3. DA FUNÇÃO ADMINISTRATIVA MILITAR
3.1. DAS FORÇAS ARMADAS
Prosseguindo nesse estudo, mas antes de passar a contrapor os princípios constitucionais ao previsto no item 1 do Anexo 1 do Regulamento Disciplinar do Exército (RDE) é importante salientar as características fundamentais da profissão militar e as leis que a regem.
Quanto à origem e evolução histórica do Exército Brasileiro, sabe-se que este teve origem no sentimento nativista que impulsionou os sonhos de liberdade de nossa Nação, tendo seu marco na Batalha de Guararapes, ocorrida em 19 de abril de 1648, quando portugueses, negros e índios aliaram-se para expulsar o invasor holandês.
Entretanto, somente em 1767 e por influência do Marquês de Pombal foi organizado um exército nos moldes do Exército Real Português, tendo sido elevado à categoria de Instituição com a Carta Constitucional de 25 de março de 1824.
Após a Independência do jugo português a atuação do Exército Brasileiro foi decisiva para derrotar as tentativas de fragmentação territorial e social do país, tendo participado ativamente da manutenção da unidade nacional.
No âmbito internacional, teve participação vitoriosa na Guerra da Tríplice Aliança ocorrida na segunda metade do século XIX, e envolvendo as grandes potências do continente sul-americano.
Sintonizado com as diversas camadas da sociedade brasileira, o Exército teve papel decisivo na proclamação e consolidação dos ideais republicanos.
Participou da 1ª Guerra Mundial enviando equipes médicas e apoio naval, experimentando, com o fim dos combates, um período de soerguimento profissional, dos quais destaca-se o trabalho do Marechal Cândido Rondon, responsável pela interligação dos sertões aos grandes centros, fato merecedor de reconhecimento internacional.
Em 1942 declarou guerra às potências do Eixo, enviando uma força expedicionária ao teatro de operações europeu, tendo atuado nos campos de batalha italianos.
A vitória na guerra, aliada a fatores políticos, foi a responsável pela evolução do Exército e da sociedade brasileira. 40
O art. 2º do Estatuto dos Militares – Lei 6.880, de 09 de dezembro de 1980 – dispõe que "As Forças Armadas, essenciais à execução da política de segurança nacional, são constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica; e destinam-se a defender a Pátria e a garantir os poderes constituídos, a lei e a ordem. São instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei".
A missão das Forças Armadas foi estabelecida pelo constituinte de 1988 no artigo 142 da seguinte forma: "As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, Exército e Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".
Sua destinação, como parece claro, está voltada à defesa nacional externa e interna. Entretanto, as Forças Armadas, pelo alto grau de confiabilidade perante a população, têm sido utilizadas para diversas situações de crise, tais como: missões de paz da ONU, greves das Polícias Militares, entrega de alimentos em regiões afetadas pela seca, apoio nas situações de enchentes e epidemias e na vacinação de populações ribeirinhas, entre outras.
Estão subordinadas constitucionalmente ao Presidente da República, como previsto no art. 84, XIII, que prescreve que "compete privativamente ao Presidente da República exercer o comando supremo das Forças Armadas, nomear os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, promover seus oficiais-generais e nomeá-los para os cargos que lhe são privativos".
Esta nova redação foi dada pela Emenda Constitucional n.º 23 de setembro de 1999, que criou o Ministério da Defesa, substituindo os cargos de Ministros Militares por Comandantes de cada Força.
3.2. DOS AGENTES MILITARES
É possível conceituar o servidor militar, aproveitando a definição mais ampla de servidor público, como "aquele que entretêm com o Estado e com as pessoas de Direito Público da Administração indireta relação de trabalho de natureza profissional e caráter não eventual sob vínculo de dependência". 41
Entretanto, o capítulo que trata dos Servidores Públicos Militares foi alterado pela Emenda Constitucional n.º 18/98, e atualmente estes são denominados agentes públicos militares ou simplesmente agentes militares. Em conseqüência, a organização e o regime jurídico diferem da prevista para os servidores públicos civis.
O ingresso na carreira militar poderá ocorrer mediante incorporação, matrícula ou nomeação, de acordo com o art. 10. do Estatuto dos Militares. Pode ocorrer por recrutamento, que é a convocação para a prestação do serviço militar ou ainda por concurso público para ingresso nas escolas formadoras de oficiais e sargentos.
Ao fazer uso do concurso público a instituição cumpre imposição constitucional prevista no art. 37, inciso II, privilegiando a igualdade de oportunidades.
Ressalte-se que para a matrícula nos estabelecimentos de ensino militar serão observadas, além da aptidão intelectual, verificada com a classificação, as seguintes condições: ser brasileiro nato, limite de idade, capacidade física e idoneidade moral.
Os militares são separados, "por força constitucional, em oficiais e praças. Os primeiros têm patente, título e posto. As praças têm somente título e graduação (soldado, cabo, sargento e subtenente)". 42
A carreira militar é caracterizada por atividade continuada e inteiramente devotada às finalidades precípuas das Forças Armadas, denominadas atividades militares, conforme art. 142, incisos II e III do § 3º da Constituição Federal.
Essas disposições impõem ao militar uma série de restrições, sendo vedado, por exemplo, o direito à greve e à sindicalização. Essas proibições visam à manutenção da ordem e da hierarquia, possibilitando a defesa continuada e ininterrupta da Nação e da ordem pública.
Da igual modo ficam impedidos de filiar-se a qualquer partido político embora seus direitos políticos estejam garantidos constitucionalmente, conforme art. 14, § 8º. Abra-se uma ressalva aos conscritos, que não podem se alistar como eleitores durante o serviço militar obrigatório, de acordo com previsão constitucional do art. 14, § 2º.
Além disso, "ao militar da ativa é vedado comerciar ou tomar parte na administração ou gerência de sociedade ou dela ser sócio ou participar, exceto como acionista ou quotista de sociedade anônima ou por quotas de responsabilidade", de acordo com o art. 29. do Estatuto.
De acordo com a leitura do art. 3º do Estatuto, entende-se que "os membros das Forças Armadas, em razão de sua destinação constitucional, formam uma categoria especial de servidores da Pátria e são denominados militares". Esse texto foi ratificado pela Magna Carta de 1988, que no art. 142, § 3º afirma que "os membros das Forças Armadas são denominados militares".
Preferível, entretanto, aliar o previsto no respectivo Estatuto ao que diz Eliezer Pereira Martins, para quem a condição de agente administrativo do serviço público militar "decorre do fato de ser ele vinculado ao Estado por relação profissional, por estar sujeito à hierarquia funcional militar e ao especial regime estatutário que regula a atuação do profissional das armas". 43
Poucas profissões estão tão fortemente inseridas no profissional que opta por abraçá-la, mais parecendo uma "segunda pele", que a profissão militar.
Nela são encontrados valores essenciais como o patriotismo arraigado, a crença no povo e na Pátria brasileira, a quem os militares juram a própria vida em sacrifício, e o civismo, refletido no culto às tradições históricas.
3.3. DA HIERARQUIA E DA DISCIPLINA
Ao tratar do Exército é obrigatório discorrer sobre o aspecto hierarquia, que sem dúvida, é pedra angular da Força Terrestre, em que "a unidade deve ser mais firme, a coesão maior e o espírito e moral superiores". 44
Tal é a prova da relevância da disciplina e da hierarquia que ambas foram alçadas à condição de base institucional das Forças Armadas, que as têm como alicerces.
Cretella Júnior nos ensina que "o vocábulo ‘hierarquia’ veio do grego, por meio do latim eclesiástico. Suas bases são as palavras hierós, que significa sagrado e arkhia, que se traduz por comando, e passou da linguagem religiosa para a profana e mais tarde para a linguagem militar, vindo a adquirir o sentido técnico de subordinação, escalonamento e dependência." 45
O dicionário Aurélio da língua portuguesa traz a definição de hierarquia militar como "a ordenação da autoridade, em diferentes níveis, dentro da estrutura das Forças Armadas"; e entende disciplina como sendo "a ordem que convém ao funcionamento regular de uma organização militar". 46
Tem-se que o vocábulo hierarquia, derivado do grego, "designava o poder maior ou a autoridade proeminente", enquanto disciplina, derivado do latim, são "deveres morais ou de bons costumes, entrelaçados com preceitos que se impõem à maneira de agir dentro e fora da instituição ou corporação, cuja transgressão pode motivar sanções disciplinares". 47
O conceito de hierarquia envolve a idéia de autoridade do superior sobre o subordinado, ou seja, "o poder de coordenação da subordinação existente entre os vários órgãos e agentes da Administração, com a respectiva distribuição de funções e autoridade de cada um". 48
Precioso entendimento é trazido por Amador Cysneiros neste texto que ora se traz à colação:
"(...) o vocábulo subordinação, que significa ordem estabelecida entre pessoas, de modo que umas ficam dependentes das outras. E, não resta dúvida que é sobre o princípio da subordinação que reside toda a vida, toda consistência das Forças Armadas. Sem a subordinação existiria o caos, porque ela é a alma da disciplina, esse amálgama que une todas as menores partes do todo, tornando-o coeso, pronto, ágil para a ação e para a luta. (...) É como uma corrente cujos elos precisam estar sempre ligados e esses elos nada mais são do que o princípio da ordem no sentido de colocação; os elos estão sub...ordenados, um abaixo do outro, na superposição de que de cima para baixo parta a voz que prepondera e de baixo para cima o sentimento que obedece, que acata, que aceita. Subordinação, pois, significa: debaixo de ordens. É o fundamento da hierarquia". 49
O excelente Pontes de Miranda também contribuiu ao dizer que hierarquia "é conceito relativo a círculo dentro do qual ela se exerce. Não alude a governação, comando efetivo, a kratos (autocracia, democracia, aristocracia), e sim a archos (monarquia, oligarquia, anarquia), que significa ser guia, posição, algo de topológico em escalonamento". 50
Para o mestre Celso Antônio Bandeira de Mello, a hierarquia pode ser definida como o "vínculo de autoridade que une órgãos e agentes, através de escalões sucessivos, numa relação de autoridade, de superior a inferior, de hierarca a subalterno". 51
Ele faz questão de frisar que "os poderes do hierarca conferem-lhe uma contínua e permanente autoridade sobre toda a atividade administrativa dos subordinados". 52
Por sua vez, o Estatuto dos Militares estabelece, em seu art. 14, que "a hierarquia e a disciplina são a base institucional das Forças Armadas. A autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierárquico". Além disso, traz no parágrafo 1º que "a hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas. A ordenação se faz por postos ou graduações; dentro de um mesmo posto ou graduação se faz pela antigüidade no posto ou na graduação. O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à seqüência de autoridade".
Vale aqui uma ressalva feita no art. 35. do Estatuto dos Militares de que "a subordinação não afeta, de modo algum, a dignidade pessoal do militar e decorre, exclusivamente, da estrutura hierarquizada das Forças Armadas".
A hierarquia reflete-se também no dever-poder de punir, em que a autoridade militar, para manter a boa ordem do serviço e também como forma de assegurar a observância dos deveres prescritos aplica sanções disciplinares estabelecidas em lei aos subalternos que cometerem infrações funcionais.
Apesar de indissociáveis estes conceitos não se confundem, pois a disciplina pressupõe uma relação hierárquica, visto que somente estará obrigado a obedecer quem está subordinado hierarquicamente. Para Hely Lopes Meirelles, "tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública". 53
Dentro dessa idéia, encontra-se de forma expressa no artigo 6º do RDE a definição de disciplina militar, que é entendida como "a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e cada um dos componentes do organismo militar".
O parágrafo 2º do mesmo artigo estabelece ainda que "a disciplina e o respeito à hierarquia devem ser mantidos permanentemente pelos militares na ativa e na inatividade".
Em síntese, o militar no cumprimento de suas funções deve observar dois preceitos fundamentais: a hierarquia e a disciplina. A inobservância destes preceitos poderá configurar a prática de falta administrativa denominada transgressão disciplinar.
Apontam-se como manifestações essenciais da disciplina militar, dentre outras atitudes, "a obediência pronta às ordens do chefe, a rigorosa observância às prescrições dos regulamentos (...)" 54 (sem itálico no original).
Reforçando esse pensamento diz o professor Cretella Júnior que "hierarquia, disciplina, ordem, obediência e administração constituem um mesmo bloco de idéias afins sem as quais o direito administrativo e o direito disciplinar perderiam sua razão de ser". 55
A preservação da hierarquia e da disciplina no seio das Forças Armadas de qualquer país é imprescindível, mas da mesma forma é imprescindível a obediência aos limites da lei. Exemplos na história mundial não faltam para demonstrar o que pode gerar o abandono dos princípios basilares da hierarquia e da disciplina.
Exigir do militar a obediência às normas e regulamentos castrenses está inserido no cumprimento dos preceitos regulamentares. Sancionar aqueles que não cumprem seu dever legal é, antes de tudo, dever das autoridades competentes. Entretanto, a partir do momento em que as autoridades militares ultrapassam seu poder de punir e aplicam sanções disciplinares excessivas e, portanto ilegais, infringem os princípios constitucionais. Nesse momento não é possível calar e aceitar que o cidadão tenha seus direitos desrespeitados.
Caem a lanço as palavras do General de Exército Luís Gomes de Almeida, ex-ministro do Superior Tribunal Militar, pela lucidez e inteligência demonstradas: "o Exército é uma organização permanente baseada na hierarquia e na disciplina, porém, mesmo assim, a Justiça e o Direito devem imperar em nossa Organização, porque em caso contrário seria o império do arbítrio que fatalmente nos levaria à dissolução". 56
Infelizmente, em alguns processos administrativos militares as garantias constitucionais têm sofrido limitações em nome da hierarquia e da disciplina tão defendidas pela Força Terrestre. As autoridades devem entender que as modificações surgidas com a Constituição Federal em vigor alcançaram também a área militar. Daí concluir-se que o rigoroso cumprimento dos princípios previstos nos regulamentos militares pode e deve continuar a ser observado, desde que não esteja a violar quaisquer preceitos constitucionais.
É perfeitamente viável realizar um trabalho baseado na hierarquia e na disciplina ao mesmo tempo em que são observados os princípios que regem a Administração Pública Militar, alcançando-se assim, a segurança jurídica necessária aos atos administrativos militares, entendidos como "aqueles provenientes da Administração Militar e que criam, modificam, ou extinguem situação jurídica em relação ao servidor militar ou aos próprios órgãos dela integrantes". 57
Este ensaio monográfico não busca suprimir da Administração Militar o legítimo direito de sancionar o agente que cometer transgressões disciplinares, todavia, esta sanção não pode ser arbitrária ou discricionária.
O legislador assegurou aos cidadãos (civis e militares), as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, que devem ser observadas pela administração em todo procedimento administrativo.
Paulo Rodrigues Rosa consegue de forma extraordinária aclarar a idéia de hierarquia e disciplina, que ora se transcreve:
"O respeito à hierarquia e à disciplina não pressupõe o descumprimento dos direitos fundamentais assegurados ao cidadão, uma vez que a Constituição Federal em nenhum momento diferenciou no tocante às garantias fundamentais disciplinadas no art. 5º, o cidadão militar do cidadão civil, uma vez que o miliciano antes de estar na caserna foi um dia civil, e após a sua aposentadoria voltará novamente a integrar os quadros da sociedade.(...)
O rigor da disciplina militar não deve afastar a efetiva aplicação dos preceitos constitucionais. O infrator deve ser punido e quando necessário afastado dos quadros militares, mas em conformidade com a lei, com observância do devido processo legal". 58
Resumiu de forma brilhante o ex-ministro Jarbas Passarinho que "o cidadão porque veste a farda não perde as suas garantias nem o seu direito de defesa". 59
3.4. DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR MILITAR
O direito administrativo surgiu na Europa no século XVIII como um conjunto de regras especiais para excepcionar as normas do direito civil quando das relações com a Administração Pública, tendo no interesse público a razão de ser dos poderes administrativos.
A Administração Pública Militar é ramo especializado da Administração Pública, estando diretamente subordinada ao Chefe do Poder Executivo e aos princípios constitucionais, conforme prevê o caput do art. 37. da Constituição Federal: "A administração pública direta e indireta e as empresas paraestatais da União, dos Estados e dos Municípios, encontram-se sujeitos aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficácia".
Para estabelecer uma Administração Pública compatível com os postulados do Estado Democrático de Direito, o texto constitucional vigente fixou princípios para a administração indireta, devendo a vontade administrativa reconhecer e acatar os direitos de seus administrados, objetivando o melhor cumprimento dos fins da administração.
Em função disso, no atual estágio, o direito administrativo disciplinar militar passa por absoluta revisão. Não seria incorreto afirmar que na verdade o direito administrativo disciplinar na órbita militar, "enquanto conjunto de princípios sistematizados nasce com o advento da Constituição de 1988, mais exatamente com a extensão dos princípios da ampla defesa e do contraditório para a esfera administrativa, equiparando deste modo o processo administrativo ao processo em juízo". 60
Sabe-se que no direito brasileiro a administração exerce um poder de tutela jurídica dos direitos e interesses públicos, submetendo-se em sua atuação ao princípio da legalidade e ao dever de não ocasionar, em contrariedade à lei, prejuízos a direitos e interesses dos cidadãos, no caso específico, aos militares, que são regidos por regulamentos disciplinares, e estão sujeitos aos Tribunais Militares.
Esses Tribunais remontam ao período do Império Romano, quando a expansão fez surgir a necessidade de ampliar a ação do pretor, antes sediado em Roma, nos acampamentos militares, designados ‘Castros’, advindo daí a Justiça castrense.
Porém, antes de adentrar-se na área do direito administrativo disciplinar, é fundamental entender a definição de poder disciplinar, e para tal, tem-se em Hely Lopes Meirelles a melhor definição:
"Poder disciplinar é a faculdade de punir internamente as infrações funcionais dos servidores e demais pessoas sujeitas à disciplina dos órgãos e serviços da Administração. É uma supremacia especial que o Estado exerce sobre todos aqueles que se vinculam à Administração por relações de qualquer natureza, subordinando-se às normas de funcionamento do serviço ou do estabelecimento que passam a integrar definitiva ou transitoriamente." 61
A partir daí é possível entender o poder disciplinar que reconhece à Administração Pública o direito de punir aqueles servidores que cometam infrações funcionais, fundamentado na supremacia que ela exerce sobre as pessoas que a ela se ligam por relações jurídicas específicas.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro também deu sua contribuição ao analisar o poder disciplinar, tendo-o definido como "aquele que cabe à Administração Pública para apurar infrações e aplicar penalidades aos servidores públicos e demais pessoas sujeitas à disciplina administrativa; é o caso das que com ela contratam". 62
De forma semelhante, Eliezer Pereira Martins entende por poder disciplinar como "o poder dado à autoridade pública para punir as infrações administrativas, quer sejam dos serviços públicos, quer dos funcionários, aplicando-se-lhes penalidades disciplinares". 63
O Estado, pessoa jurídica soberana, realiza os objetivos traçados pelo Poder Executivo por meio da administração pública, sendo responsáveis por esta realização os órgãos e pessoas que a integram.
Embora o poder do Estado seja uno e indivisível, suas funções são distribuídas para facilitar sua administração, e os objetivos são atingidos com o trabalho desenvolvido pelos servidores que integram seus quadros e são os grandes responsáveis pela movimentação da máquina administrativa.
"A sanção reflete uma das manifestações concretas do exercício da função administrativa", 64 e a Administração Pública tem o dever-poder de sancionar comportamentos considerados inadequados de seus agentes. As autoridades estão obrigadas a instaurar sindicância ou processo administrativo disciplinar para apurar a autoria e a materialidade do fato, não cabendo ao agente decidir pela apuração ou não do mesmo, sob pena de incorrer no crime de condescendência criminosa, previsto no art. 320. do Código Penal.
A esse respeito o art. 43. do Estatuto dos Militares estabelece que "a inobservância dos deveres especificados nas leis e regulamentos, ou a falta de exação no cumprimento dos mesmos, acarreta para o militar responsabilidade funcional, pecuniária, disciplinar ou penal, consoante a legislação específica" e "a apuração da responsabilidade funcional, pecuniária, disciplinar ou penal poderá concluir pela incompatibilidade do militar com o cargo ou pela incapacidade para o exercício das funções militares a ele inerentes".
A doutrina nos ensina que o direito administrativo disciplinar tem como pressuposto a competência constitucional da Administração Pública para "impor modelos de conduta e as respectivas sanções, não só aos seus servidores, mas também às pessoas físicas ou jurídicas que, de alguma forma, incidam em condutas administrativamente reprováveis". 65
Todavia, a aplicação destas normas exige processo judicial ou procedimento administrativo, em que deve ser respeitado o princípio do devido processo legal, sendo observadas as garantias constitucionais genéricas que atingem e limitam esses processos, conforme previsto no art. 5º, inciso LIV.
Este aspecto foi observado pelo legislador ao editar a Lei n.º 9.784/99, no tocante às garantias da prestação administrativa, transparecendo o binômio da institucionalização das normas básicas processuais administrativas: segurança e celeridade.
Em seu artigo 2º a lei dispõe que o processo administrativo "atuará conforme a lei e o Direito". Estabelecendo também, a "adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público".
Não há maiores divergências entre os doutrinadores quanto o pleno respeito da Administração Pública ao princípio do devido processo legal inserido no processo administrativo disciplinar.
O direito administrativo disciplinar deve obrigatoriamente ser exercido no momento da aplicação do ius puniendi ao servidor que tenha cometido falta funcional; não podendo o respeito aos princípios constitucionais ser menosprezado em nome de uma administração eficiente.
3.5. DA TRANSGRESSÃO DISCIPLINAR MILITAR
O Regulamento Disciplinar do Exército, conforme previsto no artigo 1º, tem por finalidade "especificar as transgressões disciplinares e estabelecer normas relativas a punições disciplinares, comportamento militar das praças, recursos e recompensas".
A definição de transgressão disciplinar manifesta-se no art. 12. do RDE, como sendo "qualquer violação dos preceitos de ética, dos deveres e das obrigações militares, na sua manifestação elementar e simples".
O artigo seguinte cita as transgressões disciplinares como "todas as ações ou omissões contrárias à disciplina militar especificadas no Anexo 1 do RDE" e ainda "todas as ações ou omissões, não especificadas na relação de transgressões do anexo acima citado, nem qualificadas como crime nas leis penais brasileiras, que afetem a honra pessoal, o pundonor militar, o decoro da classe e outras prescrições estabelecidas no Estatuto dos Militares, leis e regulamentos, bem como aquelas praticadas contra normas e ordens de serviço emanadas de autoridade competente".
Destaque-se, ainda, o entendimento de Paulo Tadeu Rodrigues Rosa, sobre transgressão disciplinar:
"Toda ação ou omissão contrária ao dever militar, e como tal classificada nos termos do presente regulamento. Distingue-se do crime militar que é ofensa mais grave a esse mesmo dever, segundo o preceituado na legislação penal militar. São consideradas ainda, também, transgressões disciplinares, as ações ou omissões não especificadas no presente artigo e não qualificadas como crimes nas leis penais militares, contra os Símbolos Nacionais, contra a honra e o pundonor individual militar; contra o decoro da classe, contra os preceitos sociais e as normas da moral; contra os princípios de subordinação, regras e ordens de serviços, estabelecidas nas leis ou regulamentos, ou prescritas por autoridade competente." 66
Estará o militar sujeito às transgressões previstas de forma taxativa no regulamento se suas faltas não chegarem a constituir crime, assegurada a observância dos princípios da legalidade e do devido processo legal.
Por outro lado, "se um militar viola bem jurídico que tenha importância relevante para o direito, como a vida, a integridade, a imagem da administração pública militar, não estará praticando uma contravenção ou transgressão disciplinar, mas um crime e ficará sujeito a uma sanção". 67
Aliado a esses conceitos, o RDE ordena e classifica, em seu art. 19, as transgressões disciplinares em leves, médias ou graves.
Entenda-se como transgressão disciplinar grave como "aquela que constitui ato que afete a honra pessoal, o pundonor militar ou o decoro da classe", conforme definição prevista no art. 20.
Estes conceitos serão mais bem aproveitados num segundo momento, mas desde já devem ser acrescentados aos conhecimentos do leitor.
Em virtude da existência de uma gama de conceitos e previsões regulamentares, ainda sobrevive no RDE a descrição de transgressão disciplinar que encerra a reprovação pela não confissão da transgressão, entenda-se faltar à verdade. Essa previsão, entretanto, é absolutamente destituída de antijuridicidade, não contrariando a determinação legal, por conta das inovações constitucionais.
Daí constatar-se, de forma mais simplificada, que o quadro das transgressões disciplinares militares descritas no RDE "não corresponde à antijuridicidade vigente. Desta forma, nem tudo que é típico no Regulamento Disciplinar do Exército é antijurídico, devendo o aplicador deste ter cuidado redobrado ao realizar as imputações". 68 Isso implica na necessidade imediata de reformar o regulamento por ser este incompatível, em alguns aspectos, com a Lei Maior.
Não se discute que democracia pressupõe a punição de forma exemplar daqueles que tenham porventura violado os mandamentos da lei, mas no momento de punir os elementos vinculados a Administração Pública "deve agir em conformidade com o sistema que foi escolhido a partir do momento em que abandonou a autotutela", 69 objetivando não apenas a preservação da disciplina, mas o atingimento da justiça.
Como diz Eliezer Pereira, "só quando a autoridade disciplinar impõe a sanção administrativa com o comedimento necessário, obedecendo ao due process of law, e objetivando a reeducação do subordinado é que os laços de disciplina se reforçam e a credibilidade do comando aumenta". 70
O artigo 21 do RDE estabelece que "a punição disciplinar objetiva a preservação da disciplina e deve ter em vista o benefício educativo ao punido e à coletividade que ele pertence". Dessa forma os agentes públicos demonstrarão ao militar sancionado que não buscam na punição atingir sua dignidade, mas sua correção de sua atitude, pois o direito deve fornecer respostas proporcionais e adequadas às atitudes ilícitas dos homens, não sendo admitidos excessos.
O artigo 33, reforçando a idéia, afirma que "aplicação da punição deve ser feita com justiça, serenidade e imparcialidade, para que o punido fique consciente e convicto de que a mesma se inspira no cumprimento exclusivo do dever, na preservação da disciplina, e que tem em vista o benefício educativo do punido e da coletividade".
Ao ser aplicada a punição administrativa, esta "deve ser eficaz, quando comprovada a culpabilidade do agente, para se evitar o cometimento de novas infrações" 71 havendo proporcionalidade entre o aspecto educativo da sanção e a falta cometida, evitando-se assim, o excesso e a prática de arbitrariedades.
As autoridades militares devem estar atentas às mudanças dos novos tempos. O acesso à justiça, embora ainda não seja o desejado, está muito mais fácil, até pelo nível de conscientização cada vez maior dos cidadãos.
Ao realizar um trabalho correto e transparente estar-se-á poupando tempo e recursos da administração pública, impedindo que ela venha a ser acionada judicialmente por aquele que se achar injustiçado.
Finalizando essa Seção, e fazendo uso do previsto no artigo 42 do RDE, quando afirma: "a autoridade que tome conhecimento de comprovada ilegalidade ou injustiça na aplicação de punição e não tenha competência, para anulá-la (...), deve propor, fundamentando, a sua anulação à autoridade competente"; o acadêmico vem, por meio deste ensaio monográfico expor um problema e fazer um alerta quanto à correta aplicação dos princípios constitucionais naquele Regulamento, em específico no número 1 do Anexo 1, que trata do faltar à verdade que está sendo aplicado mesmo nas situações em que o militar está submetido a processo administrativo e, portanto, exercendo o direito constitucional de defesa.
3.6. DA SANÇÃO ADMINISTRATIVA DISCIPLINAR MILITAR
Entendido o conceito de transgressão disciplinar e sua previsão no RDE, passa-se a tratar do conceito de sanção, e de sua aplicação aos militares, visto que a Administração Militar deverá exercer o ius puniendi objetivando reeducar seu subordinado.
Dando prosseguimento a esse estudo, tem-se que sanção disciplinar é espécie do gênero sanção administrativa, guardadas suas peculiaridades. Entretanto, a doutrina brasileira considera que a primeira apresenta diferenças substanciais quando comparada à sanção penal e observado o conteúdo finalístico de ambas.
Embora o objetivo comum seja a restauração da paz no ordenamento jurídico e a reprimenda do transgressor para que sejam tutelados determinados valores sociais, a sanção disciplinar assegura o bom funcionamento interno dos serviços e da ordem administrativa, ao passo que a sanção penal busca assegurar a paz social e valores sociais mais amplos.
Lembrando a Seção anterior, ato disciplinar é aquele comportamento interno da Administração, concretizado pela autoridade militar competente, para aplicar uma sanção disciplinar ao subordinado que tenha cometido falta funcional, velando pela regularidade e aperfeiçoamento dos serviços realizados na Corporação, e desde que observados forma, objeto e motivo previstos em lei.
Veja-se o magistério de Fábio Medina Osório que, com efeito, afirma que
"Conceituar sanção administrativa é premissa fundamental para delimitação do âmbito de incidência do Direito Administrativo Sancionador, acrescentando ainda que há de ser conceituada a partir do campo de incidência do direito administrativo, formal e material. Para ele as sanções administrativas aparecem como uma possível manifestação ou projeção do Direito Administrativo, do regime jurídico de Direito Público a que se submetem determinadas relações jurídicas." 72
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello conceitua sanção administrativa como "o ato administrativo unilateral, discricionário, pelo qual se aplicam penalidades a terceiros pela inobservância dos respectivos deveres. Pode consistir em punição aos titulares dos órgãos da Administração Pública, portanto, interna, ou aos particulares em geral, e, destarte, externa". 73
Acompanhando esse raciocínio é possível, segundo o professor Daniel Ferreira, conceituar sanção como "a direta e imediata conseqüência jurídica, restritiva de direitos, de caráter repressivo, a ser imposta no exercício da função administrativa, em virtude de um comportamento juridicamente proibido, comissivo ou omissivo". 74
Continua ele afirmando que a finalidade é desestimular a prática de condutas juridicamente reprováveis, "mediante imposição de conseqüências desfavoráveis, danosas, a quem a lei previamente determinar". 75
Ao apenar seu servidor, a Administração Pública visa à manutenção normal de seu próprio funcionamento, de modo a resguardar seu prestígio. Seria uma espécie de autoproteção, pois a instituição não pode ficar inerte perante o cometimento de faltas funcionais de seus agentes.
Buscando o direito comparado, Suay Rincón entende que sanção administrativa é "cualquier mal infligido por la Administración a un administrado como consecuencia de una conducta ilegal a resultar de un procedimiento administrativo y com una finalidad puramente repressora". 76
Então, a que sanções estariam sujeitos os militares? A resposta está no art. 22. do RDE, que as classifica na seguinte ordem: I – advertência; II – repreensão; III – detenção; IV – prisão e prisão em separado; V – licenciamento e exclusão a bem da disciplina.
A advertência é conceituada no art. 23. como "a forma mais branda de punir, consistindo numa admoestação feita verbalmente ao transgressor, podendo ser em caráter reservado ou ostensivo".
A repreensão é "uma censura enérgica ao transgressor, feita por escrito e publicada em boletim interno". Está prevista no art. 24. do RDE.
A detenção, pelo dispositivo seguinte, é o "cerceamento da liberdade do punido, que deve permanecer em local que lhe for determinado pela autoridade que aplicar a punição, sem que fique, no entanto, encarcerado".
O art. 26. traz o conceito de prisão, que consiste no "encarceramento do punido em local próprio e designado para tal". Existe ainda a possibilidade do militar ser encarcerado isoladamente, mas não será objeto deste ensaio.
Por fim, o art. 30. trata do licenciamento e exclusão a bem da disciplina, consistindo no "afastamento, ex-officio, do militar das fileiras do Exército".
A lei existe e é clara. Resta agora ser observada e cumprida. Ao ser violada surge para o Estado o dever de punir o infrator, que poderá ter seu jus libertatis cerceado. Entretanto, para o Estado aplicar o direito de punir, o chamado ius puniendi, devem existir indícios de autoria e materialidade e pressupõe a observância do direito de defesa, de forma ampla e irrestrita. Deve, portanto, estar submetido a um único regime jurídico constitucional.
3.7. DO DIREITO CONSTITUCIONAL DE NÃO PRODUZIR PROVA CONTRA SI MESMO
Louri Geraldo Barbieri 77, em trabalho específico sobre o direito constitucional do réu ao silêncio, buscou dar um enfoque ao privilégio contra a auto-incriminação. Este passou a adquirir forma moderna no direito anglo-saxão, com a Magna Carta Libertatum de 1215, reconhecida como princípio do direito comum e incorporada ao texto constitucional de 1988.
Do latim "nemo tenetur prodere seipsum, quia nemo tenetur detegere turpitudiem suam; ou nemo tenetur se detegere", traduz-se que "ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo, ou praticar atos lesivos à sua defesa, ou mesmo auto-incriminar-se", assentando-se no princípio do privilégio contra a auto-incriminação que ninguém poderá ser obrigado a depor contra si mesmo.
Alguns autores entendem, e entre eles destaca-se Fábio Medina Osório, ser este "um princípio correlato à presunção de inocência, não podendo ser a pessoa humana obrigada a incriminar-se ou declarar contra seus próprios interesses, seja no campo penal, seja em campo administrativo". 78
Esses princípios foram confirmados pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em dezembro de 1966, afirmando em seu art. 14, incisos II e III, alínea g, que "cada indivíduo acusado tem (...)", entre as garantias processuais mínimas para o exercício do direito de defesa, aquela de "não ser constrangido a depor contra si mesmo ou a confessar-se culpado".
Cita ainda Louri Geraldo Barbiero 79 que, da mesma forma, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também conhecida por Pacto de São José da Costa Rica 80, adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos em 22 de novembro de 1969, assegura, em seu artigo art. 8º, inciso II, alínea ‘g’, a toda pessoa acusada de delito, entre outras garantias mínimas, "o direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada".
No direito comparado visualiza-se ainda o privilégio contra a auto-incriminação expressamente positivado na Emenda n.º 5 da Constituição norte-americana, da seguinte forma: "No person... shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself..." (nenhuma pessoa pode ser compelida a ser testemunha contra si mesma em um procedimento criminal).
No direito pátrio, o Código de Processo Penal Militar 81 afirma no art. 313. que "o ofendido não está obrigado a responder perguntas que possam incriminá-lo, ou seja, estranhas ao processo", numa clara demonstração de que o legislador pretendeu preservar o acusado de realizar declarações que pudessem vir a incriminá-lo.
O fundamento constitucional do processo administrativo encontra-se no inciso LV do artigo 5º, ao afirmar que "aos acusados em processo judicial ou administrativo e aos litigantes em geral são assegurados a ampla defesa e o contraditório com todos os recursos a ela inerentes". Destacou-se.
Pode parecer uma leitura natural, sem qualquer acréscimo doutrinário, mas trata-se de conquista histórica, visto ser a primeira vez que no ordenamento jurídico pátrio o processo administrativo foi erigido ao nível constitucional.
O ordenamento anterior não o privilegiava de forma expressa, conforme constatado com a leitura da Emenda n.º 1/69 à Constituição de 1967, que dispunha no art. 153, §§ 15 e 16 que "a lei assegurará aos acusados ampla defesa com os recursos a ela inerentes. Não haverá foro privilegiado nem tribunais de exceção" e "a instrução criminal será contraditória, observada a lei anterior, no relativo ao crime e à pena, salvo quando agravar situação do réu".
Do inciso LV do texto em vigor é possível extrair o entendimento de que no processo crime o acusado poderá apresentar sua própria versão dos fatos, mesmo que estas conflitem com as provas dos autos. O acusado não presta compromisso de dizer a verdade, ao contrário do que acontece com as testemunhas em geral, e muito menos se encontra obrigado a produzir prova contra ele mesmo. Poderá, inclusive, modificar por completo suas afirmações perante o juiz.
E por fazer uso de uma prerrogativa constitucional não poderá sofrer qualquer penalidade, mesmo que as provas não deixem dúvidas de que ele não disse a verdade. Deverá o acusado apresentar os argumentos que considerar mais adequados à sua defesa.
Ainda que implicitamente, ao acusado é dado não apenas permanecer calado como também vir a mentir, exercendo, dessa forma, a garantia constitucional da ampla defesa, como também não poderá ser aplicada sanção alguma em virtude de uma ou de outra atitudes, o que é corroborado pelas manifestações pretorianas: "Recurso de habeas corpus – Constitucional – Processual Penal – Indiciado – Acusado – Silêncio. O indiciado ou o acusado não pode ser compelido a trazer elementos para a sua condenação. Tem o direito a ‘permanecer calado’ (Constituição, art. 5º, LXIII)" (STJ, 6ª T., RHC 6.756, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 20.10.1997).
Entende, ainda o STF que tem o indiciado o direito de permanecer calado e até mesmo o de mentir, não sendo obrigado a auto-incriminar-se com as declarações prestadas (HC 75.257/ RJ, Rel. Min. Moreira Alves, j. 17.06.1997. e HC 68.929/SP, Rel. Min. Celso de Mello, j. 22.10.1991).
Embora o texto constitucional e os julgados do Supremo Tribunal Federal acima sejam claros, não deixando dúvidas quanto à vontade do legislador, é possível encontrar no número 1 do Anexo 1 do RDE, que traz a relação de transgressões militares, a previsão sancionadora por faltar à verdade, aplicado mesmo em casos de estar o militar respondendo a processo administrativo.
Partindo dessa premissa, em tese, poderia o militar submetido a processo administrativo disciplinar vir a ser absolvido da acusação, mas ser punido por haver, durante o processo, faltado com a verdade.
É flagrante o desrespeito à ampla defesa, pois o acusado pode fazer uso de todas as provas legais, não sendo obrigado a formar prova contra si mesmo. Como também não pode ser apenado por permanecer em silêncio ou faltar à verdade quando no exercício de sua defesa no processo administrativo. Entende-se, portanto, como descaracterizada a transgressão disciplinar.
Trata-se então de erro do legislador que acrescentou essa transgressão no RDE, poderiam estar se perguntando algumas autoridades militares. A resposta é não, assim como não errou quando, no art. 4º, inciso I da Lei n.º 9.784/99, afirmou ser um dos deveres do administrado "expor os fatos conforme a verdade". Aparentemente, agiu o legislador com acerto ao fazer essa previsão legal, procurando obter do servidor lealdade perante a Administração Pública, visto tratarem-se de profissionais que agem em nome do Estado.
Ousa-se afirmar que houve uma interpretação equivocada dos aplicadores do regulamento ao buscarem o desejo efetivo do legislador. Esse entendimento tornou-se praxe, que indubitavelmente fere os princípios da legalidade e da motivação.
Toda interpretação jurídica há de ser, de algum modo, interpretação constitucional, visto estarem hierarquizados na lei Maior os princípios que fundamentam a racionalidade do ordenamento jurídico.
Se a Lei Maior afirma no inciso II do art. 5º que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" e ainda no inciso LV do mesmo artigo que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes", não é possível a um regulamento, data venia, impor sanção disciplinar por faltar com a verdade se o militar exercia o direito constitucional à ampla defesa no processo administrativo.
A previsão regulamentar parece correta e aceitável até chocar-se com a Carta Magna, o que ocorre quando o agente faz uso do texto constitucional para realizar defesa em processo administrativo.
Por derradeiro, veja-se o ensinamento da lavra de Eliezer Pereira Martins que é claro ao afirmar que "pertence ao universo da ampla defesa o direito de permanecer em silêncio e a garantia que tem o acusado de não ter obrigação de produzir provas contra si próprio, de sorte que ninguém pode ser punido por calar ou mentir quando em defesa própria". 82
3.8. DA MOTIVAÇÃO DA SANÇÃO DISCIPLINAR MILITAR POR FALTAR À VERDADE EM DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR
Conforme os ensinamentos colhidos da doutrina, o direito administrativo militar é um campo autônomo do direito, possui princípios e fundamentos próprios. Entretanto, continua mantendo forte relação com o direito penal e com o direito administrativo geral, dos quais é espécie.
Quando da promulgação do texto constitucional em vigor, este igualou o processo judicial ao administrativo, assegurando garantias processuais e constitucionais aos litigantes em questões administrativas antes aplicadas apenas aos processos judiciais. Tem-se daí que as questões administrativas envolvendo sanções devem ser vistas como verdadeiros processos, e não meros procedimentos.
No dizer de Fábio Medina Osório tem-se que o princípio da motivação "é pressuposto geral de justiça segundo o qual um homem não deva submeter-se à vontade arbitrária de outro, sendo a motivação garantia de maior controle da vontade do agente público. Em boa medida, é garantia de vedação à arbitrariedade punitiva". 83
Está previsto no art. 5º, incisos LIV e LV, sendo aplicável às decisões administrativas e judiciárias indistintamente, garantia esta diretamente relacionada com a controlabilidade judiciária dos atos administrativos e obrigatória nos atos processuais que importem tanto decisões terminativas quanto não terminativas.
Percebe-se daí que este princípio, ao explicitar os motivos do ato administrativo, integra o princípio da legalidade, e sua ausência causa nulidade do ato administrativo. Além disso, garante o cumprimento de outros princípios, tais como impessoalidade, moralidade e eficiência, constituindo suporte instrumental indispensável para o adequado exercício do direito de defesa.
O Estado de Direito exige a fundamentação dos atos decisórios, que surge como absolutamente indispensável e obrigatória quando se tratar de ato vinculado, o que ocorre com o ato administrativo disciplinar militar, dependente de estrita obediência ao due process of law.
O princípio da motivação foi reafirmado pela Lei n.º 9.784/99, em seu art. 2º, inciso VII, que obriga a administração, nos processos administrativos, a observar o critério de "indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão".
Caracterizada a transgressão disciplinar, por ter o militar faltado com a verdade num processo administrativo, devem ser observadas obrigatoriamente a autoria e a materialidade. A primeira não é difícil caracterizar. Porém, como seria caracterizada a materialidade desta transgressão se o servidor exercia direito constitucional ao contraditório e à ampla defesa?
Uma vez afirmada a ilicitude formal da conduta proibida, com seu enquadramento no tipo repressivo de faltar à verdade, deve-se passar a uma segunda fase, que é a averiguação da ilicitude material, verificando se o comportamento efetivamente agride o bem jurídico protegido pela norma. Pergunta-se novamente: o exercício de um direito constitucional poderia de alguma forma estar ferindo uma norma regulamentar se é a ela hierarquicamente superior ?
Como punir alguém que faz uso de previsão constitucional para realizar defesa própria ? E mais, como fazer a conformação da pena com a falta?
As punições devem ainda ser motivadas, de acordo com os regulamentos disciplinares, sob pena de caracterizarem abuso de poder, passível de correção por via de remédio heróico. Nesse sentido Hely Lopes Meireles leciona:
"A motivação da punição disciplinar é sempre imprescindível para a validade da pena. Não se pode admitir como legal a punição desacompanhada de justificativa da autoridade que a impõe. Até aí não vai a discricionariedade do Poder Disciplinar. O discricionarismo disciplinar se circunscreve na escolha da penalidade dentre as várias possíveis, na graduação da pena, na oportunidade e conveniência de sua imposição. Mas quanto à existência da falta e aos motivos em que a administração embasa a punição, não podem ser omitidos ou olvidados no ato punitivo." 84
O princípio da motivação é esteio para a punição disciplinar, sendo a observação deste imprescindível para a validade da pena. Rendemo-nos ao ensinamento de Lúcia Valle Figueiredo 85 ao citar uma frase genial de Bentham: "good decisions are such decisions for which good reasons can be given" (boas decisões são aquelas decisões para as quais boas razões podem ser dadas).
Ao punir por faltar à verdade o militar submetido a processo administrativo e no exercício do direito constitucional da ampla defesa, a autoridade não tem como motivar sua decisão, ou o fará de forma contrária aos preceitos constitucionais anteriormente mencionados.
A autoridade com poder disciplinar "que não motiva seus atos trabalha mal, devendo responder administrativamente por sua desídia ou pelo desvio de finalidade do ato". 86
Por outro lado, motivando seu ato de forma equivocada ou ilegal, com vícios ou defeitos, o ato administrativo disciplinar militar torna-se irremediavelmente viciado, e por ser a motivação requisito de validade deste ato, a punição será ato nulo, imprestável, inválido e, portanto, não apresentando qualquer condição de subsistência para produzir efeitos de direito.
Deve-se buscar nos julgamentos militares a efetiva aplicação da justiça, pois a Administração Militar assume o risco de ter essa decisão revista pelo Poder Judiciário, conforme o artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal, segundo o qual "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito".
Este inciso consagra o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, alicerce da sociedade civilizada e democrática na solução de conflitos, visto permitir a qualquer pessoa socorrer-se do Poder Judiciário, independentemente de processo administrativo.
Os regulamentos buscam sempre a lealdade do militar para com a Instituição. Entretanto, não se pode fazê-lo em contradição aos preceitos constitucionais, sob pena de estar o regulamento ou a lei ordinária, acima da própria Constituição Federal.
Como exemplo podem ser citados dois casos distintos: no primeiro o militar, de forma desleal, cria uma estória para obter algum benefício (sair mais cedo alegando que ‘sua mãe está doente’). Neste caso, não terá ele nenhum amparo pelo fato de não estar submetido a qualquer processo administrativo.
Numa segunda situação, totalmente oposta à primeira, este mesmo militar, submetido a um processo disciplinar, fornece uma informação que vai de encontro às provas presentes nos autos.
Pretende-se que a leitura atenta deste texto proporcione a visualização de contrastes que separarão indiscutivelmente o militar do primeiro caso daquele submetido ao processo.
Toda e qualquer ação da administração exige um amparo, uma conformidade com a previsão legal, sob pena de tornar-se injurídica e expor-se à anulação. Não bastasse isso, ao Estado caberá responsabilizar o agente que, agindo em nome da Instituição, cometeu ato administrativo sem o devido calço legal.
Punir o militar por faltar à verdade quando ele está exercendo um direito constitucional não encontra amparo para a motivação por parte da autoridade e "somente existirá este ilícito administrativo quando praticado em uma outra situação, que não seja o exercício constitucional da ampla defesa e do contraditório". 87
É possível observar que embora a Constituição tenha trazido diversas modificações, que são incorporadas gradativamente em nosso sistema, este ainda é um processo lento. Quantos processos judiciais a União ainda terá que responder até que as autoridades passem a aplicar com maior agilidade os preceitos constitucionais?
3.9. DA ANULAÇÃO DA SANÇÃO ADMINISTRATIVA DISCIPLINAR MILITAR
Pode parecer fora de contexto tratar do cancelamento ou da anulação da punição disciplinar, visto estar-se curando da transgressão disciplinar por faltar à verdade.
Embora previsto no artigo 57 do RDE trata-se, nesse caso específico, de anulação da sanção, pelas reais conseqüências que o ato provoca na carreira do profissional, visto que, com a anulação da sanção, estaríamos retornando ao status quo ante, ou seja, aquela sanção foi aplicada abusivamente e, portanto, os efeitos que dela se originaram devem ser desconsiderados.
De acordo com o artigo 62 do mesmo Regulamento, as anotações canceladas ‘devem ser tingidas de maneira que não seja possível a sua leitura’. Todavia, as conseqüências do ato foram válidas, e a Administração resolve beneficiar o militar de acordo com a análise minuciosa da previsão regulamentar.
A transgressão em comento – faltar à verdade – é considerada grave, constituindo "ato que afete a honra pessoal, o pundonor militar ou o decoro da classe". Dada sua definição estaria caracterizada a impossibilidade de anulação.
O artigo seguinte, por sua vez, observa as situações em que o Regulamento admite a concessão da anulação e já no primeiro item, afirma que a transgressão não pode ser atentatória à honra pessoal, ao pundonor militar ou ao decoro da classe para ser autorizado seu cancelamento.
Eis aqui a grande questão: a transgressão por faltar à verdade é enquadrada naqueles casos em que não é autorizada sua anulação. Em conseqüência, acompanhará o militar por toda a sua vida profissional, trazendo-lhe prejuízos em promoções, cursos e transferências.
Com a Portaria n.º 116 88, do Departamento Geral do Pessoal, o Exército passou a adotar uma nova política de escalonamento de oficiais e praças, política essa a ser regulada pelas Instruções Reguladoras 30-30 da Quantificação do Mérito dos Militares. Sua finalidade é estabelecer procedimentos para a pontuação global dos atributos e do desempenho funcional da carreira militar.
Entre outras mudanças, esse novo procedimento passou a pontuar determinadas atividades, tais como cursos, habilitações em idiomas estrangeiros, vivência nacional, comportamento de subtenentes e sargentos e elogios, entre outros. Dessa forma, os militares da Força Terrestre passaram a receber uma classificação de acordo com os pontos somados no transcorrer da carreira.
Em contrapartida, as punições entram como deméritos, sendo-lhes atribuídos pontos negativos, fazendo com que o militar perca pontos, e conseqüentemente tenha alterada a sua classificação.
Parece claro que o militar que foi punido por ter faltado à verdade, ainda que sujeito a procedimento administrativo, terá sua carreira prejudicada por um ato duplamente ilegal, visto que além da sanção não encontrar amparo constitucional como visto no capítulo anterior, surtirá efeitos e conseqüências danosas enquanto aquele profissional estiver na ativa.
Entende-se que essa situação caracterizaria uma sanção permanente, que não é permitida no ordenamento jurídico pátrio por agredir o princípio constitucional previsto no art. 5º, inciso XLVII, alínea ‘b’ que diz que "não haverá penas de caráter perpétuo".
Dito isto, conclui-se que "qualquer sanção administrativa em caráter permanente, ainda que prevista em lei, é manifestamente inconstitucional". 89
A Portaria nº 50/DGP, de 30 de abril de 2001, procurou reparar algumas dessas falhas, entendendo que nos casos de cancelamento de punições deixam de ser computados os seis pontos negativos.
Da mesma forma, sendo caso de anulação de punição, todos os atos devem ser revistos, como se aquela sanção nunca tivesse sido aplicada ao militar.
Urge, por óbvio, uma revisão que objetive a harmonização das normas disciplinares militares aos princípios constitucionais, sob pena das decisões tomadas pela Instituição Exército Brasileiro serem revistas e conseqüentemente anuladas pelo Poder Judiciário.