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A teoria da empresa no novo Código Civil e a interpretação do art. 966.

Os grandes escritórios de advocacia deverão ter registro na Junta Comercial?

Agenda 01/01/2003 às 00:00

Ao positivar a teoria da empresa, o novo Código Civil passa a regular as relações jurídicas decorrentes de atividade econômica realizada entre pessoas de direito privado. Evidentemente, várias leis específicas ainda permanecem em vigor, mas o cerne do direito civil e comercial passa a ser o novo Código Civil.

O novo Código Civil, na Parte Especial, trata no Livro II Do Direito de Empresa. Esse Livro II, por sua vez, está dividido em quatro títulos: Título I - Do Empresário, Título II - Da Sociedade, Título III - Do Estabelecimento, Título IV - Dos Institutos Complementares.

A teoria empresa está em oposição à teoria dos atos de comércio, que fora adotada pelo Código Comercial de 1850.

Em linhas muito gerais, de acordo com a teoria dos atos de comércio, parte da atividade econômica era comercial, isto é tinha um regime jurídico próprio, diferenciado do regime jurídico de uma outra parte da atividade econômica, que se sujeitava ao direito civil. Isso significava dizer que certos atos estavam sujeitos ao direito comercial e outros não. Os atos de comércio eram os atos sujeitos ao direito comercial; os demais eram sujeitos ao direito civil. Ou seja, atos com conteúdo econômico poderiam ser civis ou comerciais. Na verdade a questão não era tão simples, pois a doutrina não conseguia estabelecer exatamente um conceito científico do que seria o ato de comércio, sendo mais fácil admitir que ato de comércio seria uma categoria legislativa, ou seja, ato de comércio seria tudo que o legislador estabelece que teria regime jurídico mercantil.

A teoria da empresa não divide os atos em civis ou mercantis. Para a teoria da empresa, o que importa é o modo pelo qual a atividade econômica é exercida. O objeto de estudo da teoria da empresa não é o ato econômico em si, mas sim o modo como a atividade econômica é exercida, ou seja, a empresa, com os sentidos que veremos adiante.

O art. 966. define o que seja empresário:

"Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento da empresa".


Qual a diferença entre empresário e sociedades empresárias?

Sociedade empresária é a sociedade que exerce atividade econômica organizada. Ou, como diz o art. 982, é a que "tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967)".

Em oposição às sociedades empresárias, estão as sociedades simples, que são as sociedades que não exercem "profissionalmente atividade econômica organizada" (art. 966).

O novo Código Civil não define o que seja "atividade econômica organizada" ou o que seja "empresa". Essas definições cabem à doutrina.


O que é empresa?

Já é célebre a definição de empresa dada por Asquini, para quem ela compreende quatro perfis. Vejamos três significados jurídicos para o vocábulo técnico, que correspondente aos três primeiros perfis:

  1. perfil subjetivo. A empresa é o empresário, pois empresário é quem exercita a atividade econômica organizada, de forma continuada. Nesse sentido, a empresa pode ser uma pessoa física ou uma pessoa jurídica, pois ela é titular de direitos e obrigações. Quando se diz "arrumei um emprego em uma empresa", temos a palavra empresa empregada com esse significado.

  2. perfil funcional. A empresa é uma atividade, que realiza produção e circulação de bens e serviços, mediante organização de fatores de produção (capital, trabalho, matéria prima etc). Quando se diz "a empresa de estudar será proveitosa", temos a palavra empresa empregada com esse significado.

  3. perfil objetivo (patrimonial). A empresa é um conjunto de bens. A palavra empresa é sinônima da expressão estabelecimento comercial. Os bens estão unidos para uma atividade específica, que é o exercício da atividade econômica. Como exemplo desse significado, podemos dizer "a mercadoria saiu ontem da empresa".

A empresa, portanto, tem todos esses significados.

Há também um quarto perfil, criticado pela doutrina por não corresponder a qualquer significado jurídico, mas apenas por estar de acordo com a ideologia fascista, que controlava o Estado italiano por ocasião da positivação da teoria da empresa:

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  1. perfil corporativo. A empresa é uma instituição, uma organização pessoal, formada pelo empresário e pelos colaboradores (empregados e prestadores de serviços), todos voltados para uma finalidade comum.

Para fins do art. 966, a palavra empresa tem como significado o segundo perfil mencionado acima. Empresa, portanto, é a atividade econômica organizada. A organização é a união de vários fatores de produção, com escopo de realização de bens ou serviços. O empresário, assim, é quem realiza essa empresa, expressão tomada como sinônimo de atividade.

A noção jurídica de atividade econômica organizada exige o concurso de atividade profissional alheia. Se alguém exercer uma atividade econômica individualmente, não será considerado empresário, à luz do art. 966. do novo Código Civil.

Pouco importa o regime jurídico das pessoas que trabalharem para o empresário. Poderá ser o regime trabalhista ou civil (em caso específicos, até mesmo o administrativo). Os colaboradores do empresário poderão ser empregados, regidos pelo direito do trabalho, ou trabalhadores autônomos, que são prestadores de serviço, regidos pelo direito civil. Pouco importa. Ou seja, empresário não é sinônimo de patrão; mas o empresário sempre contrata pessoas para trabalhar, ele sempre organiza o trabalho de outrem.

Mas a organização não compreende apenas a contratação de serviços sob regime civil ou trabalhista. Juridicamente, a organização definida no art. 966. é a organização de fatores produção. Abrange capital e trabalho. O capital compreende o estabelecimento, que é o conjunto de bens utilizados pelo empresário na sua atividade econômica (estoque, matéria prima, dinheiro, marcas, automóveis, computadores etc).

Essa organização deve ser profissional. Isso significa que deve ser contínua e com intuito de lucro, objetivando meio de vida. Atos isolados não são empresariais, mesmo que tenham conteúdo econômico.

Toda essa atividade organizada deve ter um sentido econômico. Se o objeto não for a produção ou a circulação de bens ou de serviços, não estaremos diante da empresa.

Essa é a teoria da empresa. Ela estuda isto: a atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. É o que se lê, claramente, no caput do art. 966. do novo Código Civil.

Mas o art. 966. tem um parágrafo. Esse parágrafo diz que não é empresário "quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística (...)".

O que significa isso? Estaria o parágrafo único o art. 966. a excluir parte da atividade econômica do conceito de empresa?

Isso pode causar uma certa perplexidade quando temos em mente que a teoria dos atos de comércio é que fazia isso. A teoria dos atos de comércio é que dividia a atividade econômica em atos sujeitos e atos não sujeitos ao regime mercantil.

Tecnicamente, um parágrafo em um dispositivo de lei pode significar uma exceção ou uma explicação ao que foi dito no caput. Em outras palavras, um parágrafo pode estabelecer uma regra contraditória à do caput, aplicável apenas a situações específicas, pois regra especial derroga regra geral (parágrafo excepcionador) ou pode apenas explicar melhor algum conceito contido no caput, esclarecendo que alguma situação específica está ou não abrangida pela idéia do caput, sem qualquer contradição filosófica (parágrafo explicativo).

No caso concreto, pode-se interpretar o parágrafo único do art. 966. do novo Código Civil como uma exceção à regra do caput ou como uma explicação. Vamos analisar as duas possíveis interpretações a esse parágrafo único, para, ao final, concluir por uma ou outra interpretação.

Se visto como uma exceção, o novo Código Civil estaria positivando a teoria da empresa, mas conteria uma pequena ou não pequena exceção: toda atividade econômica profissional organizada seria considerada empresa, com exceção dos serviços intelectuais.

Estaria excluída, assim, a atividade econômica desempenhada por médicos, advogados, escritores, escultores, ainda que com o concurso de auxiliares ou colaboradores. Essas atividades, ainda que realizada de forma profissional e organizada, com objetivo de lucro, não se sujeitariam ao regime jurídico empresarial.

Vamos frisar este ponto: se for dado ao parágrafo único, que se refere à profissão intelectual, for tomado como excepcionador da regra do caput, significará dizer que a atividade de prestação de serviços intelectuais realizada por uma grande organização não seria empresarial. Ou seja, uma sociedade de advogados, titular de um grande escritório de advocacia, com muitos empregados, com muitos computadores em rede, máquinas de xerox, acesso rápido à Internet, bibliotecas, enfim, com uma grande estrutura, não seria considerada empresa. Essa sociedade de advogados, com seu grande escritório de advocacia, reuniria todas as definições teóricas do caput do art. 966. do novo Código Civil, mas não seria considerada empresa em razão do parágrafo único ter excluído a profissão intelectual da atividade econômica sujeita ao regime empresarial.

Esse parágrafo único conta, na sua parte final, com a expressão "salvo se o exercício da profissão constituir elemento da empresa".

Vamos ler de novo o parágrafo único do art. 966. e novamente tentar interpretá-lo:

"Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento da empresa".

Qual o alcance da expressão "salvo se o exercício da profissão constituir elemento da empresa"? Qual seu sentido?

Interpretado o parágrafo único desse modo, isto é, no sentido de ser ele excepcionador da regra do caput, teremos dois incontornáveis problemas de hermenêutica:

  1. O novo Código Civil positiva a teoria da empresa, que não divide a atividade econômica pelos atos em si considerados, mas sim pelo modo em que ela é exercitada. A teoria que divide os atos em si considerados (atos comerciais versus atos civis) é a teoria dos atos de comércio, do Código Comercial de 1850. Caso se diga que a profissão intelectual em si não é empresarial, estaremos interpretando o parágrafo único do art. 966. de acordo com a teoria dos atos de comércio e não de acordo com a teoria da empresa.

  1. A segunda parte do parágrafo único do art. 966. não teria qualquer sentido lógico ou prático.

Vejamos, então, a interpretação no sentido de que o parágrafo único do art. 966, ao se referir à profissão intelectual, não constitui uma exceção ao caput do art. 966, mas sim uma explicação. Trata-se da interpretação tecnicamente mais adequado do ponto de vista científico, pelos motivos a seguir expostos.

A idéia do parágrafo único do art. 966. do novo Código Civil é que a princípio a profissão intelectual não é empresarial por características próprias, isto é, não compreende a organização de fatores de produção. O parágrafo único do art. 966. diz a profissão intelectual, a despeito de ter conteúdo econômico (o parágrafo único usa a palavra "profissão", o que denota o caráter econômico) não é empresarial, mesmo se existentes auxiliares ou colaboradores.

Como vimos acima, de acordo com a teoria da empresa, não basta a contratação de pessoas ("auxiliares ou colaboradores", no dizer do parágrafo único do art. 966) em uma atividade econômica para a configuração da existência jurídica da empresa. É preciso um elemento a mais, que é o estabelecimento, o conjunto de bens. Isso fica mais claro quando nos lembramos dos quatro perfis de Asquini, mencionados acima, que compõem a noção jurídica de empresa.

Assim, de acordo com o parágrafo único do art. 966. do novo Código Civil, embora a princípio a profissão intelectual não seja empresarial, excepcionalmente pode ela constituir elemento de empresa. Nesse caso, ela será empresarial.

Retornemos ao exemplo do grande escritório de advocacia, com sua biblioteca, sua rede de computadores da mais alta tecnologia, com acesso à Internet. Ou mesmo pensemos em um grande hospital, de propriedade de um médico, com os mais modernos aparelhos cirúrgicos. Penso não haver dúvida de que tais constituem o estabelecimento, parte da organização empresarial prevista no caput do art. 966.

É preciso diferenciar a hipótese do advogado que contrate uma secretária e um office-boy para realizar as tarefas de secretariado e de mensageiro, da hipótese do grande escritório de advocacia mencionado acima. Esse advogado não é um empresário, mas apenas um profissional liberal, um trabalhador autônomo, que pode ter auxiliares nas suas atividades. Isso não é vedado pela lei, nem tampouco o transforma em empresário de acordo com a teoria da empresa. É este o sentido do parágrafo único do art. 966: diferenciar alguém que realiza atividade econômica não organizada de alguém que realiza atividade econômica organizada.

Portanto, tecnicamente parece ser mais adequado interpretar o parágrafo único do art. 966. do Código Civil como uma explicação e não como uma exceção ao disposto no caput. A princípio, a atividade intelectual não é empresarial (primeira parte do parágrafo único), mas se presente todos os elementos de uma empresa, ela será empresarial (segunda parte do parágrafo único). Em outras palavras, a profissão intelectual pode ser empresarial, se presentes todos os requisitos previstos no caput. Essa é a explicação do parágrafo único do art. 966.

Embora a interpretação ora adotada seja tecnicamente lógica e esteja de acordo com a teoria da empresa, ela não deverá prevalecer, pelos motivos políticos e culturais a seguir expostos:

O regime jurídico do empresário, de acordo com o novo Código Civil, é o regime jurídico do comerciante. É o que diz o art. 2.037, do novo Código Civil:

"Art. 2.037. Salvo disposição em contrário, aplicam-se aos empresários e sociedades empresárias as disposições de lei não revogadas por este Código, referentes a comerciantes, ou a sociedades comerciais, bem como a atividades mercantis."

Disso decorre que empresários e sociedades empresárias estão sujeitas ao regime jurídico mercantil, ainda que não exerçam qualquer atividade que antes seria considerada como ato de comércio.

Este aspecto que é importante: perdeu relevância jurídica a noção de ato de comércio! Só que, culturalmente, continuamos com a divisão da atividade econômica em atividades "civis" (ex. advocacia), de um lado, e "comerciais", de outro lado (embora juridicamente isso não existe mais).

Se o regimento jurídico do empresário e da sociedade empresária é o regime jurídico do comerciante, então os empresários e as sociedades empresárias, tal como definidas pelo novo Código Civil, estão sujeitas à todos os institutos mercantis, como por exemplo, a falência e o registro na Junta Comercial. A potencial sujeição à falência e o registro na Junta Comercial fazem parte do regime jurídico do comerciante.

Realmente, o novo Código Civil é expresso no sentido de que o empresário, tal como definido no art. 966, deverá se inscrever na Junta Comercial. É o que diz o art. 967. do novo Código Civil, que estabelece ser obrigatória a inscrição do empresário no "Registro Público de Empresas Mercantis", que é a tão conhecida Junta Comercial.

Levando tudo isso em consideração, é de se duvidar que os operadores do direitos, as grandes sociedades de advogados, a OAB irão aceitar a interpretação de que sociedades de advogados sejam consideradas sociedades empresárias e, por via de conseqüência, sujeitas ao regime jurídico mercantil e que devam ser inscritas na Junta Comercial e sujeitas à falência.

Vejam que as sociedades de advogados, ainda que estejam regidas por lei específica, Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Advocacia), deveriam se sujeitar às disposições do art. 967, do novo Código Civil, caso se conclua que sociedade de advogados possam vir a ser sociedades empresárias. É verdade que o art. 15, § 1º, do Estatuto da Advocacia, lei especial, é expresso no sentido de que a sociedade de advogados adquire personalidade jurídica com o registro dos seus atos constitutivos no Conselho Seccional da OAB (e não no cartório de registro civil, muito menos na Junta Comercial). Contudo, o art. 2.031. do novo Código Civil dá o prazo de 1 (um) ano paras as sociedades constituídas sob a forma de leis anteriores (inclui a Lei nº 8.906/94?) adaptarem-se às disposições no novo Código, contado a partir da sua vigência.

Culturalmente, é muito difícil aceitar a mudança, sendo mais fácil aceitar que a "sociedade civil" é agora a "sociedade simples" e a "sociedade comercial" é agora a "sociedade empresarial". Sem trocadilhos, seria tudo muito simples, se ainda estivéssemos na teoria dos atos de comércio e não na teoria da empresa...

Embora tecnicamente equivocada, é bem provável que prevaleça interpretação ao art. 966. do novo Código Civil no sentido de que a profissão intelectual (incluindo, portando, as sociedades de advogados), mesmo se tiverem trabalhadores contratados e contem com forte estrutura material, não são sociedades empresárias.

Embora tecnicamente equivocado, é bem provável que prevaleça entendimento de que atividades intelectuais são exercidas sempre pelas "sociedades simples", com registro no cartório de pessoas jurídicas, ainda que tenham estrutura material e humana complexa.

Sobre o autor
Bruno Mattos e Silva

Bacharel em Direito pela USP. Mestre em Direito e Finanças pela Universidade de Frankfurt (Alemanha). Foi advogado de empresas em São Paulo, Procurador-chefe do INSS nos tribunais superiores, Procurador Federal da CVM e Assessor Especial de Ministro de Estado. Desde 2006 é Consultor Legislativo do Senado Federal, na área de direito empresarial, de regulação, econômico e do consumidor. Autor dos livros Direito de Empresa (Ed. Atlas) e Compra de Imóveis (Edi. Atlas/GEN).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Bruno Mattos. A teoria da empresa no novo Código Civil e a interpretação do art. 966.: Os grandes escritórios de advocacia deverão ter registro na Junta Comercial?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. -182, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3606. Acesso em: 24 nov. 2024.

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