];

2º. O fato de os valores como expressão dos sentimentos humanos estarem sujeitos a constantes variações de significado, de acordo com os diversos ambientes culturais da humanidade.

Assim, nesta encruzilhada o caminho que se apresentou como o mais adequado de se avançar na realização do pacto fundamental ou que pelo menos tem parâmetros mais objetivos foi justamente inserir nas Constituições determinadas garantias processuais fundamentais, permitindo assim, que os homens pudessem sempre exigir que determinados procedimentos fossem necessariamente observados para que se considere legítima a supressão da liberdade, patrimônio, igualdade, legitimando, portanto a ação do Estado na definição dos conflitos. É o que Luhmann designa de legitimação pelo procedimento, que se exprime como um modo muito especial de realização do valor do justo numa sociedade de alta complexidade.

Este enfoque crescente é que deu importância vital nas sociedades atuais ao Direito como técnica de controle social muito superior a existente em outras épocas históricas, assim, como se destaca cada vez mais a função dos tribunais como instituição fundamental dentro do contexto de uma sociedade em conflitos cada vez mais variados, portanto, cada vez menos previsíveis, onde, os mais estáveis são em geral as regras do processo, que regulam a atuação da função jurisdicional na solução dos conflitos, justificando, portanto, a sua constitucionalização, pelo menos os seus princípios básicos, como resposta positiva a esta necessidade de manutenção do pacto fundamental.

Destarte, isto inclusive explica na história recente do constitucionalismo brasileiro o porque da necessidade da Emenda Constitucional 32, vedar expressamente a possibilidade de edição de Medidas Provisórias em matéria de direito processual penal e processo civil (art. 62, I "b" da CF), entre outras matérias, justamente que este instrumento legislativo vinha sendo usado de tal forma exacerbada pelo poder executivo nos referidos temas, que vinha pondo em risco justamente esta previsibilidade das regras do jogo, apontando num claro rompimento do pacto fundamental, colocando os cidadãos em franca insegurança, por desconhecer a cada dia as regras que poderiam regular os conflitos a que demandavam no judiciário, especialmente contra o poder público. Por isso, é que Raffaele de Giogi não titubeia em destacar a função do direito como técnica de imposição de um modelo de ação e a jurisprudência como uma tecnologia social. [18]

Na Teoria da Sociedade de Niklas Luhmann [19] os interesses protegidos ou tutelados pelo direito, não são apenas fenômeno jurídico, mas fenômeno processado pelo direito, o qual, mediante o seu código próprio e específico, torna possível a maior estabilidade na solução dos conflitos envolvendo interesses humanos.Logo esta "solução" terá tanto mais legitimidade quando ao ser submetido o conflito a uma decisão dos tribunais, obedeça a certas regras básicas próprias do atuar judicial, tornando os conflitos passíveis de uma decisão justa, ou seja, de acordo com os ditames do direito positivo.

A teoria da Sociedade de Luhmann ensina que o sistema jurídico é "autopoético" no sentido de que produz e reproduz as suas características a partir de um código próprio e específico (Direito/Não Direito; Legal/Ilegal; Recht/Unrecht).Possuindo, desta forma, autonomia em relação ao entorno (ambiente), mas isto não exclui a interdependência deste sistema com outros sistemas especialmente com o Sistema Político, que opera sob um código próprio e específico (Maioria/Minoria; Governo/Oposição; Excluídos/Incluídos).

Destaca-se, que a autonomia de cada sistema em relação a outro, ao mesmo tempo em que cresce a sua diferenciação leva a maior interdependência. Em termos de Teoria da Sociedade, o direito é uma rede de inclusão, ou seja, o meio pelo qual se podem solucionar determinados conflitos existentes na sociedade. No caso da constitucionalização do processo as garantias do contraditório e da ampla defesa, representam o meio mais seguro, no presente momento histórico, para se aferir mais objetivamente a legitimidade de determinada decisão, ou seja, se ela se inseriu dentro do pacto fundamental de realização da Justiça.

Podemos sintetizar todo pensamento exposto, casando o pensamento de Luhmann com a noção do pacto fundamental dos homens na realização da justiça, concluindo que nas sociedades modernas:

As irritações estabelecidas pelo ambiente - originárias do contrato fundamental da realização do valor Justiça sempre presente nas sociedades humanas - com o sistema jurídico, compreendido como técnica social, sem violar o método próprio deste e sua função de estabilização da contingência dos conflitos, o que em tese permite a possibilidade de que várias soluções sejam oferecidas a uma demanda, devendo uma ser escolhida como a melhor pela função judicial, têm o pressuposto básico de que qualquer decisão só será legítima se realizar ou atender ao escopo da Justiça, e qualquer decisão somente poderá atingir minimamente este escopo se for resultado de um processo que observe sem mácula as regras constitucionais do contraditório e da ampla defesa, expressas na moderna cláusula do "due process of law".

III.1. O Direito Brasileiro e o pacto fundamental – Densificação das premissas

Como se pode observar do descrito, o direito brasileiro inscreve-se perfeitamente no norte apontado, sendo que uma regra básica do "due process of law", está sintetizada nas regras do Art, 5º, LIV [20] e LV [21] da Constituição Federal, sem esquecer dos incisos LIII [22], LVI [23] todos do referido artigo, e outros preceitos de ordem processual previstos na Constituição.

E dentro do prisma posto, este conjunto de regras expressa o fenômeno de constitucionalização do processo, como normas derivadas do pacto fundamental de realização da justiça, e que serve de um norte objetivo à garantia de manutenção do contrato original, logo seria uma contradição no sistema existir qualquer norma que violasse estas garantias, e, portanto, deve haver uma necessária interpretação teológica das normas deste a fim de manter sua integridade.

Por isso é que sempre houve espaço no direito para uma teoria das nulidades, em geral fazendo a doutrina a distinção clássica ente Atos Inexistentes, Atos Nulos e Atos Anuláveis, por exemplo, no direito comparado é clássica a lição sobre este tema de COUTURE [24]. Isto também explica a produção de doutrina de qualidade sobre a chamada "flexibilização" da coisa julgada, partindo da premissa que determinados valores constitucionais de ordem substancial como moralidade, legalidade e até mesmo a justiça como um valor substancial devem ser sobrevalorizados sobre o instituto da coisa julgada, permitindo a revisão de julgados quando estes fossem frontais a estes valores, como é o caso de artigo do Ministro do Superior Tribunal de Justiça José Augusto Delgado [25], mesmo quando ultrapasso o prazo do juízo rescisório, ainda destacamos artigo do Professor Cândido Rangel Dinamarco [26]. Permitindo-se, com coerência que mesmo determinados "dogmas" do direito processual, possam ser enfrentados concretamente e "flexibilizados" ou "relativizados" em prol do escopo maior, sem quebra de unidade do sistema, de realização do pacto fundamental [27].

Sobre o autor
Ibraim José das Mercês Rocha

advogado, procurador do Estado do Pará, mestre em Direito pela UFPA, secretário do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública no Pará, ex-diretor do departamento jurídico do Instituto de Terras do Pará (ITERPA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Ibraim José Mercês. O pacto fundamental da Justiça.: Num enfoque processual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3524. Acesso em: 24 dez. 2024.

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