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Faltar à verdade no processo administrativo disciplinar castrense frente os direitos e garantias constitucionais

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Agenda 01/01/2003 às 00:00

1. INTRODUÇÃO

Nossa geração foi marcada pelo nascimento de um novo ordenamento jurídico, uma nova realidade, sepultando um passado caracterizado por atos abusivos.

A atual Constituição foi o ícone desta nova etapa jurídica e política de nosso país: uma democracia mais humanista e voltada a assegurar direitos fundamentais.

Ao assumir o ápice do ordenamento jurídico, a Magna Carta passou a determinar de forma criteriosa a interpretação de atos normativos que lhe são hierarquicamente inferiores, e que de maneira nenhuma com ela podem chocar-se, sob pena de serem declarados nulos.

Em toda sociedade, uma mudança brusca leva um certo tempo para ser absorvida, pois implica a troca de velhos conceitos por novos institutos, impondo, embora muitos insistam em reagir, a quebra de paradigmas. Por óbvio não seria diferente nas Forças Armadas.

Este ensaio pretende atuar na internalização desses novos conceitos, mais precisamente o da ampla defesa, confrontando Constituição, Regulamento Disciplinar do Exército (RDE) e o Estatuto dos Militares, no tocante à transgressão disciplinar por faltar à verdade, no momento em que é aplicada ao militar que está submetido a processo administrativo disciplinar.

A escolha desse tema decorre não apenas por ser o acadêmico militar, mas por tratar-se o Exército de uma Instituição tradicional e séria, mas que precisa, e com urgência, incorporar de forma plena as modificações trazidas pela Carta Constitucional de 1988, principalmente no que se refere aos regulamentos militares.

Não se pretende, com este trabalho, fazer uma apologia à mentira, valorizando-a sobremaneira. Ao contrário, busca-se colocar a figura do militar na mesma condição de igualdade do servidor público civil quanto ao aspecto do processo administrativo disciplinar e perante a Constituição, conforme prevê o art. 5º e, dessa forma, evitar que sejam cometidos excessos e injustiças.

As autoridades militares não podem aplicar a seus agentes os antigos regulamentos, pois alguns destes foram tacitamente revogados pelo texto constitucional. Faz-se necessário observar rigorosamente os novos mandamentos, sob pena de estar-se julgando com amparos ilegais, e, conseqüentemente, ter-se essas decisões anuladas pelo Poder Judiciário, ocasionando prejuízos financeiros e morais à Instituição.

Pretende-se ainda que este ensaio possa, no futuro, servir de base para o operador jurídico que aspire a um maior aprofundamento nas questões referentes às Forças Armadas.

Num primeiro momento, a questão do faltar à verdade choca-se com a formação recebida nas escolas militares, ainda mais ao contrapor-se ao princípio constitucional da ampla defesa.

Como aceitar como natural que um militar minta a seus superiores e não seja responsabilizado por estar fazendo uso de seu direito de defesa?

Reprimimos a mentira e a deslealdade para com a Instituição, e nossos regulamentos são claros ao impor sanções para essas situações. E em nenhum momento, quero deixar claro esse entendimento, pretendo retirar da Administração Militar o dever-poder de sancionar seus agentes infratores.

Por outro lado, este ensaio monográfico pretende demonstrar que, ao enquadrar o militar na transgressão disciplinar por faltar à verdade, desde que exercendo seu legítimo direito de ampla defesa dentro do processo administrativo, estará a autoridade praticando ato excessivo, que fere as garantias e os direitos fundamentais assegurados no art. 5º, LV da Constituição Federal.


2. DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

2.1. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Ao iniciar este ensaio monográfico, necessário se faz abordar os aspectos relevantes da Constituição da República Federativa do Brasil, visto repousar nela a legalidade do ato administrativo, tema do presente estudo.

Na precisa lição do professor José Afonso da Silva, a Constituição é

"Um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as respectivas garantias. Em síntese, a constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado." 1

A data de 5 de outubro de 1988 ficou marcada por ser um divisor de águas na sociedade brasileira, passando a Constituição, a partir daquela data, a instituir, organizar e delimitar os poderes do Estado, sendo fonte de garantias e liberdades individuais.

Após longa experiência autoritária, com leis restritivas de direitos e excepcionais para a ordem jurídica, a Constituição de 1988 buscou ser o símbolo maior da nova fase democrática, fortalecendo seus princípios em todos os ramos jurídicos de forma crescente e inquestionável.

A atual Constituição diferencia-se das anteriores por ser fruto da participação de todos os setores de nossa sociedade. Por isso mesmo, tem como principal destinatário o próprio homem, alcançado-o em todas as suas dimensões: seja como pessoa, cidadão ou trabalhador.

Dada sua promulgação, a Constituição assumiu de imediato o vértice do sistema jurídico do país, conferindo-lhe validade. É possível afirmar que "os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos". 2 A partir daquele instante tornou nítida sua superioridade em relação às demais normas jurídicas, passando a ser a lei suprema do Estado, estruturando-o e organizando seus órgãos, segundo nos dá conta o mestre José Afonso da Silva.

Acrescenta Romeu Felipe Bacellar Filho a idéia de que

"Se uma das pedras de toque do Estado de Direito é a fixação do regime jurídico administrativo, com a Constituição de 1988 restou identificada a presença de um regime jurídico constitucional-administrativo, fundado em princípios constitucionais expressos: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, caput). O princípio da eficiência foi inserido na Constituição de 1988 pela Emenda Constitucional n.º 19/98 que veiculou a chamada ‘reforma administrativa’. A supremacia da Constituição, sobre todas as normas, impõe que o processo de produção legislativa e interpretação do Direito Administrativo seja levado a cabo conforme aqueles princípios constitucionais." 3

O Brasil possui uma das constituições mais modernas e democráticas do mundo, figurando já no art. 1º que "a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos a dignidade da pessoa humana". Destacou-se.

Quanto à supremacia constitucional, nos ensina Paulo Tadeu Rodrigues Rosa que Constituição "é a norma fundamental de qualquer ordenamento jurídico, e para que um país possa se fortalecer na democracia é preciso que esta seja observada e respeitada, na busca do aprimoramento da ordem interna e das próprias instituições". 4

2.2. O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A PREVISÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS INDIVIDUAIS

Antes de abordar o conceito de Estado Democrático de Direito, que reúne os princípios do Estado Democrático e do Estado de Direito, interessante conhecer o conceito de Estado trazido pelo professor Miguel Reale: "é a organização da Nação em uma unidade de poder, a fim de que a aplicação das sanções se verifique segundo uma proporção objetiva e transpessoal". 5

A presença da Constituição, substituindo o arbítrio pela sujeição a regras gerais e abstratas, é o núcleo do Estado de Direito, que é o princípio fundamental do qual derivam vários dos princípios incidentes no processo administrativo, pois a idéia original é a de que esse Estado cria o direito e submete-se ao mesmo em função da garantia dos indivíduos contra o arbítrio.

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O Estado de Direito surgiu como expressão jurídica da democracia liberal, alicerçando os direitos do homem, e por isso mesmo repousada no direito natural, imutável e universal, defendida, dentre tantos outros, por autores como Ulpiano e Hugo Grotius.

Sem embargo, conforme o legado do mestre Afonso Arinos, "a idéia democrática não pode ser desvinculada das suas origens cristãs e dos princípios que o Cristianismo legou à cultura política humana: o valor transcendente da criatura, a limitação do poder pelo Direito e a limitação do Direito pela justiça. Sem respeito à pessoa humana não há justiça e sem justiça não há Direito". 6

No entender de Hugo de Brito Machado, Estado Democrático de Direito "é aquele que se submete a regras previamente estabelecidas pelos representantes do povo. Trata-se de um Estado onde as relações entre governantes e governados são reguladas pelo direito. O Estado é legitimado e submisso à ordem jurídica". 7

Por sua vez, está fundado no princípio da soberania popular, "que impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública, participação que não se exaure na simples formação das instituições representativas, que constituem um estágio da evolução do Estado Democrático, mas não o seu completo desenvolvimento". 8

Analisando seu conceito constata-se a existência do chamado princípio da constitucionalidade, estando o Estado Democrático fundado na legitimidade de uma Constituição rígida, emanada da vontade popular, pressupondo "a existência de uma ordem legal ao lado de uma ordem legítima". 9

Tratando-se dos direitos individuais, estes foram precisamente conceituados por José Afonso da Silva, quando afirmou serem "aqueles que reconhecem autonomia aos particulares, garantindo a iniciativa e independência aos indivíduos diante dos demais membros da sociedade política e do próprio Estado. Por isso, a doutrina francesa costuma englobá-los na concepção de liberdade-autonomia". 10

Conhecidos também por direitos fundamentais, liberdades públicas, liberdades fundamentais ou mesmo direitos públicos subjetivos, os direitos individuais representam verdadeira limitação do Estado diante das pessoas com ele relacionadas, numa clara demonstração de proteção dos cidadãos em face do Estado.

Com reflexos no artigo 5º da Constituição Federal, essas limitações ao poder estatal têm por características serem inatas, invioláveis e imprescritíveis, devendo a vida social no Estado de Direito estar regulada por normas jurídicas submetidas não só os cidadãos, mas o próprio Estado.

Dentre tantas denominações, a expressão ‘direitos fundamentais do homem’ pareceu ser a mais adequada, pois além de referir-se a princípios que "resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas". 11

De modo preciso, Hely Lopes Meirelles, em 1975, já afirmava que "o poder sem o direito é tirania; o direito sem o poder é utopia e o poder com o direito é democracia" 12, demonstrando cabalmente a necessidade da inter-relação harmônica e pacífica do Direito com o poder legalmente constituído, indispensável à manutenção do Estado Democrático de Direito.

2.3. DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE: CONSIDERAÇÕES GERAIS

O novo modelo, plasmado pela Emenda Constitucional nº 19, de 04 junho de 1998, trouxe maior flexibilização ao sistema positivado pelo constituinte sem que esse fato tivesse gerado conflitos com os postulados do Estado Democrático de Direito previstos no art. 1º da Carta Política.

Trouxe ainda, maior ênfase às mudanças na Administração Pública, que passou a ser conhecida também por Administração Gerencial, numa busca do legislador pela modernização do modelo jurídico-administrativo brasileiro.

Essa preocupação ficou clara com a previsão constitucional, no artigo 37, do respeito do agente da administração pública ao princípio da legalidade: "A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência".

Desta forma, "o princípio da legalidade vincula o direito administrativo às disposições constitucionais" 13, o que justifica plenamente a realização deste estudo.

É de fácil constatação, visto que todos os autores que trataram do direito administrativo dedicaram algumas páginas ao estudo do princípio da legalidade, por ser este o "princípio capital para a configuração do regime jurídico-administrativo, entendido como específico do Estado Democrático de Direito, qualificando e dando-lhe identidade própria". 14

Sem embargo, toda a atividade do Estado, e em especial no aspecto Administração Pública, está vinculada ao princípio da legalidade e às demais normas constitucionais, sob pena de anulação dos atos administrativos.

Celso Antônio Bandeira de Mello preleciona que "o princípio da legalidade explicita a subordinação da atividade administrativa à lei e surge como decorrência natural da indisponibilidade do interesse público". 15

A legalidade, para Hely Lopes Meirelles, como princípio de administração, "significa que o administrador está, em toda sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se à responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso". 16

A autora Lúcia Valle Figueiredo vai mais longe, asseverando que "a legalidade não importa, exclusivamente, na sujeição da Administração à lei, mas também à submissão ao direito, ao ordenamento jurídico, às normas e princípios constitucionais". 17

Nesse aspecto, oportuno dizer da autora Maria Sylvia Zanella quando leciona que "o princípio da legalidade importa para a Administração somente fazer o que a lei permite, e em decorrência disso, a Administração Pública não pode, por simples ato administrativo, conceder direitos de qualquer espécie, criar obrigações ou impor vedações aos administrados; para tanto ela depende de lei". 18

Pensamento retratado no artigo 2º, parágrafo único, inciso I da Lei n.º 9.784/99 19, ao afirmar que "nos processos administrativos serão observados os critérios de atuação conforme a lei e o direito".

Também o direito comparado traduz o entendimento de que a Administração Pública deve estar em conformidade com a lei. Renato Alessi consagra em sua obra ‘Sistema Instituzionale del Diritto Amministrativo Italiano’, a da idéia de que "a Administração Pública só pode ser exercida na conformidade da lei e que, de conseguinte, a atividade administrativa é atividade sublegal, infralegal, consistente na expedição de comandos complementares à lei". 20

Acrescenta Vitor Nunes Leal que "se a administração não atende ao fim legal a que está obrigada, entende-se que abusou de seu poder" 21, entendimento reforçado por Caio Tácito com a obra ‘O abuso do poder administrativo no Brasil’, quando afirma que "o abuso de poder da administração é o reverso do princípio da legalidade da Administração Pública". 22

É importante ressaltar que o princípio da legalidade atua, acima de tudo, como uma segurança jurídica oferecida aos cidadãos, de modo que, ao indivíduo é reconhecido o direito de fazer tudo quanto a lei não tenha proibido, e "a Administração, além de não poder atuar contra legem ou praeter legem, só poderá agir secundum legem". 23

No direito público, especificamente no direito administrativo, a Constituição disciplina a atuação administrativa, impõe condutas, delega deveres-poderes e delimita o poder de legislar sobre a atuação administrativa. Nas palavras de Odete Medauar, ao dispor expressamente sobre a Administração Pública em tais preceitos, "a Constituição Brasileira de 1988 fixa as diretrizes fundamentais que devem nortear sua atuação; portanto, daí se extrai a conformação institucional e funcional da Administração Pública brasileira e os princípios informadores do próprio direito administrativo". 24

Da expressão "patere legem quam fecisti" (suporta a lei que fizeste) é possível entender que o administrador está sujeito à lei. Ele não é legislador e por isso mesmo não poderá legislar ao seu talante. Não cabe a ele questionar a lei e sim cumpri-la. Caso entenda que esta possui vícios deve provocar o Poder Judiciário para que este se pronuncie a respeito da questão.

Parece claro que as autoridades militares não estariam desobrigadas dessa imposição constitucional.

Veja-se, ipsis verbis, o entendimento do magnífico Celso Antônio Bandeira de Mello, ao afirmar que "nos termos do art. 5º, II, ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’. Aí não se diz ‘em virtude de’ decreto, regulamento, resolução, portaria ou quejandos". 25

A esse respeito Paulo Tadeu Rodrigues Rosa faz o seguinte alerta: "quanto ao princípio da legalidade na transgressão disciplinar militar este se faz necessário para a efetivação das garantias individuais, e deve ser observado tanto no aspecto judicial ou administrativo em cumprimento à Constituição Federal de 1988". 26

2.4. DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

O Estado Democrático de Direito reflete uma conquista histórica da sociedade brasileira após anos de intensos debates. Seus preceitos devem estar obrigatoriamente presentes para a proteção dos cidadãos em face de qualquer ameaça.

Inserido nesse Estado encontra-se o due process of law, representado, entre outros, pelos institutos da ampla defesa e do contraditório, que sintetizam o ápice histórico da evolução político-processual humana, reproduzindo uma ampla garantia do cidadão hipossuficiente em face do poder estatal.

Ao tratarmos do devido processo legal é necessário citar o art. 5º, inciso LIV da Constituição quando estabelece que "ninguém será privado da liberdade de seus bens sem o devido processo legal", cláusula do due process of law, que tem sua origem na Carta Inglesa de 1215.

As garantias do devido processo legal "nasceram e foram cunhadas para o processo penal, onde se fazia sentir com mais urgência a preocupação com os direitos do acusado. Entretanto, após um longo caminho evolutivo levou ao reconhecimento da aplicabilidade das garantias ao processo civil e, posteriormente, ao processo administrativo punitivo". 27

O aperfeiçoamento do Estado de Direito gerou a denominada ‘jurisdicionalização do processo administrativo’, pensamento que recai na submissão da Administração Pública ao princípio da legalidade, devendo os princípios do contraditório e da ampla defesa preceder toda e qualquer imposição de sanção.

O artigo 5º, inciso LV da Constituição Federal eximiu qualquer dúvida porventura existente quanto à importância destes princípios ao afirmar que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".

Durante o longo período de regime de exceção surgiram leis autoritárias e restritivas de direitos. Todavia, "o direito de defesa surgiu como inspiração do direito natural e divino, como expressão de filosofia jurídica que a ampla defesa e o contraditório são a materialização do mais decantado instituto produzido pela justiça dos homens: a igualdade perante a lei". 28

Constata-se, portanto, que somente após 1988 o processo administrativo passou a ter as mesmas garantias previstas para o processo judicial e para que a ampla defesa e o contraditório possam ser exercidos com a plenitude prevista pelo texto constitucional é preciso que o acusado tenha a liberdade de se voltar contra a acusação.

Tarefa difícil é viabilizar, no meio militar sem que para isso tenham que ser rompidos dogmas e padrões técnicos há muito consolidados.

A própria Constituição Federal, ao elevar a exigência do devido processo legal à categoria ‘dos Direitos e Garantias Fundamentais’, assegurou aos acusados em geral o contraditório e a ampla defesa, com os recursos e meios a ela inerentes.

Além disso, "ampliou a esfera de competência do Poder Judiciário para perquirir acerca dos elementos intrínsecos da legalidade do ato administrativo, sendo esse entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal na Súmula nº 21". 29

Neste sentido diz Hely Lopes Meirelles, "processo administrativo sem oportunidade de defesa ou com defesa cerceada é nulo, conforme têm decidido reiteradamente nossos Tribunais judiciais, confirmando a aplicabilidade do princípio constitucional do devido processo legal, ou mais especificadamente, da garantia da defesa". 30

Sobre esse assunto leciona Edgar Silveira Bueno Filho: "(...) quando haja leis processuais que não garantam um procedimento justo, pode-se, com base na cláusula due process of law, argüir a sua inconstitucionalidade ou pleitear-se a sua interpretação de acordo com o desejo constitucional, eis que do contrário estariam elas plenas da irrazoabilidade e irracionalidade (...)". 31

Com o intuito de preservar as garantias constitucionais e aplicar o princípio da legalidade nas sanções impostas pela Administração Pública, o legislador tornou indispensável a regular apuração das faltas disciplinares cometidas pelos servidores públicos.

O direito comparado, mais precisamente na Constituição Italiana em seu art. 24, 2 afirma que "a defesa representa um direito inviolável em todo estado e grau do procedimento jurisdicional – é mais do que o direito ao processo, é o direito ao processo justo".

Para alguns doutrinadores, o direito à defesa, tal a sua importância para o ordenamento jurídico, chega a ter caráter sagrado, comprovado pelo fato do próprio Deus ter perguntado a Caim antes de condená-lo pela morte de seu irmão:"Quid fecisti ?" 32

Lê-se ainda no evangelho a resposta de Nicodemus aos fariseus: "porventura condena a nossa lei um homem sem primeiro o ouvir e ter conhecimento do que faz ?" 33

Famosa é a frase do juiz Fortescue 34, que em uma de suas sentenças afirmou que "o princípio da ampla defesa é divino porque até Deus, em toda a sua onipotência, deu a Adão a oportunidade de ser ouvido e defender-se antes de ser expulso do paraíso".

Não pode haver limitações à produção da defesa que objetive contraditar questões levantadas pela acusação, como "não pode ser restrita a possibilidade de rebater acusações, alegações, argumentos, interpretações de fatos, interpretações jurídicas, para evitar sanções ou prejuízos no contexto em que se realiza". 35

Da Constituição Federal é possível entender que sem contraditório e ampla defesa não há processo administrativo. Mais que isso, ela exige, de forma incondicional, o procedimento em contraditório para que seja possível a aplicação da sanção disciplinar de qualquer espécie.

Tem-se que o direito militar, penal ou disciplinar, é um ramo especial da ciência jurídica que embora possua princípios próprios continua subordinado aos comandos constitucionais.

Como reflexo, tem-se que as garantias do Direito Processual Penal devem ser aplicadas às infrações administrativas, assim como o princípio da legalidade vale, em sua forma mais plena, no âmbito do direito administrativo.

O Exército tem o dever de punir o agente que pratique um ilícito administrativo, mas para aplicar a sanção deverá garantir, fazendo uso do devido processo legal, o direito de defesa, que será exercido da forma mais ampla possível, conforme previsão constitucional, sob pena da sanção tornar-se ilegítima e invalidável pela própria Administração Pública Militar e, caso isto não ocorra, pelo Poder Judiciário.

Em resumo, o princípio da ampla defesa e do contraditório é absoluto, não comporta exceções e é inerente a todos os tipos de processo, inclusive ao administrativo disciplinar militar.

Desse modo, qualquer ato punitivo estará eivado de vícios e erros, que os inquinam de ilegalidade, não sendo aptos a produzir efeito algum, consoante estabelece a Súmula 473, do STF: "A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial".

Consoante os ensinamentos ora analisados conclui-se que a punição disciplinar terá que ser imposta por autoridade hierárquica competente, em obediência ao objeto, à forma e ao motivo previstos nas normas que regulam o assunto, bem como deve ter por finalidade a normalidade e o aperfeiçoamento do serviço público, pois do contrário será inválido, porquanto, ilegal, por não se conformar com a lei que o autoriza.

2.5. DO CONTRADITÓRIO

Neste estudo não será aprofundada a questão específica do contraditório e da ampla defesa por não ser este o objeto primeiro, e porque tal demandaria ensaio específico.

Iniciando esta pesquisa, percebe-se que o contraditório brota da própria defesa e é estrutural na medida em que estabelece as bases processuais para a fruição da ampla defesa, desdobrando-se em dois momentos: a informação e a possibilidade de reação, visto que o conhecimento no contraditório é pressuposto para o exercício da defesa.

Para compreender a amplitude deste princípio imperativa uma nova leitura do art. 5º, inciso LV da Constituição Federal, que afirma que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".

A defesa garante o contraditório, que por ele se manifesta e é assegurada. "Esta defesa se faz possível graças a um de seus momentos constitutivos – a informação – e vive e se exprime por intermédio de seu segundo momento – a reação". 36

O contraditório encerra o princípio do audiatur et altera pars, segundo o qual deve ser ouvida também a parte contrária, sendo a ela oferecida a oportunidade e a efetividade de resposta.

Desse aspecto trata Ives Gandra Martins ao afirmar que "a todo ato produzido caberá igual direito da outra parte de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que lhe convenha, ou ainda de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feito pelo autor. Daí o caráter dialético do processo que caminha através de contradições a serem finalmente superadas pela atividade sintetizadora do juiz." 37

A garantia do contraditório é manifestação autêntica do Estado Democrático de Direito e, por isso mesmo, inimiga natural dos valores expressos em normas gestadas em períodos de exceção, oferecendo às partes a possibilidade de atuação na formação da convicção do juiz.

A Constituição Federal de 1988 inovou nesta matéria, pois no ordenamento anterior o contraditório era previsto apenas na instrução criminal, ficando a aplicação da ampla defesa na órbita administrativa na dependência de interpretação extensiva.

2.6. DA AMPLA DEFESA

Segundo este princípio fundamental encartado no art. 5º da Lei Maior, a ampla defesa estabelece a possibilidade de serem trazidos ao conhecimento da autoridade julgadora todos aqueles elementos de prova, proporcionando a defesa ao acusado.

Consiste em reconhecer ao acusado o direito de saber que está e porque está sendo processado; de ter vista do processo administrativo disciplinar para apresentação de sua defesa preliminar, produzindo as provas que entender necessárias à mesma.

O servidor tem assegurado, por meio deste princípio, condições de esclarecer os fatos levantados contra ele, e tal é a amplitude desta garantia que lhe é possibilitado calar ou apresentar versão que não corresponda à verdade.

A amplitude alcançada pelo uso do direito de defesa será fator determinante da característica liberal do Estado de Direito previsto em nossa Constituição Federal.

Com acerto, Egberto Maia Luz comenta:

O exercício da ampla defesa há de ser devidamente operacionalizado dentro do processo, seja ele judicial ou administrativo, sob pena do mesmo ser declarado nulo por revisão do Poder Judiciário, por ser requisito inafastável de qualquer processo administrativo sendo o exercício do direito de defesa amplo, sagrado e constitucionalmente assegurado a toda pessoa contra quem é intentada uma acusação. 38

Encerrando, destaca-se o pensamento de Celso Antônio Bandeira de Mello que, reafirmando o respeito aos preceitos constitucionais afirma: "a Administração Pública não poderá proceder contra alguém passando diretamente à decisão que repute cabível, pois terá, desde logo, o dever jurídico de atender o contido nos mencionados versículos constitucionais". 39

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SULIANO, José Halley Fernandes. Faltar à verdade no processo administrativo disciplinar castrense frente os direitos e garantias constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. -182, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3625. Acesso em: 23 dez. 2024.

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