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Faltar à verdade no processo administrativo disciplinar castrense frente os direitos e garantias constitucionais

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4 DO REGULAMENTO DISCIPLINAR DO EXÉRCITO

            4.1 CONSIDERAÇÕES GERAIS

            Tratou-se, no decorrer deste trabalho, da Constituição Federal e de seus princípios, e, para fechar este ciclo é necessário realizar um estudo sobre um assunto tipicamente militar, que tem reflexo direto em todo o procedimento disciplinar da Administração Militar: o Regulamento Disciplinar do Exército (RDE).

            Para compreender o funcionamento do processo disciplinar castrense, e mais exatamente a questão da hierarquia e disciplina, é importante que o leitor compreenda como funcionam essas estruturas nas Forças Armadas, observando como são interpretadas e aplicadas as leis, principalmente no que se refere ao processo administrativo disciplinar.

            Os militares estão, em regra, sujeitos ao Conselho de Disciplina – destinado a julgar as praças com mais de 10 anos de serviço e que tenham cometido transgressões disciplinares classificadas como graves e, portanto ensejadoras de exclusão – e ao Conselho de Justificação, que julga os oficiais que venham a praticar transgressões disciplinares militares que os torne incompatíveis com o oficialato, conforme previsão constitucional existente no art. 142, inciso VII.

            Na esfera administrativa, diferentemente do funcionalismo civil, regido pelo Estatuto dos Servidores Públicos, os integrantes das Forças Armadas estão sujeitos ao Estatuto dos Militares e ao Regulamento Disciplinar do Exército.

            Estes foram editados antes da Constituição Federal de 1988 por decretos do Chefe do Poder Executivo. Seu nascimento reflete o período de exceção em que foram gerados, numa realidade que não mais subsiste em nosso país.

            Não fugindo à regra, o RDE ou R-4, foi criado pelo Decreto n.º 90.608 (90), de 04 de dezembro de 1984, assinado pelo General João Baptista Figueiredo, Presidente da República à época.

            Diógenes Gasparini, sobre esse assunto, assevera que regulamento é "o ato administrativo normativo, editado, mediante decreto, privativamente pelo Chefe do poder Executivo, segundo uma relação de compatibilidade com a lei para desenvolvê-la". (91)

            Os decretos têm como finalidade esclarecer, detalhar ou explicar a lei, facilitando seu cumprimento e tornando-a operacional.

            Poder-se-ia ainda, acrescentar a definição de Wolgran Junqueira Ferreira ao afirmar que o regulamento "é ato administrativo geral e normativo, expedido privativamente pelo Chefe do Executivo (federal, estadual ou municipal), através de decreto, com fins de explicar o modo e forma de execução da lei (regulamento de execução) ou prover situações não disciplinadas em lei (regulamento autônomo ou independente)". (92)

            Continua o autor dizendo que

            "O regulamento não é lei, embora a ela se assemelhe no conteúdo e poder normativo. Nem toda lei depende de regulamento para ser executada, mas toda e qualquer lei pode ser regulamentada se o Executivo julgar conveniente fazê-lo. Sendo o regulamento, na hierarquia das normas, ato inferior à lei, não a pode contrariar, nem restringir ou ampliar suas disposições. Só lhe cabe explicitar a lei, dentro dos limites por ela traçados. Na omissão da lei, o regulamento supre a lacuna, até que o legislador complete os claros da legislação. Enquanto não o fizer, vige o regulamento, desde que não invada matéria reservada à lei." (93)

            Lei é preceito obrigatório abstrato (norma jurídica), oriundo do poder competente, no caso, o Legislativo.

            O texto de 1988 – a Constituição Cidadã – trata-se de um marco histórico para a democracia de nosso país e para o surgimento de um novo Estado, sendo nossa lei fundamental, cuja inobservância é um procedimento grave, atentatório aos princípios que regem o próprio Estado democrático.

            Muito embora as penas consistentes em castigos corporais para militares tenham sido abolidas pela Lei n.º 2.556, de 26 de setembro de 1874, injustiças ainda são cometidas. Cidadãos têm suas vidas profissionais prejudicadas e a Instituição Exército Brasileiro tem seu nome e seu passado manchados por administradores incompetentes, desinteressados e irresponsáveis que, se por um lado prejudicam bons militares, por outro impedem, porque realizam procedimentos de forma inadequada, que a Administração Militar exclua de seus quadros os agentes que cometeram graves falhas funcionais.

            Já houve tempos bem piores, é verdade, que foram ultrapassados pela Constituição Federal, pela entrada dos advogados nos quartéis e pela própria conscientização dos cidadãos quanto ao respeito aos seus direitos.

            4.2 DO PROCESSO DISCIPLINAR NO EXÉRCITO BRASILEIRO

            O grande número de ações judiciais contra o Exército Brasileiro entenda-se União, tem mostrado às autoridades militares que é necessária uma mudança de mentalidade e, principalmente, uma atitude mais severa no que tange aos direitos individuais garantidos pela Constituição Federal.

            De acordo com os dados fornecidos pela 2ª Assessoria do Gabinete do Comandante do Exército, apenas no ano de 2000 foram impetradas 107 ações judiciais envolvendo a instituição, tendo seus autores alegado irregularidades no procedimento administrativo, mormente o não atendimento aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

            Há que se considerar que o número de militares que buscam a via judiciária para a solução de problemas administrativos ainda é restrito, principalmente por medo de represálias internas ou porque se contentam com recursos administrativos, mas a tendência é que esse número aumente à medida que não forem obedecidos os princípios constitucionais.

            Vale ressaltar que mesmo antes de 1988 o processo administrativo era compreendido como garantia jurídica, mas a partir daquele ano passou a constituir garantia constitucional.

            O Comandante da Força Terrestre tem-se mostrado preocupado o suficiente com o assunto para publicar inúmeras instruções, enviando-as aos Comandantes, Chefes e Diretores de Organizações Militares (OM).

            A atitude preventiva tem sido apresentada como mais eficaz para evitar demandas judiciais que trazem conseqüências desgastantes tanto para as autoridades envolvidas quanto para o nome da Instituição.

            Essa nova mentalidade revela que as autoridades militares, representadas por seu Comandante, visualizaram que os preceitos constitucionais devem ser observados por todos aqueles que têm o poder de sancionar seus subordinados, sob pena de responderem civil e criminalmente por seus atos.

            O art. 28 do Estatuto dos Militares, que trata da ética militar, dispõe em seu inciso IV o seguinte preceito: "cumprir e fazer cumprir as leis, os regulamentos, as instruções e as ordens das autoridades competentes". Nisso, por óbvio, podemos incluir o respeito à Constituição Federal e aos seus princípios.

            Cresce de importância o bom assessoramento àqueles que irão decidir, por militares preparados e cientes das conseqüências danosas que uma decisão equivocada pode trazer, visto que algumas destas geram direitos que, não sendo observados ou sendo desrespeitados, trarão prejuízos que o Exército deverá indenizar. Este, fazendo uso do direito de regresso, poderá ajuizar ação contra a autoridade que provocou o prejuízo, responsabilizando-o pelo dano.

            Cita o professor Eliezer Pereira Martins que

            "O militar que abusa da autoridade ou é um mal intencionado que colima fins diversos do bem público, sendo portanto um agente que atua por dolo; ou é um incapaz, que por desconhecer dos recursos que lhe outorga a administração, por culpa, elege indevidamente os meios e recursos para o alcance dos desideratos da administração castrense, agindo também com abuso de poder." (94)

            Antes de tratar do processo disciplinar no Exército Brasileiro faz-se interessante explanar a respeito da administração da Justiça Militar, que tem no Superior Tribunal Militar (STM) sua Corte de instância superior, sendo também o mais antigo do país, visto ter sido criado em abril de 1808.

            Para a obtenção de melhores resultados, a Justiça Militar dividiu o território brasileiro em 12 Circunscrições Judiciárias Militares (CJM), com sedes nas cidades de Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Juiz de Fora, Campo Grande, Brasília, Salvador, Recife, Fortaleza, Belém e Manaus.

            A cada uma delas corresponde uma Auditoria – que constitui a primeira instância –, exceções feitas à primeira CJM, que conta com seis Auditorias, a segunda com duas e a terceira com três, em virtude do maior número de Organizações Militares (OM) naquelas regiões.

            Nas Auditorias reúnem-se, em tempos de paz, os Conselhos de Justiça Militar – Especiais ou Permanentes – órgãos colegiados, compostos por juízes de fato (quatro oficiais escolhidos por sorteio, cujos postos dependerão do posto do acusado) e por um juiz civil, de carreira e do quadro da Magistratura da Justiça Militar, denominado Juiz-Auditor.

            Os Conselhos Especiais de Justiça Militar processam e julgam oficiais – exceto oficiais-generais (processados e julgados pelo STM), sendo constituídos para cada processo e dissolvidos após sua conclusão.

            Quanto aos Conselhos Permanentes de Justiça Militar, estes processam e julgam as praças, funcionando durante três meses consecutivos, correspondentes aos trimestres do ano civil.

            Para auxiliar os militares, orientando-os sobre assuntos relativos à justiça, as Regiões Militares, localizadas nas principais capitais brasileiras, dispõem de Seções de Serviço de Justiça, que estão aptas a sanar dúvidas, prestando assessoramento às autoridades em suas decisões.

            É sem dúvida um grande avanço. Entretanto, para um número razoável de Unidades Militares esta ainda é uma realidade distante, por encontrarem-se em cidades do interior e principalmente porque as transgressões ocorrem inesperadamente, e as decisões devem ser tomadas de imediato, como por exemplo, exames de corpo de delito e prisões em flagrante delito.

            Ainda há tempo para a implantação de cursos específicos objetivando a melhor preparação de militares para situações relacionadas com a justiça. Há um sem número de profissionais cursando faculdades de direito que estarão em condições de prestar essa assistência.

            Pensando no melhor preparo de seus subordinados e na busca pela adequação das sanções aos preceitos constitucionais, medidas de grande importância têm sido tomadas pelo Comando da Força. Uma delas foi a publicação da Portaria n.º 202, que aprovou a Instrução Geral (IG) 10-11 (95), sobre as instruções para a elaboração de sindicância no âmbito do Exército.

            Sindicância configura um procedimento de investigação, de apuração de fatos, e tem por objetivo apurar faltas cometidas por servidores públicos militares, colhendo elementos de autoria e materialidade de transgressão disciplinar. Apurada regularmente a falta, o militar estará passível de acusação disciplinar na forma dos Estatutos.

            Com a instauração desse procedimento a autoridade objetiva responder duas questões: se o fato é irregular e se há presunção de autoria, podendo ser acusatória ou investigatória, conforme o fato seja de autoria conhecida ou não.

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            Cretella Júnior entende esta como "meio sumário de que se utiliza a Administração do Brasil para sigilosa ou publicamente, com indiciados ou não, proceder à apuração de ocorrências anômalas no serviço público, as quais, confirmadas, fornecerão elementos concretos para a imediata abertura de processo administrativo contra o funcionário responsável". (96)

            Para Ada Pellegrini Grinover, a sindicância, na verdade, em seu primeiro significado, "nada mais é do que um meio de apuração sumária; de apuração de um fato que não deveria, por si só, levar à aplicação de uma pena, abrindo apenas caminho à instauração do processo administrativo". (97)

            Em abril de 2001, o Comandante do Exército publicou a Portaria n.º 157 (98), que visa regular, no âmbito do Exército, os procedimentos para padronizar o contraditório e a ampla defesa nas transgressões disciplinares.

            A partir da leitura desta Portaria é possível entender como será realizado o procedimento sancionador na esfera administrativa militar, como veremos a seguir, assim como observando o fluxograma anexo.

            Num primeiro momento, o comandante imediato do militar envolvido recebe a informação do cometimento de determinada transgressão por parte de um subordinado. A partir daí deverá ouvir a versão do acusado, verificando se é ou não caso de punição disciplinar.

            Entendendo como afirmativa a resposta a essa indagação, entrega ao acusado o Formulário de Apuração de Transgressão Disciplinar (anexo), documento em que este dará a sua versão, realizando sua defesa por escrito, de próprio punho ou impresso, e num prazo de três dias, com a possibilidade de prorrogação.

            As justificativas ou razões de defesa deverão ser formuladas de forma sucinta, objetiva e clara, sem conter comentários ou opiniões pessoais e com menção de eventuais testemunhas.

            Deverá ser utilizada tinta azul ou preta, com letra legível, não podendo conter emendas ou rasuras, e por fim assinará o documento, permanecendo com a 2ª via.

            Feito isso, deverá ser enviada uma parte – documento pelo qual o comandante imediato narra a ocorrência de determinada transgressão disciplinar ao Comandante da Unidade – participando a sua decisão, anexando o Formulário preenchido pelo acusado.

            A autoridade deverá realizar a identificação do militar arrolado como autor do fato da forma mais completa possível, mencionando-se grau hierárquico, nome completo, número (se for o caso), identidade e subunidade ou organização em que serve.

            Como dito anteriormente, a partir da entrega do formulário ao acusado, este terá o prazo de três dias úteis para apresentar suas alegações de defesa, mas esse prazo poderá ser prorrogado, em caráter excepcional, desde que justificadamente, pelo período que se fizer necessário, a critério da autoridade competente, podendo ser concedido, ainda, pela mesma autoridade, prazo para que o interessado possa produzir as provas que julgar necessárias à sua defesa, anexando, se entender necessário, os documentos que comprovem suas alegações.

            Caso o militar renuncie ao seu direito de defesa, deverá participar tal decisão no verso do documento, também por escrito. Se porventura não forem apresentadas as razões de defesa, a autoridade que estiver conduzindo a apuração do fato certificará no Formulário de Apuração de Transgressão Disciplinar, juntamente com duas testemunhas, que o direito de defesa foi concedido, mas não exercido.

            Cumpridas as etapas anteriores, a autoridade competente, entenda-se o Comandante da Unidade, emitirá uma conclusão escrita, quanto à procedência ou não das acusações e das alegações de defesa, concordando ou não com a decisão do comandante imediato do acusado, subsidiando a análise para o julgamento da transgressão.

            Como visto, o processo tem início com o recebimento da comunicação da ocorrência, sendo processado no âmbito do comando que tem competência para apurar a transgressão disciplinar e aplicar a punição somente depois de ouvir o militar.

            Após entender e julgar as razões de defesa, a autoridade competente lavrará sua decisão, encerrando o processo de apuração.

            Prolatada a decisão, será registrado no próprio Formulário o número do Boletim Interno (BI) em que esta será publicada, pois somente com esta publicação é que o ato administrativo formaliza a aplicação da punição ou a sua justificação. Feito isso, o processo para a concessão do contraditório e da ampla defesa é arquivado na OM do militar arrolado.

            Cabe ressaltar que contra o ato da autoridade competente que aplicar a punição disciplinar, publicado em BI, podem ser impetrados os recursos regulamentares peculiares do Exército.

            Os procedimentos formais previstos nestas normas serão adotados, obrigatoriamente, nas apurações de transgressões disciplinares que redundarem em punições publicadas em BI e transcritas nos assentamentos do militar.

            O processo disciplinar é questão que deve ser observada de forma criteriosa, principalmente se verificarmos a pesquisa feita pelo Presidente do Centro Ibero-Americano de Administração e Direito, Léo da Silva Alves (99), ao revelar o custo de uma sindicância. Segundo levantamento realizado, as despesas em casos sem grande complexidade, chegaram ao valor de R$ 6.374,30 (seis mil trezentos e setenta e quatro reais e trinta centavos).

            Isso senão for calculado o custo de um processo administrativo disciplinar aos cofres públicos, que por ser de maior vulto poderá atingir a casa dos R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais), segundo o mesmo levantamento.

            Raramente um processo administrativo disciplinar militar atingirá valores desse porte, entretanto, poderá ser considerável o número de profissionais envolvidos, gerando gastos desnecessários de tempo e recursos.

            Ao transgredir qualquer dos preceitos constitucionais, a autoridade competente desarmoniza e até mesmo desacredita toda a ação administrativa, trazendo prejuízos, num primeiro momento, ao militar punido e, posteriormente, à própria administração castrense, quando da revisão do procedimento administrativo por parte do Poder Judiciário.

            Em tese, seria possível essa revisão porque o princípio da independência e harmonia entre os poderes públicos não teria o condão de impedir a apreciação pelo Poder Judiciário do mérito – conveniência, oportunidade e justiça – do ato administrativo inquinado.

            Entretanto, o entendimento da doutrina majoritária e tradicional de nossos Tribunais Superiores é a de que não será admitida a apreciação do mérito no que diz respeito à conveniência ou oportunidade, pelo Poder Judiciário, das decisões administrativas punitivas.

            Segundo nossos juízes essa apreciação por parte do Poder Judiciário estaria diminuindo, ou mesmo anulando, a atuação da Administração Pública Militar; afrontando gravemente a hierarquia e a disciplina militares; afetando o moral da tropa; desmoralizando o Comando; e, o que é pior, estará infringindo os preceitos do Estado Democrático de Direito ao violar o Princípio da Separação e Independência dos Poderes, limitando-se com isso ao exame apenas quanto ao aspecto de sua legalidade e da legitimidade.

            Entretanto, corrente minoritária com a qual nos identificamos tem defendido que a punição disciplinar militar, por não ser um ato de total liberdade por parte da Administração, está sujeita ao controle judicial, com base no art. 5º, XXXV do texto constitucional vigente ao dispor que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".

            Este artigo, data venia, atinge até mesmo os atos disciplinares que cumpram os requisitos legais, não estando isentos de apreciação pelo Poder Judiciário, devendo ser acionado pelo meio processual do mandado de segurança perante a Justiça Federal.

            Como ensina Achibaldo Nunes dos Santos, "todos os atos administrativos ou disciplinares são passíveis de questionamento na esfera judicial. Não obstante, quando malferir direito líquido e certo". (100)

            No momento de aplicar a sanção o agente deve ter ciência de que a não observância do princípio do contraditório e da ampla defesa na sindicância acusatória "é motivo para que o funcionário público, civil ou militar, impetre perante o Poder Judiciário o Mandado de Segurança, para que lhe seja assegurada a garantia fundamental disciplinada no art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal". (101)

            No dizer de Achibaldo Nunes dos Santos

            "Todo ato disciplinar, ainda que cumpridos os requisitos legais, não está isento de apreciação pelo Poder Judiciário, pelo meio processual do mandado de segurança. Caso contrário, se estaria limitando o alcance dessa ação mandamental já estabelecida em nossa Lei Maior. Os atos disciplinares no Exército, não raro, afrontam o dispositivo constitucional do contraditório e da ampla defesa, assegurado ‘aos acusados em geral’. Logo, o mandado de segurança se mostra o remédio jurídico eficaz a combater o desbordamento constitucional." (102)

            Como resta provado, o direito brasileiro prevê a figura do processo administrativo disciplinar militar como competente para apurar e punir as faltas porventura cometidas pelos agentes militares, mas sem retirar do Poder Judiciário o controle jurisdicional. Muito embora haja distinção entre a área administrativa e o setor judiciário, por serem instâncias diferentes, se porventura houver contradição entre as decisões prevalecerá a decisão judicial.

            O texto constitucional trata em seu artigo 37, § 6º da situação de indenização por dano moral e material, determinando que "as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa". Ora em destaque.

            Como visto anteriormente, poderá a União ajuizar ação de regresso contra o agente que realizar incorretamente o processo administrativo disciplinar.

            Dito isto, as autoridades militares devem estar atentas quanto aos princípios constitucionais, visto o risco de incorrerem em abuso de poder, que ocorre quando a autoridade, embora competente para praticar o ato, "ultrapassa os limites de suas atribuições ou se desvia das finalidades administrativas". (103)

            Destarte, não devem e nem podem por isso deixar de decidir a respeito dos assuntos de sua competência, mas devem realizar uma observação rigorosa dos princípios que regem a Administração Pública. Agindo com equilíbrio, eficácia e competência, cercando-se de militares aptos a prestar eficiente assessoria jurídica, dificilmente estarão envolvidas em questões judiciais.

            4.3 LIMITES AO REGULAMENTO NO DIREITO BRASILEIRO

            Parece evidente que a criação do RDE, contextualizado num momento político de exceção e por isso mesmo anterior à Constituição Federal de 1988, fez com que aquele documento entrasse em rota de colisão com a Magna Carta, gerando um conflito aparente de normas a ser solucionado por meio de critérios de valoração das mesmas.

            Como visto anteriormente, regulamento é o ato que se origina do exercício da atribuição regulamentar. É normativo, editado mediante decreto privativo do Chefe do Poder Executivo, segundo uma relação de compatibilidade com a lei. Não é lei no sentido formal e, portanto, não poderá criar direito novo.

            Encontrando apoio em esplendorosa doutrina, este ensaio monográfico tem a pretensão de alertar sobre a ilegalidade da previsão da transgressão disciplinar por faltar à verdade quando o militar exerce sua defesa em processo administrativo disciplinar, seja ele inquérito policial militar ou sindicância. É, portanto, inconstitucional, porque desrespeita as garantias da ampla defesa e do contraditório.

            Embora os regulamentos disciplinares tenham sido, em parte, recepcionados pelo texto constitucional vigente, são necessárias algumas reflexões para que haja uma perfeita adequação das normas administrativas militares, de forma a dar-lhes conformidade às exigências do Estado Democrático de Direito e com os preceitos que tratam dos direitos e garantias fundamentais do cidadão.

            Importante ensinamento nos dá o mestre Celso Antônio Bandeira de Mello ao comparar poder regulamentar e princípio da legalidade, afirmando que "as leis oferecem aos administrados garantias muitas vezes superiores às que poderiam derivar unicamente das características de abstração e generalidade também encontradiças nos regulamentos". (104)

            Segue em sua brilhante explanação, aduzindo que "as leis são fruto de algum contemperamento entre as variadas tendências". (105) Percebemos no próprio processo de elaboração das leis que este traz um grau maior de controlabilidade, confiabilidade, imparcialidade e qualidade normativa que aquele presente no regulamento, sendo as leis submetidas a um trâmite que permite um conhecimento público de suas disposições.

            No processo de elaboração dos regulamentos tem-se a mera imposição rígida das conveniências de uma única linha de pensamento, carecendo dos atributos presentes na elaboração das leis, e trazendo em seu âmago mazelas que poderiam trazer conseqüências danosas se a eles fosse dada a possibilidade de instaurar direitos e deveres, além de impor obrigações de fazer ou não fazer.

            Defende ainda o doutrinador que "os regulamentos são elaborados em gabinetes fechados, sem publicidade alguma, libertos de qualquer fiscalização ou controle da sociedade". (106)

            Esclarece que se fosse possível, mediante simples regulamentos expedidos por quaisquer autoridades, instituir deveres de fazer ou não fazer, "ficariam os cidadãos à mercê, se não da vontade pessoal do ungido no cargo, pelo menos, da perspectiva unitária, monolítica, da corrente de pensamento de que este se fizesse porta-voz". (107)

            Com tudo isto, adverte o mestre quanto à natural inadequação e os riscos imensos que os regulamentos podem trazer aos objetivos do Estado de Direito, "não podendo os regulamentos aportar à ordem jurídica direito ou obrigação que já não estejam, na lei, previamente caracterizados e de modo suficiente". (108)

            Encerra primordialmente seu pensamento nos ensinando que "regulamento ou disposição regulamentar cujo conteúdo crie para os administrados direitos, obrigações, deveres, restrições à liberdade, propriedade ou atividades que já não estejam contidos e identificados na lei a ser regulamentada é nulo por inconstitucionalidade". (109) Grifamos.

            Esse entendimento nos soa natural, visto possuir a lei a capacidade de inovar originariamente a ordem jurídica, não sendo possível ao regulamento alterá-la, por ser fonte secundária e, portanto, inferior.

            Cabe resgatar do direito comparado o dizer do autor espanhol Alejandro Nieto, para quem "os regulamentos, os atos administrativos costumam integrar o núcleo dessas proibições, de tal que resulta comum falar-se em normas em branco". (110)

            O regulamento no Brasil, sempre veiculado por decreto, "é inteiramente subordinado à lei, tanto positiva, quanto negativa. Não pode contrariá-la, como não pode excedê-la. Não pode restringi-la, da mesma forma que não lhe é dado ampliá-la". (111)

            Essa atribuição sofre, segundo alguns doutrinadores, três limites, "que se não forem observados levam à invalidação da determinação regulamentar, tornando-a ilegal. Os limites são formais, legais e constitucionais". (112)

            Os primeiros dizem respeito ao veículo de exteriorização, sendo exigido por lei ou decreto. Os limites legais tratam do extravasamento da atribuição prevista pelo regulamento, o que não poderá ocorrer porque, como dito anteriormente, ele não poderá criar direito novo. O chamado limite constitucional relaciona-se às reservas legais previstas na Constituição Federal e que porventura podem não ser cumpridas pelo regulamento, tornando-o viciado.

            Eliezer Pereira Martins nos alerta que "há um grave descompasso entre a ordem jurídica vigente (democrática) e a natureza dos regulamentos disciplinares das instituições militares (autoritários), o que contribui também para o descrédito do sistema disciplinar militar instalado". (113) Repete-se aqui a pergunta do mesmo autor: como justapor um regulamento disciplinar comprometido com a ordem do Estado policialesco com a nova realidade do Estado democrático ?

            Revelando completo contraste com o pensamento majoritário da doutrina, a Consultoria Jurídica do então Ministério do Exército publicou, em 24 de maio de 1993, parecer no Noticiário do Exército de nº 8.626, que versava sobre a inocorrência de colisão constitucional, como é possível verificar com o texto: "A lei nº 6.880, de 1980, e o Regulamento Disciplinar do Exército, Decreto nº 90.608, de 1984, passaram a viger na égide da anterior Lei Suprema e os seus preceitos, como é sabido, não entram em testilha com normas constitucionais então em vigor, não afrontando igualmente a ordem constitucional vigente, que os recepcionou". (114)

            Os regulamentos disciplinares "constituem instrumentos da justiça e não da administração, nada obstante estarem à disposição desta última". (115) Todavia, alguns absurdos previstos no RDE são inconcebíveis, não podendo de forma alguma estar em vigor porque se chocam com previsão constitucional.

            É inconcebível admitir itens como o de número 55, que trata da incomunicabilidade do preso e o artigo 136, inciso IV da Constituição Federal, que a proíbe, mesmo na vigência do estado de defesa. Além disso, cita-se a previsão de transgressão para o militar que buscar o Judiciário sem esgotar os recursos administrativos chocando-se com o artigo 5º, inciso XXXV.

            Embora essa questão não seja pacífica, tem-se que estamos diante da chamada inconstitucionalidade material, visto que ocorre uma absoluta falta de conciliação entre o conteúdo do ato normativo, entenda-se RDE, e o que determina a Constituição sobre a matéria específica da ampla defesa e do contraditório.

            Nesse momento cresce de importância a idéia de interpretação conforme a Constituição Federal, que vem ganhando maior notoriedade em conseqüência do princípio da supremacia ou supralegalidade constitucional.

            Fica claro que o direito está na lei, e só ela cria direitos e obrigações, pois "o ato administrativo que colidir, no todo ou em parte, com um preceito constitucional expresso ou implícito considerar-se-á inconstitucional". (116) Parece claro que a lei ordinária deve ajustar-se à letra e ao espírito da Constituição, como condição sine qua non de validade.

            Invoque-se o exemplo de Wolgran Junqueira Ferreira, quando diz que "se a lei fixa a multa entre 5 e 10% sobre o valor da mercadoria cuja venda se faça em desobediência ao texto legal, pode o regulamento dispor sobre as hipóteses de aplicação de 5%, 7,5% ou 10%". (117)

            Cita ainda que o poder regulamentar consiste em colocar em execução os princípios institucionais estabelecidos pela lei. E o autor vai mais longe, afirmando que "não há regulamento autônomo no Brasil, porque só a lei pode obrigar (§ 2º do art. 150 da Carta Federal de 1967) e porque nossos decretos só existem para assegurar a fiel observância das leis (art. 83, II da Constituição Federal/67)". (118)

            O único regulamento existente no sistema brasileiro é o chamado executivo, que atua como meio de disciplinar a liberdade relativa presente na discrição administrativa, destinado à fiel execução da lei.

            Geraldo Ataliba também contribuiu ao dizer, a respeito dos regulamentos, que sua função "é facilitar a execução da lei, é especificá-la do modo praticável e, sobretudo, acomodar o aparelho administrativo para bem observá-la, só cabendo regulamento em matéria que vai ser objeto de ação administrativa ou desta depende". (119)

            O regulamento presta-se a efetivar a exeqüibilidade da lei, particularizando-a de modo a torná-la praticável. Isso exige que aquele não ultrapasse os limites impostos por esta, sob pena de ilegalidade.

            Os textos deixam claro que o regulamento nada cria de novo, apenas adequa os órgãos administrativos para bem cumprirem ou permitirem o cumprimento da lei. Podemos dizer ainda que o regulamento é ato inferior, subordinado e dependente da lei.

            Magnífica lição é possível colher com Vítor Nunes Leal quando explica que "o regulamento interpretativo valerá, pois, como subsídio doutrinário valioso e qualificado, mas não terá força obrigatória nem para os articulares, que poderão recorrer às vias judiciais, nem para os juízes, que poderão deixar de aplicá-lo por entenderem que contraria disposição legal vigente" (120)

            Não se pode esquecer que o administrador possui uma liberdade regrada, sujeita aos princípios enumerados no caput do art. 37 da Constituição Federal.

            Ante o exposto, percebe-se que a disciplina militar perfeccionista, e não perfeita, que emana do RDE, tem sido objeto de inúmeras injustiças, não podendo as autoridades militares esquecer que o militar, como qualquer outro cidadão, também está amparado pelo texto constitucional em vigor.

            Veja-se que este parágrafo escrito por Wolgran Junqueira Ferreira sela definitivamente o entendimento quanto à questão do regulamento e da lei no tocante ao direito constitucional do acusado exercer a ampla defesa:

            "Daí porque dizermos que não cabe regulamentação nas hipóteses em que a norma maior – a Constituição diante da lei, esta diante do decreto, este diante das instruções e assim por diante – proíbe peremptoriamente ou concede algo incondicionalmente. É que, na maioria das vezes, nada há aí a regulamentar. Nestes casos, de regra, a regulamentação adiará o gozo de um direito legal – o que é vedado – ampliará ou restringirá seu conteúdo, ou criará condições e requisitos não previstos." (121)

            Colhendo os sábios ensinamentos do mestre Pontes de Miranda a questão se torna mais clara quando este autor afirma sobre os limites ao regulamento no direito brasileiro:

            "Se o regulamento cria direitos ou obrigações novas, estranhos à lei, ou faz reviver direitos, deveres, pretensões, obrigações, ações ou exceções, que a lei apagou, é inconstitucional. Por exemplo: se faz exemplificativo o que é taxativo, ou vice-versa. Tampouco pode ele limitar, ou ampliar direitos, deveres, pretensões, obrigações ou exceções à proibição, salvo se estão implícitas. Nem ordenar o que a lei não ordena (...). Nenhum princípio novo, ou diferente, de direito material se lhe pode introduzir. Em conseqüência disso, não fixa nem diminui, nem eleva vencimentos, nem institui penas, emolumentos, taxas ou isenções. Vale dentro da lei; fora da lei a que se reporta, ou das outras leis, não vale. Em se tratando de regra jurídica de direito formal, o regulamento não pode ir além da edição de regras que indiquem a maneira de ser observada a regra jurídica.

            Sempre que no regulamento se insere o que se afasta, para mais ou para menos da lei, é nulo, por ser contrária à lei a regra jurídica que se tentou embutir no sistema jurídico.

            Se, regulamentando a lei ‘a’, o regulamento fere a Constituição ou outra lei, é contrário à Constituição, ou à lei, e – em conseqüência – nulo o que editou.

            A pretexto de regulamentar a lei ‘a’, não pode o regulamento, sequer, ofender o que, a propósito de lei ‘b’, outro regulamento estabelecera." (122)

            Pode-se entender daí que estará havendo uma invasão, pelo Poder Executivo, da competência do Poder Legislativo e, conseqüentemente, abuso de poder regulamentar sempre que se estabelecem, alteram ou extinguem direitos fazendo-se uso de regulamentos.

            A não observação desses pontos poderá levar o aplicador do sistema disciplinar militar, desconhecedor que é dos preceitos constitucionais, ao dilema de ser obrigado a fazer atuar disposições que não foram adaptadas ao ordenamento vigente, levando-o invariavelmente a imposições inconstitucionais.

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Sobre o autor
José Halley Fernandes Suliano

bacharel em Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SULIANO, José Halley Fernandes. Faltar à verdade no processo administrativo disciplinar castrense frente os direitos e garantias constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3625. Acesso em: 23 abr. 2024.

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