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Hipótese de inaplicabilidade da majorante do parágrafo segundo do artigo 84 da Lei n. 8.666/93

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Agenda 11/02/2015 às 11:46

A aplicação da majorante do § 2° do art. 84 da Lei n. 8.666/93 quando o servidor comissionado praticar o crime em coautoria com o seu superior hierárquico afronta o princípio constitucional da razoabilidade (proporcionalidade) na individualização da pena.

 

Resumo: Tendo os juízes e tribunais o poder/dever de exercer a revisão judicial sobre os textos normativos, afastando sua incidência nos casos em que se mostrem incompatíveis com a Constituição, mostra-se indevida a aplicação do § 2° do art. 84 da Lei n. 8.666/93 quando o servidor comissionado praticar o crime em coautoria com o seu superior hierárquico, sob pena de afronta ao princípio constitucional da razoabilidade (proporcionalidade) na individualização da pena.

Palavras-chave: inaplicabilidade, majorante, servidor comissionado, coautoria, superior hierárquico.

Abstract: Due to the power/duty of judges and Courts to practice the judicial review in relation to the normative acts, setting them aside in case of incompatibility with the Constitution, it appears to be improper the application of § 2 of art. 84 of Law n. 8666/93 when the commissioned officer commits the crime co-authored with his superior, because it would affront the constitutional principle of reasonableness (proportionality) in the individualization of punishment.

Keywords: inapplicability, aggravating circumstance, commissioned officer, co-authoring, superior.

INTRODUÇÃO

O § 2° do art. 84 da Lei n. 8.666/93 dispõe que os autores dos crimes previstos na referida lei que forem ocupantes de cargo em comissão ou de função de confiança na Administração direta ou indireta devem ter a pena imposta acrescida da terça parte.

Sem questionar o mérito das razões que levaram o legislador pátrio a prever tal causa de aumento de pena, este artigo objetiva demonstrar que é indevida a sua aplicação nos casos em que o servidor comissionado praticar o crime em coautoria com o seu superior hierárquico, sob pena de afronta ao princípio constitucional da razoabilidade (proporcionalidade) [1] na individualização da pena.

A INTERPRETAÇÃO COMO ATIVIDADE CRIATIVA DO DIREITO E A NECESSIDADE DE SEU EXERCÍCIO EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO

Na atual quadra histórica, é amplamente reconhecido que as soluções judiciais não são extraídas, por silogismo, da literalidade dos textos legais. Estes devem servir como pontos de partida no processo interpretativo de concretização da norma jurídica, que surge apenas diante da problematização do caso concreto, seja ele real ou fictício.

A atividade interpretativa é criativa de direito, e não simplesmente declaratória, na medida em que, a partir de um enunciado textual, concretiza a norma jurídica, e não simplesmente revela conteúdo nele preexistente.

Tal assertiva baseia-se na distinção entre texto e norma, percebida por Friedrich Müller e retrabalhada por Eros Roberto Grau (2009, p. 27), nos seguintes termos: “O que em verdade se interpreta são os textos normativos; da interpretação dos textos resultam as normas. Texto e norma não se identificam. A norma é a interpretação do texto normativo”.

Aliás, explicando o processo de concretização do direito, com base nos ensinamentos do jurista alemão, assim discorre o ex-Ministro do STF (GRAU, 2009, p. 29):

O fato é que a norma é construída, pelo intérprete, no decorrer do processo de concretização do direito. O texto, preceito jurídico, é, como diz Friedrich Müller, matéria que precisa ser “trabalhada”.

Partindo do texto da norma (e dos fatos), alcançamos a norma jurídica, para então caminharmos até a norma de decisão, aquela que confere solução ao caso. Somente então se dá a concretização do direito. Concretizá-lo é produzir normas jurídicas gerais nos quadros de solução de casos determinados [Müller].

Reconhece-se, igualmente, a normatividade e a supremacia[2] da Constituição e dos princípios nela elencados, bem como a sua eficácia interpretativa dentro do sistema jurídico, onde funcionam como verdadeiros vetores interpretativos.

Ou seja, o sentido e o alcance das normas (constitucionais ou infraconstitucionais) devem ser fixados tomando em conta os valores e fins abrigados nos princípios constitucionais, pois, como salienta Luís Roberto Barroso (2011, p. 226):

Os princípios – notadamente os princípios constitucionais – são a porta pela qual os valores passam do plano ético para o mundo jurídico. Em sua trajetória ascendente, os princípios deixaram de ser fonte secundária e subsidiária do Direito, para serem alçados ao centro do sistema jurídico. De lá, irradiam-se por todo o ordenamento, influenciando a interpretação e aplicação das normas jurídicas em geral e permitindo a leitura moral do Direito.

No mesmo sentido são as lições de Lenio Luiz Streck (2011, p. 37), para quem:

(...) o Constitucionalismo Contemporâneo representa um redimensionamento na práxis político-jurídica, que se dá em dois níveis: no plano da teoria do Estado e da Constituição, com o advento do Estado Democrático de Direito, e no plano da teoria do direito, no interior da qual se dá a reformulação da teoria das fontes (a supremacia da lei cede lugar à onipresença da Constituição); na teoria da norma (devido à normatividade dos princípios) e na teoria da interpretação (que, nos termos que proponho, representa uma blindagem às discricionariedades e aos ativismos).

O reconhecimento da normatividade da Constituição, aliado à supremacia de que goza em relação às demais espécies de textos normativos de um sistema jurídico, permite que todas as normas constitucionais já possuam o efeito de paralisar os efeitos de normas precedentes com ela incompatíveis, por sua não recepção[3], e de inibir a produção de qualquer ato contrário à Constituição[4], impondo-lhe a sanção da inconstitucionalidade, que opera no plano da validade, acarretando sua nulidade[5], seja para extirpá-lo do ordenamento jurídico ou, simplesmente, afastar interpretações incompatíveis com a normatividade constitucional[6].

Atento ao tema, Gilmar Ferreira Mendes (2013, p. 1003-1006) acentua que, a despeito da relativização da concepção unitária de inconstitucionalidade fundada no dogma da nulidade, a falta de uma punição esvaziaria o conteúdo obrigatório da Constituição, convertendo o conceito de inconstitucionalidade em simples manifestação de censura ou crítica. Por isso, a sanção qualificada de nulidade compõe o conceito de inconstitucionalidade, tornando indispensável uma jurisdição especial para deliberar no procedimento de anulação do ato contaminado por aquele defeito.

A guarda da Constituição compete ao Judiciário, que possui, por força do famoso poder de revisão judicial, a faculdade de anular as ações dos outros poderes, retirando-lhes os efeitos, na hipótese de ocorrência de inconstitucionalidade.[7] O poder de revisão judicial, que visa a garantir a supremacia constitucional, é viabilizado pela ordem jurídica na medida em que contempla um conjunto de mecanismos destinados a, pela via judicial, fazer prevalecer os comandos contidos na Lei Maior. Trata-se da jurisdição constitucional, da qual parte importante consiste no controle de constitucionalidade, cuja finalidade é declarar a invalidade e paralisar a eficácia dos atos normativos incompatíveis com a Constituição.

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Deveras, a ordem jurídica, no plano interno, funciona de forma hierarquizada[8]. A Constituição fornece os fundamentos de validade das demais regras do ordenamento que inaugura. Qualquer ato normativo só pode validamente ingressar na ordem jurídica e nela permanecer, se for feito nos limites da autorização constitucional e se tiver conteúdo compatível com o texto da Carta. Fora dessas hipóteses, não se considera válido nem eficaz. Noutros termos, os atos provenientes dos poderes constituídos precisam ostentar compatibilidade formal e material com a Constituição.

A Constituição, portanto, constitui o fundamento do sistema jurídico; à sua luz todos os textos legislativos devem ter a sua validade aferida e a sua correta interpretação delineada. Nessa tarefa interpretativa, as proposições normativas não podem ser analisadas sem que sejam considerados os substratos fáticos dos problemas apresentados e as consequências práticas das soluções preconizadas, pois “não será possível determinar a vontade constitucional sem verificar as possibilidades de sentido decorrentes dos fatos subjacentes” (BARROSO, 2011, p. 310).

O CONTEÚDO E A RAZÃO DE SER DO § 2° DO ART. 84 DA LEI N. 8.666/93

O art. 84, § 2°, da Lei n. 8.666/93 reza que:

A pena imposta será acrescida da terça parte, quando os autores dos crimes previstos nesta Lei forem ocupantes de cargo em comissão ou de função de confiança em órgão da Administração direta, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista, fundação pública, ou outra entidade controlada direta ou indiretamente pelo Poder Público.

Trata-se, como bem se percebe, de circunstância legal que consubstancia causa de aumento de pena, a ser aplicada na terceira fase da aplicação da reprimenda, conforme determina o art. 68 do Código Penal[9].

Significa que o legislador pátrio resolveu conferir maior grau de reprovação abstrata à prática dos crimes previstos na Lei n. 8.666/93 por ocupantes de cargo em comissão ou de função de confiança.

Trata-se de majorante idêntica àquela que a Lei n. 6.799/80 inseriu no § 2º do art. 327 do Código Penal. Compulsando a justificação do Projeto de Lei n. 1066/1975 (que deu origem à Lei n. 6.799/80) apresentado pelo então Deputado Federal Norton Macedo, pode-se descobrir os motivos que levaram o legislador pátrio ao tratamento mais severo:

Ora, embora o desvalor de resultado seja o mesmo quando o crime for praticado por funcionário de carreira ou por ocupante de cargo ou de função em comissão, direção ou assessoramento em órgão da Administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo Poder Público, evidente que a conduta é mais censurável penalmente quanto mais poder esteja nas mãos do funcionário, porque maior dever de defendê-lo e de fidelidade possui.

Neste passo, evidente que a censura pessoal ao ocupante de cargo em comissão ou função de direção ou assessoramento em órgão da Administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo Poder Público é bem maior, ensejando um especial aumento de pena quando seja autor de delito contra a Administração Pública.[10] (grifo nosso)

Como se percebe, a razão de ser da majorante, consoante as palavras utilizadas na própria justificativa do projeto de lei que deu ensejo à sua incorporação no ordenamento jurídico, é que “a conduta é mais censurável penalmente quanto mais poder esteja nas mãos do funcionário, porque maior dever de defendê-lo e de fidelidade possui.”

A opção legislativa em questão, indubitavelmente, é louvável. Porém, é de se atentar para o fato de que a lei não prevê uma tal exasperação da pena para os agentes públicos que detêm o poder de nomeação dos servidores comissionados, cujas condutas, pelas mesmas razões, seriam ainda mais censuráveis, o que aponta, em tese, a necessidade de declaração de inconstitucionalidade do dispositivo por omissão, revelando-se adequada a técnica da declaração de nulidade sem redução de texto.

Todavia, em respeito à presunção da constitucionalidade das leis, corolário dos princípios da separação dos Poderes, da segurança jurídica e da isonomia[11], o § 2° do art. 84 da Lei n. 8.666/93 não pode, simplesmente, ser ignorado pelos juízes e tribunais, o que não os impede de deixar de aplicá-lo, no julgamento de casos concretos, quando verificarem que a incidência do dispositivo acarreta a prolação de decisões afrontosas à Constituição, sobretudo quando tal afronta significa a imposição de uma pena injusta, porque desarrazoada (desproporcional). Nesse sentido, já consignou o Supremo Tribunal Federal que:

A norma legal que descreve o delito e comina a respectiva pena atua por modo necessariamente binário, no sentido de que, se, por um lado, consubstancia o poder estatal de interferência na liberdade individual, também se traduz na garantia de que os eventuais arroubos legislativos de irrazoabilidade e desproporcionalidade se expõem a controle jurisdicional. Donde a política criminal-legislativa do Estado sempre comportar mediação judicial (...) Justiça como valor, a se concretizar mediante uma certa dosagem de razoabilidade e proporcionalidade na concretização dos valores da liberdade, igualdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, etc. Com o que ela, justiça, somente se realiza na medida em que os outros valores positivos se realizem por um modo peculiarmente razoável e proporcional. Equivale a dizer: a justiça não tem como se incorporar, sozinha, à concreta situação das protagonizações humanas, exatamente por ser ela a própria resultante de uma certa cota de razoabilidade e proporcionalidade na historicização de valores positivos (os mencionados princípios da liberdade, da igualdade, da segurança, bem-estar, desenvolvimento, etc). Donde a compreensão de que falar do valor da justiça é falar dos outros valores que dela venham a se impregnar por se dotarem de um certo quantum de ponderabilidade, se por este último termo (ponderabilidade) englobarmos a razoabilidade e a proporcionalidade no seu processo de concreta incidência. Assim como falar dos outros valores é reconhecê-los como justos na medida em que permeados desse efetivo quantum de ponderabilidade (mescla de razoabilidade e proporcionalidade, torna-se a dizer). Tudo enlaçado por um modo sinérgico, no sentido de que o juízo de ponderabilidade implica o mais harmonioso emprego do pensamento e do sentimento do julgador na avaliação da conduta do agente em face do seu subjetivado histórico de vida e da objetividade da sua concreta conduta alegadamente delitiva. (HC 109277, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Segunda Turma, julgado em 13/12/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-036 DIVULG 17-02-2012 PUBLIC 22-02-2012)

Explorados o conteúdo e a razão de ser do § 2° do art. 84 da lei n. 8.666/93, é de se questionar se a majoração em um terço da pena imposta ao ocupante de cargo em comissão ou de função em confiança pela prática de crime previsto na Lei n. 8.999/93 em coautoria com o agente público que o nomeou revela-se medida razoável (proporcional).

A AFRONTA AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA RAZOABILIDADE (PROPORCIONALIDADE) NA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA DA INTERPRETAÇÃO QUE APLICA A MAJORANTE PREVISTA NO § 2° DO ART. 84 DA LEI N. 8.666/93 NOS CASOS EM QUE O SERVIDOR COMISSIONADO PRATICAR O CRIME EM COAUTORIA COM O SEU SUPERIOR HIERÁRQUICO

A doutrina e a jurisprudência pátrias reconhecem a existência implícita do princípio da razoabilidade (proporcionalidade) na Constituição. Constitui, na verdade, um dos mais importantes parâmetros de interpretação dos textos normativos. Presta-se tanto para conferir sentido lógico a regras fechadas, como para determinar o sentido e alcance de outros princípios constitucionais, blindando de discricionariedades a aplicação dessas normas abertas. Afigura-se, portanto, valioso instrumento de concretização do texto constitucional.

Luís Roberto Barroso (2011, p. 278-281) ensina que “a razoabilidade surge, nos Estados Unidos, como um princípio constitucional que servia de parâmetro para o judicial review (controle de constitucionalidade)”, abrigando os valores da “racionalidade, justiça, medida adequada, senso comum, rejeição aos atos arbitrários ou caprichosos”. Para o eminente jurista, a razoabilidade constitui “um parâmetro de avaliação dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça.”. Nas suas palavras, “é razoável o que seja conforme a razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar”.

Paulo Queiroz (2006, p. 44-45) afirma que:

O princípio da proporcionalidade é hoje, seguramente, o mais importante princípio de todo o direito e, em particular, do direito penal. Pode-se mesmo dizer que tudo em direito penal é uma questão de proporcionalidade, desde a sua existência mesma, passando pelos conceitos de erro de tipo, de legítima defesa, de coação irresistível, incluindo toda a controvérsia em derredor da responsabilidade penal da pessoa jurídica, até chegar às causas de extinção de punibilidade (v. g., prescrição), pois o que se discute é, em última análise, em todos esses casos, a necessidade, adequação, proporcionalidade, enfim, da intervenção jurídico-penal.

Na verdade, em relação ao Direito Penal, o princípio da proporcionalidade possibilita a máxima otimização do respeito aos direitos fundamentais de liberdade e segurança, compreendendo os subprincípios da adequação, da necessidade, e da proporcionalidade em sentido estrito, já que a intervenção jurídico-penal do Estado só se mostra constitucionalmente adequada se for, simultaneamente adequada (atingindo os fins a que se destina), necessária (não podendo ser atingida por outros meios menos gravosos) e estritamente proporcional (de forma que o fim perseguido com a incriminação valorativamente justifique a privação de liberdade ou restrição de direito).

Quanto a esse último aspecto, Paulo Queiroz (2006, p. 48) ensina que o princípio da proporcionalidade em sentido estrito divide-se em proporcionalidade abstrata, proporcionalidade concreta e proporcionalidade executória, ou seja, incide tanto na fase legislativa de estabelecimento em abstrato dos crimes e das respectivas sanções, como na fase de individualização da pena diante dos casos concretos, bem como no momento de sua execução.

Como se viu, a razão de ser da majorante do § 2º do art. 84 da Lei 8.666/93 reside em que o ocupante de cargo em comissão ou de função em confiança, em geral, tem mais poder que os demais servidores públicos e, ao cometer infrações dessa natureza, quebra a confiança não só da população, mas também do agente político que o nomeou ou designou. Porém, quando tanto o agente político (superior hierárquico) quanto o ocupante de cargo em comissão (subordinado) concorrem para o crime, não há quebra de confiança por parte do comissionado, tampouco se pode reputar-lhe mais censurável a sanção em razão das atribuições (poderes) que detém. Portanto, não há razão para a aplicação da majorante.

Nesses casos, as razões pelas quais o legislador pátrio previu a causa de aumento de pena do § 2º do art. 84 da Lei n. 8.666/93 não podem ser invocadas em desfavor daquele que ocupa cargo em comissão ou exerce função comissionada.

Deveras, não seria lógico ou justo que a lei imprimisse ao ocupante de cargo em comissão sanção mais gravosa que a imposta ao agente político, quando ambos concorrem para o crime, posto que, nesse caso, o comissionado é cumpridor de ordens, executor da vontade do agente político.

Dessa forma, o art. 84, 2º, da Lei 8.666/93 precisa ser interpretado com cautela, devendo a majorante ali prevista ser aplicada apenas nas situações em que o ocupante de cargo em comissão ou de função de confiança quebre a confiança do agente político que o nomeou ou designou, sob pena de se chegar a soluções ilógicas e irrazoáveis, afrontosas ao princípio constitucional da estrita proporcionalidade na individualização das penas[12].

Imagine-se o caso, por exemplo, em que um secretário municipal seja condenado, juntamente com o prefeito, pela prática, em coautoria, do crime previsto no art. 89 da Lei n. 8.666/93. Não havendo diferença entre o grau de culpabilidade dos agentes, isto é, sendo iguais as circunstâncias judiciais, não seria razoável (proporcional) que se aplicasse a circunstância legal do 2º do art. 84 da Lei 8.666/93 à reprimenda imposta ao secretário municipal, exasperando-a para patamar um terço superior à fixada para o chefe do Executivo.

CONCLUSÃO

Em que pese a presunção de constitucionalidade das leis, os juízes e tribunais, na atribuição que a própria Constituição lhes conferiu de zelar por sua supremacia, estão autorizados a deixar de aplicar um dispositivo legal, no julgamento de casos concretos, quando verificarem que a sua incidência acarreta a prolação de decisões afrontosas à Constituição, sobretudo quando tal afronta significa a imposição de uma pena injusta, porque desarrazoada (desproporcional).

O § 2° do art. 84 da Lei n. 8.666/93, ao dispor que os autores dos crimes previstos na referida lei que forem ocupantes de cargo em comissão ou de função de confiança na Administração direta ou indireta devem ter a pena imposta acrescida da terça parte, prevê uma causa de aumento de pena cuja razão de ser é louvável, na medida em que a conduta é mais censurável penalmente quanto mais poder esteja nas mãos do funcionário, porque maior dever de defendê-lo e de fidelidade possui.

Todavia, nos casos em que o servidor comissionado praticar o crime em coautoria com o seu superior hierárquico, isto é, com o agente político responsável por sua nomeação, a aplicação da referida majorante torna-se indevida, sob pena de afronta ao princípio constitucional da razoabilidade (proporcionalidade) na individualização da pena, posto que, nesses casos, as razões pelas quais o legislador pátrio previu a causa de aumento de pena do § 2º do art. 84 da Lei n. 8.666/93 não podem ser invocadas em desfavor daquele que ocupa cargo em comissão ou exerce função comissionada, e não seria lógico ou justo que se imprimisse a esses servidores sanção mais gravosa que a imposta ao agente político, quando ambos concorrem para o crime, posto que, nesse caso, o comissionado é cumpridor de ordens, executor da vontade do agente político.

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Sobre o autor
Rodrigo Clemente de Brito Pereira

Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (2013) com láurea acadêmica. Advogado. Consultor Legislativo concursado da Assembleia Legislativa da Paraíba. Suplente de deputado estadual na Paraíba (2015-2018).

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