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Considerações acerca dos crimes de porte ilegal de armas e receptação

Agenda 01/01/2003 às 00:00

Sumário: 1. Introdução; 2. Acerca do crime de receptação; 3. Porte ilegal de arma e receptação; 4. Possibilidade de incidência autônoma da modalidade "adquirir" da Lei 9437/97(?); 5. Competência para processamento e julgamento; 6. Conclusões.


1. Introdução

Não é novidade que nossa produção legislativa-penal é dessincronizada e confusa; o exemplo mais recente é a lei dos juizados especiais federais (lei federal n. 10259/01). A par disso, a falta de cuidado técnico na aplicação da norma pelos operadores menos avisados (iniciando na Polícia, passando pelo Ministério Público e, enfim, defluindo no Judiciário) deixa passar detalhes que influem drasticamente no tratamento jurídico de situações de reprovabilidades jurídicas distintas, tornando por equiparar sua reprimenda. Tal atitude colide frontalmente com os princípios constitucionais da isonomia, da individualização da pena, dentre outros, resultando numa prestação jurisdicional falha e passiva de severas (e justas) críticas por parte da sociedade.

A relativamente recente lei federal n. 9347/97 (e demais normas congêneres) tem seus méritos, mas sua operacionalização merece reparos. Entretanto, não é esse o foco da nossa análise; portanto deixaremos de abordar esta perspectiva. Preocupamo-nos com o tratamento dado ao crime de porte de arma de fogo, quando a aquisição da arma não é idônea; até porque os crimes envolvendo armas devidamente cadastradas no SINARM são, em tese, de mais fáceis elucidação, processamento e julgamento.

É certo que existe possibilidade de haver concurso de crimes entre porte ilegal de armas e outro(s) de natureza jurídica diversa (v.g., porte ilegal de arma e corrupção ativa, ou furto etc). Por outro lado, também é certo que existe hipótese de conflito aparente de normas entre alguns dispositivos (v.g., art. 242 do ECA)1. Entretanto, deparamo-nos com uma situação de impasse: o fato de o art. 10 da Lei de Armas também descrever, em seu tipo, a modalidade "adquirir", admitiria a incidência de outra norma penal incriminadora que também apresenta tal núcleo em seu tipo (como a receptação, por exemplo), aplicada em concurso de crimes? Se positiva a resposta, qual seria o tipo de concurso de crimes? Tentaremos esclarecer estas questões.

A pergunta acima (acerca da possibilidade de concurso de crimes entre receptação e porte ilegal de armas) foi trazida intencionalmente nestas considerações. Nosso objetivo é sedimentar esta idéia, tentando ampliar a visão do operador do Direito, para que a aplicação das disposições que se referem ao tema não fique aquém do necessário, sempre primando pela mais acurada técnica jurídica. Certo é, portanto, que, se uma arma não foi adquirida de forma lícita, tal circunstância não deve ser visualizada tão-somente no campo da dosimetria da pena2, mas também em sua tipificação penal, dado que, como veremos, existe disposição a respeito (v.g., Tício compra uma arma, registrada-a, mas decide portá-la sem deter a devida autorização para tal; já Caio adquire uma arma – com o número de série raspado – numa mesa de bar, de pessoa que nunca tinha visto, e passa a portá-la); note-se que a lesividade e a reprovabilidade das condutas são sensivelmente diversas, merecendo, por isto, tratamentos legais diferenciados entre si. Passemos, então, à análise do tema.


2. Acerca do crime de receptação

Para que visualizemos melhor a já mencionada hipótese de concurso de crimes, analisaremos, em primeiro lugar, o delito de receptação. As condutas típicas deste crime estão descritas no art. 180, caput, parágrafos primeiro e terceiro, do Código Penal; os demais dispositivos (parágrafos segundo, quarto, quinto e sexto, do mesmo artigo, são figuras extensivas). Os núcleos principais são: adquirir, receber, transportar, conduzir e ocultar. O bem jurídico tutelado é a propriedade de bens móveis. Para a configuração da receptação, não importa o nomen juris ou a objetividade jurídica do crime antecedente (v.g., se furto, roubo, apropriação indébita, peculato etc). Por ser crime comum, qualquer pessoa pode ser sujeito ativo3. O fato anterior deve ser crime (intepretação stricto sensu); se for contravenção, não se configura receptação; nada impede que o crime anterior seja receptação4. "A absolvição do autor do crime que é pressuposto não impede a condenação do receptador"5 (salvo se for baseada na inexistência do fato ou se o fato não foi considerado ilícito), assim como a "extinção da punibilidade pelo crime antecedente"6.

"Delito parasitário, sustenta uma extensa rede de ladrões, assaltantes, falsários, traficantes e delinqüentes juvenis. Não se esquecendo de que a receptação atinge também, de forma secundária, a própria Administração da Justiça, uma vez que prejudica a ação da autoridade na apuração do crime antecedente (...) tornando mais difícil a apreensão de bens patrimoniais subtraídos (...) o que eleva o custo social do delito"7

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O art. 180 descreve três modalidades distintas; dolosa (direta) – caput; dolosa (eventual) – parágrafo primeiro; e culposa – parágrafo terceiro. "Os três casos, tratando-se de elementos do tipo (os dois primeiros, subjetivos; o terceiro, normativo), apresentam uma graduação da censurabilidade da conduta (escala normativa, partindo da forma típica mais grave ("sabe"), passando pela intermediária ("deve saber") e descendo à menos reprovável ("deve presumir-se")."8 A modalidade dolosa direta pode ser própria (quando se sabe que a coisa é produto de crime) ou imprópria (quando se influi para que terceiro de boa-fé adquira coisa produto de crime). A tentativa somente não se admite na modalidades dolosa imprópria e culposa.


3. Porte ilegal de arma e receptação

Antes de prosseguir, necessário se faz definir a hipótese que será o paradigma de nossa análise; utilizemos a mencionada há pouco ("Caio adquire uma arma – com o número de série raspado – numa mesa de bar, de pessoa que nunca tinha visto, e passa a portá-la").

Visualiza-se, no exemplo descrito, que a aquisição da arma foi realizada desprovida do dever objetivo de cuidado de aferir sua idoneidade, dada a natureza do objeto comprado, bem como a condição de quem o vende, já que é de conhecimento público que a única maneira legal de se adquirir arma de fogo é através de procedimento específico (registro9), na Secretaria de Segurança Pública (admitindo-se a mediação dos estabelecimentos comerciais do ramo).

Para dissipar eventual dúvida acerca de suscitação de conflito aparente de normas10 (situação que ocorre quando um fato aparentemente se adeqüa em mais de um tipo penal), traçaremos alguns comentários. No segundo exemplo dado no parágrafo anterior, a lei de porte ilegal não contem os elementos típicos da receptação, nem descreve elementos especializadores11 (restando afastado o princípio da especialidade); nem o crime de receptação é meio necessário, fase normal de preparação ou execução do crime de porte ilegal de arma (afastando-se o princípio da consunção); bem como os referidos tipos incriminadores cuidam de objetos jurídicos diversos12 (excluindo-se o princípio da subsidiariedade); assim como as condutas ora estudadas podem ser aplicadas de forma autônoma (como veremos adiante), até porque admitem incidência em núcleos variados (espancando o princípio da alternatividade). Inclusive, a matéria é tranqüila nos tribunais superiores. Vejamos:

"(...) PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO, OBJETIVO, ACRÉSCIMO, CRIME, RECEPTAÇÃO, CARACTERIZAÇÃO, CRIME AUTONOMO, CONCURSO DE CRIMES. (...) Porte ilegal de armas e delito de receptação são infrações autônomas. Portar arma de fogo sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar não implica que o paciente não responda ao delito de receptação caso seja efetivamente provado que a arma, portada ilegalmente, tenha sido adquirida como produto de crime." (STJ, HC 17343/RJ, Quinta Turma, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 25/02/2002 PG:00416) (grifos nossos)

Percebe-se, no exemplo estudado, a possibilidade de se dissociar as condutas típicas, apesar de o agente praticar ambas incontinenti; o agente adquire a arma e passa a portá-la; poderia tê-la inicialmente adquirido, apenas pagando o preço combinado (praticando a receptação), e convencionando a transferência da posse noutro momento (quando praticaria o porte ilegal). Portanto, se os envolvidos fossem surpreendidos antes da entrega da arma, não haveria a incidência no porte ilegal. Desta forma, a modalidade de concurso de crimes que atinge a situação-hipótese é o cúmulo material (art. 69, caput, Código Penal).

Portanto, a tipificação jurídico-penal para a conduta inicialmente proposta é art. 180, § 3º, do Código Penal e art. 10, caput, da lei federal 9437, combinados com art. 69, caput, do Código Penal. Saliente-se que o fato de a arma encontrar-se com o número de série ilegível ("raspado") não importa na incidência automática do art. 10, § 1º, da lei 9437/97; para tanto, necessária constatação da vinculação do agente à conduta de raspar o tal número13, sob pena de responsabilização objetiva (inadmissível em nosso sistema jurídico-penal).

Ademais, pelo princípio da proporcionalidade das penas, não poderia ser diversa a solução, dado que se assim não fosse, a primeira situação seria apenada (in abstrato, inclusive) igualmente à segunda; o que significaria um incentivo à prática de citados crimes14.

Aprofundemos mais. Nem toda aquisição ilícita será receptação. Se alguém furta uma arma (independentemente da idoneidade de sua aquisição prévia), e passa a portá-la, este responderá por furto em concurso com porte ilegal de arma, já que o fato de subtrair despreza a idoneidade da procedência do bem; o que o agente quer é a posse da coisa, independentemente da vontade do antigo possuidor de transferi-la. Portanto, como não há transferência voluntária, mas sim apoderamento, configura-se o furto. Aprofundemos mais ainda. Seria possível um furto de uma arma não configurar porte ilegal desta?! A resposta é positiva. Imagine-se um larápio que adentra numa residência e subtrai algumas caixas, sem saber o que estas guardam, onde numa delas contenha uma arma. A ausência de conhecimento sobre a arma afasta a incidência do porte ilegal; dado que, como a objetividade jurídica do crime de porte é a incolumidade pública, e como o agente não sabe que transporta uma arma (o que poderia enseja uma possibilidade de uso), aquela não foi abalada; ademais, não existe previsão típica de porte ilegal na modalidade culposa.


4. Possibilidade de incidência autônoma da modalidade "adquirir" da Lei 9437/97(?)

Então, pergunta-se: o núcleo "aqduirir" fora inserido, pelo legislador, de forma inútil, não podendo ser aplicado de forma isolada? Seria mais uma excrescência legislativa? A resposta afigura-se negativa. Haverá incidência nesta modalidade exclusivamente quando o agente tiver certeza de que a arma não foi produto de crime15 (v.g., quando alguém compra uma arma que, apesar de registrada pelo vendedor-proprietário, não poderia ser vendida sem o devido trâmite administrativo da transferência da propriedade, na Secretaria de Segurança Pública). Desta forma, a adequação típica na modalidade "adquirir" ocorre desvinculada de qualquer outra descrita no tipo do art. 10 da lei 9437/97, bem como divorciada do tipo do art 180 do Código Penal.


5. Competência para processamento e julgamento

Com o advento da lei federal n. 10.259/01, o conceito de infração de menor potencial ofensivo (enunciado na lei federal n. 9099/95) foi estendido para os crimes onde a pena máxima, cominada in abstrato, é de dois anos, ou multa (aplicando-se, extensivamente, aos Juizados Especiais Estaduais16); desta forma, o juízo competente para o processamento e julgamento do crime de porte ilegal de arma passou a ser dos Juizados Especiais. Entretanto, tendo em vista que os crimes, na hipótese ora estudada, são ligados pelo concurso material (como já vimos), a pena aplicada ultrapassa o parâmetro legal já mencionado, bem como ocorre conexão (art. 76 e 78 do Código de Processo Penal), passando o processamento e julgamento dos referidos delitos para a competência do juízo comum17.

Dependendo da titularidade da propriedade do bem móvel, o processamento e julgamento dos referidos crimes tanto poderá ser efetivado pela Justiça estadual, como pela federal (neste último, conforme art. 109, IV, da Constituição Federal).


6. Conclusões

Vimos, portanto, que é possível haver cumulação de crimes entre porte ilegal de armas e receptação, tendo em vista que tanto o tipo do art. 10 da lei 9437/97 como do art. 180 do Código Penal, são de conteúdo variado ou misto, podendo incidir cada qual em núcleo distinto, além de que as objetividades jurídicas de ambos são diversas. Portanto, nas situações que trouxemos, não há conflito de normas entre os crimes de receptação e porte ilegal de arma (na modalidade "adquirir"), dada a viabilidade de sua co-existência. A modalidade de concurso de crimes poderá variar, dependendo da situação; mas, no momento da aquisição (ponto central de nossa análise), o cúmulo será material, tendo em vista a possibilidade de dissociação entre as condutas. Vimos que nem toda aquisição ilícita configura receptação, dado que é a intenção da aquisição que indicará a incidência ou não. Vimos também que a modalidade "adquirir", no tipo do art. 10 da Lei de Armas, não foi criada inutilmente, pois existe hipótese(s) de incidência isolada, sem acarretar concurso com o crime de receptação. A competência para o processamento e julgamento destes crimes é do juízo comum, dado que o crime mais grave passa a determinar o rito processual (ordinário, no caso em tela, o que afasta o rito sumariíssimo, dos Juizados Especiais Criminais, em razão da conexão).


Notas remissivas e referências bibliográficas

1 – No entendimento de Fernando Capez (Arma de Fogo: Comentários à Lei n. 9437, de 20-2-1997, São Paulo: Saraiva, 1997), tal dispositivo somente se aplica quando houver fornecimento, venda ou entrega de arma branca, de arremesso, munição, ou gás tóxico (ou asfixiante) a menor. Nas demais situações, aplica-se o art. 10 da lei 9437/97.

2 – Art. 59, Código Penal.

3 – Em determinadas circunstâncias, até mesmo o proprietário da coisa poderá ser autor de receptação. O exemplo é de Damásio de Jesus (Direito Penal - v. 2. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995): "(...) sujeito realiza contrato de penhor com terceiro, entregando-lhe como garantia um relógio ao credor, que venha a ser furtado. Imagine que o ladrão ofereça o relógio ao credor, que imediatamente percebe ser de sua propriedade. Com a finalidade de frustrar a garantia pignoratícia, o proprietário compra, por baixo preço, o objeto material."

4 – JESUS, Damásio E. de. Direito Penal - v. 2. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995

5 – Neste sentido, TAMG, RJTAMG 28/369; e TACrSP, RT 508/382.

6 – JESUS, Damásio E. (op. cit.)

7 – JESUS, Damásio E. de.Furto, roubo e receptação, São Paulo: Paloma, 2001

8 – JESUS, Damásio E. (op. cit.)

9 – Exige-se às armas de fogo, assim como aos veículos automotores – onde a transferência é operacionalizada através de procedimento no DETRAN – que qualquer alteração na propriedade seja procedida a registro. A ausência de tal documento denota a presunção de procedência ilícita.

10 – JESUS, Damásio E. Direito Penal - v. 1. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995

11 – JESUS, Damásio E. (op. cit.)

12 – No porte ilegal, a incolumidade pública; na receptação, o patrimônio. Funções teleológica e individualizadora do bem jurídico; a primeira condiciona o sentido e alcance dos tipos penais à finalidade de proteção de certo bem jurídico. Já a segunda serve como critério de medição da pena, levando-se em conta a gravidade da lesão (PRADO, Luiz Régis. Bem jurídico-penal e Constituição, 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997).

13 – Sobre a incidência do art. 10, § 3º, I, lei 9437/97, ver MENDES, Érico Vinicius. Arma de fogo com numeração alterada ou suprimida. Jus Navigandi, jun. 2000. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=1036>.

14 – Assim como ocorreu entre o uso de arma de brinquedo ou real para cometimento de crimes; a pena era a mesma. Sobre o assunto, ver GOMES, Luiz Flávio. STJ cancela súmula 174: arma de brinquedo não agrava o roubo. Jus Navigandi, jan. 2002. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=2561>.

15 – Dado que, se já houver dúvida acerca da idoneidade da procedência (falta do dever objetivo de cuidado), já haverá incidência no art. 180, § 3º, do Código Penal.

16 – Sobre a extensão do conceito de infração de menor potencial ofensivo, e aplicação aos Juizados Especiais Estaduais, ver SILVA, Danni Sales. Novas interpretações da Lei nº 9.099/95, ante o advento da Lei do Juizados Especiais Criminal na Justiça Federal (Lei nº 10.259/01). Jus Navigandi, fev. 2002. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=2716>.

17 – Enunciado n. 10 do Fórum Permanente dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais – Havendo conexão entre crimes da competência do Juizado Especial e do Juízo Penal Comum, prevalece a competência deste último.

Sobre o autor
Felício de Lima Soares

promotor de Justiça

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Felício Lima. Considerações acerca dos crimes de porte ilegal de armas e receptação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3589. Acesso em: 23 nov. 2024.

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