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Por uma visão internacional antropocêntrica dos direitos humanos, num mundo de terrorismo, guerras, insegurança e avançadas tecnologias

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Agenda 01/01/2003 às 00:00

Sumário: 1 – Apresentação do tema. O domínio bélico e tecnológico; 2 - Necessidade de preservação dos direitos humanos. Situamento axiológico e nacional. A visão antropocêntrica; 3 - Antropocentrismo, no plano internacional; 4 – À Guisa de Conclusão; Referências Bibliográficas.


1. Apresentação do tema. O domínio bélico e tecnológico

Ingressamos em um novo milênio. E o ano de 2002 iniciou com guerras no mundo inteiro, entre nações e internamente (guerras civis, revoluções, movimentos populares, levantes, terrorismo...). De seu turno, resultado da atuação atribuída a Bin Laden em setembro/2001, os Estados Unidos encamparam uma guerra internacional ao terrorismo. E George W. Bush apregoou a justiça suprema americana ou justiça infinita, desrespeitando pactos internacionais e autorizando a atuação norte-americana em outros países, inclusive com expansões de suas agências de espionagem. Vale dizer: inaugurou uma onda de invasão à soberania de outros países, especialmente do terceiro mundo, que dependem bastante da economia estadunidense. Nesta visão norte-americana, os órgãos governamentais dos EUA podem perseguir pessoas acusadas ou suspeitas de terrorismo no mundo inteiro, capturá-las e submetê-las aos tribunais norte-americanos, sem a necessidade de serem públicos os atos processuais. Paralelamente, Bush tem autorizado a criação de tribunais militares com competência quase ilimitada, sem se importar com tratados internacionais e deixando de reconhecer a autoridade de alguns organismos internacionais, como os tribunais penais. Instalou-se um imperialismo mundial, de ordem cultural e econômica, e, agora, desafiadora e notoriamente bélica.

O periódico Cartacapital informou que "o presidente Bush autorizou a constituição de Tribunais Militares, munidos de competência para permitir a captura de estrangeiros em qualquer país, bem como realizar julgamentos secretos de qualquer suspeito de prática ou colaboração com o terrorismo". Com esta atitude, Bush teria deixado patente que não referendará o Tribunal Penal Internacional, instituído pelas Nações Unidas em convenção realizada em Roma, em 18/07/98, bem como deixara claro não mais precisar constituir, sob patrocínio da ONU, Cortes Penais Especiais, como as que cuidam de crimes contra a humanidade. [1] Toda a humanidade está jurisdicionada pelo império norte-americano.

E lembrar que o berço do due process of law foi, justamente, os EUA, o que inspirou Tocqueville (1831) a exaltar a cláusula garantística de direitos fundamentais na América, tão maravilhado ficara com esta cláusula constitucional-processual.

Deixou o mundo estarrecido a atitude tomada pelos EUA, em jan/2002, contra os prisioneiros pertencentes ao Taleban e à Al-Quaeda, cativos em Guantánamo, na Ilha de Cuba, submetendo-os a tratamento desumano, degradante e desrespeitoso, sem condições mínimas de higiene nem comunicação com o mundo exterior, subjugados ao uso permanente de venda nos olhos e ataduras nos membros. [2] A imprensa divulgou o fato e vários países invocaram a necessidade de se respeitarem os direitos dos prisioneiros de guerra, estabelecidos pela Convenção de Genebra. Pressionado, inclusive internamente, e muito a contragosto, o Presidente Bush teve de rever sua posição. Mas ficaram a mácula e a visão de Bush sobre os direitos humanos.

Neste cenário, mais do que nunca, desponta a importância de se volverem os olhos para a Teoria dos Direitos Humanos, enfocando, agora, com relevo, o devido processo legal, hoje sob o plano internacional. De fato, pessoas serem acusadas e caçadas em seus próprios países por um povo estranho, sobremodo com julgamentos sigilosos, e, em seguida, submetidas a tratamento contrário ao que asseguram os tratados internacionais, provoca, no mínimo, indagações sobre velhos e tradicionais temas que, mais do que nunca, precisam ser repensados, senão resgatados no movimento pendular: donde os EUA extraem legitimidade para inverter a ordem mundial? Como ficará a soberania dos países nesta nova ordem? E como serão encarados os direitos humanos, sobretudo no sentido de assegurar aos cidadãos acusados de terrorismo o direito de defesa, ao contraditório, à publicidade e, enfim, ao devido processo legal? Responder a estas perguntas com o argumento da força não é razoável nem sustentável filosoficamente, além de afrontar princípios de democracia e significar a transitoriedade da nova ordem, pois nenhum sistema sobrevive muito tempo pela força bruta. Justificar com a transitoriedade é a mesma coisa que fragilizar a ordem, a qual já se instalará comprometida, eis que fadada a ser brevemente substituída.

Sem dúvida, o terrorismo, esta milenar prática disseminada pelo mundo, deve ser combatido. No entanto, em nome deste combate necessário não pode um país interferir em toda a ordem mundial, atraindo para si o direito de fazer justiça a qualquer preço, impondo o seu poder de coação em todo o globo terrestre. E quem garante que os agentes norte-americanos só caçarão os acusados de terrorismo, se eles próprios estarão instalados em território de outras nações e, portanto, terão acesso a inúmeras informações? Como se processarão esta espionagem e a persecução dos acusados? E como ficarão os sistemas processuais e de garantias desses países, frente à atuação norte-americana? Serão, simplesmente, relegados? Lembre-se de que o próximo passo poderá alcançar outras hipóteses de perseguição e de jurisdicionalização pelos EUA.

Com os meios tecnológicos de última geração, o direito à intimidade, p. ex., corre sério risco de ser violado mais e mais. Você, caro leitor, pode estar, neste exato momento, sendo alvo de investigação, sem o saber. Então, sua liberdade encontra-se ameaçada, seus mais recônditos segredos podem estar sendo públicos. Seu atuar, portanto, deve ser comedido, prudente, cauteloso, senão temeroso e simulado. Você está sendo vigiado muito mais do que imagina. Pare! Não faça o que planeja. Pense bem, antes de tomar qualquer postura.

Em magnífica reportagem, intitulada Sorria: Você Está Sendo Filmado, a revista Superinteressante (maio, 2001) demonstra a quebra da intimidade pela tecnologia moderna. A reportagem começa assim: "Algumas pessoas sabem todos os lugares em que você esteve no ano passado. Possuem também a lista das mercadorias que você comprou, as músicas que ouviu e as pessoas com quem conversou. É possível que elas saibam até a sua preferência sexual. Assustador, não? O motivo alegado para tanta perseguição é apenas trazer segurança e conforto. Para você". [3] É a passagem do estado de vigilância para a sociedade de vigilância. A nova tecnologia de controle se diferencia das anteriores porque é: (a) descentralizada (entidades e organismos públicos e privados, de várias espécies, naturezas e localização, participam desse controle) e (b) consensual (a sociedade convive e aquiesce com esse controle, sem ter a consciência da dimensão da quebra de sua intimidade e de sua privacidade).

Estes meios tecnológicos logram grande avanço nos EUA, que aproveitam para espionar seus cidadãos e o mundo inteiro. Na aldeia global, é exatamente esta a tendência: a tecnologia invade os países, mas sempre haverá uma tecnologia de ponta (transitória, superável e dinâmica), pertencente aos países mais ricos e às nações mais potentes.

Na mesma reportagem, a Superinteressante prossegue:

"Apesar das críticas, muitos governos tentam inventar formas de aproveitar a crescente facilidade de obter informações para aumentar o controle sobre a população. O FBI instalou um projeto chamado Carnivore, que consiste em grampear a internet de pessoas suspeitas. Após conseguir licença judicial, agentes instalam uma caixa no provedor de acesso, que registra o tráfego de e-mails e de sites para a conta específica. A mesma agência possui convênios com empresas especializadas em bancos de dados e companhias de transporte para obter delas informações detalhadas sobre os cidadãos.

Já na Inglaterra, os provedores de acesso são obrigados a registrar o tráfego de internet e encaminhá-lo ao governo. Se necessário, cada pessoa deve informar também a chave para decodificar mensagens criptografadas e, se contar para alguém a respeito da investigação, pode ser condenada a até cinco anos de prisão. Lá, como se vê, a obsessão por segurança e o desrespeito à privacidade se tornaram tão grandes que já há um banco de dados com o código genético de todas as pessoas com antecedentes criminais. É uma boa notícia para investigadores de polícia: qualquer fio de cabelo ou pedaço de pele deixados na cena do crime podem ser utilizados para identificar o culpado. Para a população, a medida pode ser considerada invasiva, já que dentro de alguns anos, talvez o cadastro de DNA inclua todos os cidadãos.

[...].

Se todos esses fatos fizerem você pensar que a privacidade acabou de vez, saiba que ainda não ouviu o pior. A Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA), junto com colegas da Inglaterra, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, possui um gigantesco sistema de vigilância que intercepta e processa a maior parte das comunicações feitas entre países. O acordo existe desde 1947 e só se tornou conhecido há poucos anos com o nome de Echelon (Escalão). Trata-se de uma rede de satélites-espiões, grampos em cabos de telecomunicações submarinos, aparelhos de escuta em embaixadas e receptores de rádio que enviam dados para centrais espalhadas em cada um desses países. A princípio, a seleção dos dados relevantes era feita de forma manual, mas foi automatizada a partir dos anos 70 e hoje conta com uma sofisticada rede de computadores e softwares que utilizam palavras-chaves para garimpar as comunicações de interesse para esses governos". [4]

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Alguns países já começaram a criar banco de dados com o código genético de toda pessoa acusada de algum delito.

"A Inglaterra espera ter 3,5 milhões de amostras registradas até 2004, o que representaria um em cada 15 cidadãos. A solução de alguns casos faz as autoridades britânicas se entusiasmarem ainda mais com a tecnologia. Em janeiro de 2000, Stephen Snowden tentou roubar um uísque e acabou na delegacia, onde teve seu DNA fichado. Os testes o relacionaram a um caso de estupro cometido em 1991 e, com base nessa evidência, Snowden foi condenado a 12 anos de prisão. Apesar de sucessos como esse, o banco de dados de DNA tem sido alvo de muitos protestos de pessoas que temem que o cadastro comece a se espalhar além dos criminosos. Muitos consideram que doar uma amostra do material genético para o governo é uma invasão de privacidade e uma forma de punir inocentes". [5]

Certamente, caro leitor, você já recebeu em casa propostas de compra de produtos e de revistas sem sequer imaginar como os emitentes tiveram acesso a seu nome, dados pessoais e endereço.

Na verdade, os debates sobre a privacidade vão aumentar muito mais. A revista Veja (jan/2002) noticiou que a empresa norte-americana Applied Digital Solutions, sediada na Flórida, criou uma técnica de implante de chips que não apresenta rejeição nem efeitos colaterais. Aprovada pela Comissão Federal de Comunicações dos EUA, essa novidade permite que as pessoas carreguem no corpo dados sobre o tipo sanguíneo, identidade, etc. O polêmico é que os portadores do chip poderão ser rastreados por satélite. [6] Em termos de segurança, a medida pode trazer benefícios como localizar pessoas desaparecidas ou seqüestradas, localizar criminosos; contudo, definitivamente, será ofensiva à privacidade.

O direito à privacidade exigirá novas e responsáveis tecnologias, sob pena de violação dos direitos humanos, tanto interna quanto externamente. [7] Em maio de 1967, foi celebrada, em Estocolmo, a "Conferência Nórdica sobre o Direito à Intimidade, de que resultou documento alinhando cinco máculas ao direito à intimidade, a saber:

a)penetração no retraimento da solidão da pessoa, incluindo-se, no caso, o espreitá-la pelo seguimento, pela espionagem ou pelo chamamento constante ao telefone;

b)gravação de conversas e tomadas de cenas fotográficas e cinematográficas das pessoas em seu círculo privado ou em circunstâncias íntimas ou penosas à sua moral;

c)audição de conversações privadas por interferências mecânicas de telefone ou microfilmadoras dissimulados deliberadamente;

d)exploração de nome, identidade ou semelhança da pessoa sem seu consentimento, utilização de falsas declarações, revelação de fatos íntimos ou crítica da vida das pessoas;

e)utilização em publicações ou em outros meios de informação, de fotografia ou gravações obtidas subrepticiamente nas formas precedentes.

A sociedade precisa se adequar aos novos tempos e aprender a conviver com um mundo dinâmico, em transformações diuturnas e mudanças à velocidade da luz. Neste novo mundo, mais do que segurança, a justiça e a paz devem orientar o comportamento humano, sem esquecer a primeira.

Com tamanha tecnologia, aliás em franca expansão, a suprema justiça norte-americana constitui um perigo incalculável para os povos e propende a ferir a intimidade e a privacidade das pessoas do mundo inteiro. Há um fosso abissal entre o poder tecnológico dos EUA e o dos países do Terceiro Mundo, que não possuem a mesma tecnologia nem a ciência da contra-espionagem.

É neste cenário, pois, caro leitor, que enfocaremos a teoria dos direitos humanos, centralizando-a no próprio homem, ao invés de apresentá-la sob o epicentro do Estado, que, nesta perspectiva, passa a ser seu mero garantidor.


2. Necessidade de preservação dos direitos humanos. Situamento axiológico e de Direito interno. A visão antropocêntrica

Conquanto historicamente os direitos humanos tenham surgido no intuito de limitar a atuação do Estado, eles se desenvolveram para reclamar prestações positivas em favor dos cidadãos. Imprescindível, então, o conteúdo garantístico de todas as categorias destes direitos, não apenas sob o plano político, mas também sob o manto jurídico.

Atualmente, é indiscutível que eles assumiram um caráter axiológico muito mais amplo e mais valioso do que ao nascerem, a ponto de se destinarem a assegurar a dignidade do ser humano, como pauta mínima indispensável à sua sobrevivência, ao seu desenvolvimento e à sua convivência. Vale dizer, passaram a alcançar, também, as relações privadas, círculo no qual se desenvolvem muitas das fatalidades e realizações do ser social. Foram elevados às Constituições dos países, assumindo a forma de direitos fundamentais, percebendo-se, do estudo de direito comparado, uma certa identidade entre eles, expressos internamente nas várias Cartas. A eficácia que eles requerem deve ser a mais ampla e plena possível: nas óticas social, política, jurídica, econômica, administrativa, judicial, material, processual, estatal, extra-estatal...

Ingo Wolfgang Sarlet demonstra esta feição mais ampla dos direitos fundamentais, referindo-se a uma visão jurídico-objetiva a seu propósito, de acordo com a qual eles exprimem determinados valores que o Estado não apenas deve respeitar, mas também promover e zelar por sua observância, mediante uma postura ativa, sendo, portanto, devedor de uma proteção global dos direitos fundamentais. Desta sorte, ditos direitos, na qualidade de princípios constitucionais e por força do princípio da unidade do ordenamento jurídico, "se aplicam relativamente a toda a ordem jurídica, inclusive privada", bem como há "necessidade de se protegerem os particulares também contra atos atentatórios aos direitos fundamentais provindos de outros indivíduos ou entidades particulares". [8] Citando doutrinadores estrangeiros, o autor afirma que os direitos fundamentais constituem "normas de valor válidas para toda a ordem jurídica (princípio da unidade da ordem jurídica) e da força normativa da Constituição", não se podendo aceitar "que o direito privado venha a formar uma espécie de gueto à margem da ordem constitucional". [9]

Existe um reconhecimento, no âmbito da perspectiva jurídica-objetiva dos direitos fundamentais, de que todos, Estado e particulares, se encontram a eles vinculados por um dever geral de respeito, "situação que costuma ser identificada com uma eficácia externa dos direitos fundamentais, na qual os particulares assumem a posição de terceiros relativamente à relação indivíduo-poder, na qual está em jogo determinado direito fundamental". [10] Enfim, há um consenso, atualmente, de que os direitos fundamentais se destinam a tutelar as pessoas contra o Estado e contra atos de particulares, bem como integram o patrimônio jurídico de pessoas físicas e jurídicas, salvo no que obviamente forem inaplicáveis a estas, por impossibilidade material ou por decorrência da sua natureza.

Se a extensão dos direitos fundamentais à órbita privada se encontra definida, o tema das garantias constitucionais ainda apresenta muitas incertezas. E o problema maior repousa na dificuldade em se aceitar a oposição de garantias processuais contra atos do setor privado.

No campo processual, a garantia fundamental reside na cláusula do devido processo legal (due process of law). É desta que decorrem inúmeras outras, algumas típicas do processo e outras pertinentes aos procedimentos como um todo.

É preciso construir uma teoria geral dos procedimentos investigatórios, aproximando-os todos entre si, de forma a assegurar um mínimo de resguardo dos direitos e garantias constitucionais fundamentais. Que se crie uma teoria geral, partindo de um ponto comum (os direitos e garantias fundamentais) e se especializando em cada setor, onde os princípios comuns e gerais sofram adaptações para se amoldarem e se adequarem à natureza da espécie procedimental in concreto, embora sem se divorciar das orientações do tronco comum. Uma teoria deste teor tornará mais segura a aplicação dos preceitos e normas que regem toda e qualquer espécie de investigação, além de fornecer elementos mais científicos ao estudo do assunto, numa base única. Atualmente, há apenas elementos soltos, estudos desconexos, sem cientificidade, a propósito do tema.

Os direitos e garantias fundamentais inerentes à cláusula do due process of law não devem se projetar apenas no processo estritamente público (judicial ou administrativo). Urge que se fomente de maneira mais ampla a teoria geral dos procedimentos, aproximando-a da Teoria Geral do Processo, e alargando-lhe os domínios para fazê-la alcançar, também, os procedimentos em geral e os processos de âmbito privado. Como espécies de procedimentos e processos privados, citam-se, a título exemplificativo: as Sindicâncias internas feitas pelo empregador na apuração de falta disciplinar de seus empregados; o processamento para excluir o cooperado da cooperativa; o processamento realizado nas sociedades comerciais para exclusão de sócio minoritário ou não; o processamento levado a cabo por empresas privadas para averiguar o fluxo de mercadorias e de aplicações financeiras ou investimentos; o procedimento referente a controle de dados do cidadão, a que se reportam os primeiros dispositivos da Lei do Habeas Data (Lei n.º 9.507/97), etc. [11]

A cláusula do due process of law é inalienável, indisponível, compondo o patrimônio jurídico-subjetivo dos direitos e garantias fundamentais do cidadão. Exatamente por isso, o cidadão não pode dela dispor; vale dizer, nesta linha de raciocínio: ninguém pode abrir mão da oportunidade do amplo direito de defesa e da produção de provas. O máximo que pode suceder é o não exercício da faculdade, o não aproveitamento da oportunidade por parte do interessado (e isto, no âmbito penal, é diferente, porque a defesa técnica é obrigatória). A cláusula do devido processo legal é imposição constitucional, que assegura um direito subjetivo público irrenunciável; mais do que isto, é direito reconhecido internacionalmente. Como garantia fundamental, não se dirige apenas contra o setor público, pois se encontra, intimamente e em primeiro lugar, ligada ao sujeito acusado em geral, e não exclusivamente ao órgão acusador. O próprio Estado não pode negá-lo, por qualquer de seus poderes e funções, seja na aplicação prática das regras, seja na elaboração destas. Nesta dimensão, inserida no patrimônio jurídico do cidadão, a cláusula o acompanha onde quer que vá, amparando-o em qualquer situação acusatória.

Cumpre-nos, nesta ocasião, deixar bastante explicitado que as garantias constitucionais têm por fito instrumentalizar direitos referentes à sobrevivência e à dignidade do ser humano, alguns como indivíduo, outros como ser social. O maior destinatário de tais cláusulas é, pois, o cidadão. Elas pertencem a este e integram o seu patrimônio jurídico fundamental, reconhecido tanto nacional quanto internacionalmente. Acompanham-no aonde quer que vá e perante quem ele se poste. O centro dessas garantias (e também dos direitos que elas tutelam), portanto, é o cidadão, e não o Estado. Daí, o antropocentrismo. [12] O Estado figura como órgão encarregado de efetivá-las, assegurá-las e conferi-las fielmente ao cidadão, seu titular primário e natural. Logicamente, o Estado também possui inescusável interesse em assegurá-las, porque isto faz parte da sua própria sobrevivência e da legitimidade do Poder que ostenta.

Podemos ilustrar, alegoricamente, que estas garantias constitucionais não se encontram guardadas numa gaveta da autoridade estatal, que delas fará uso sempre que alguém se apresentar perante o Poder Público, pedindo a tutela jurisdicional ou administrativa. Na verdade, sob a ótica interna (nacional), elas se encontram em uma bolsa, entregue pelo Estado a cada cidadão, que a leva consigo, indissociável da sua pessoa, e apresentável em qualquer circunstância em que esteja sendo processado, seja perante agente ou autoridade pública, seja perante outro indivíduo, órgão ou entidade privada. Algumas garantias, guardadas na bolsa, podem ser retiradas e utilizadas nos processos e nos procedimentos; outras, somente nos processos; algumas terão dimensão maior, outras menor.

Portanto, seja o acusador, o investigador ou o julgador público ou privado, o devido processo legal e o amplo direito de defesa têm de ser assegurados em todo e qualquer processo apuratório de falta disciplinar do cidadão; quer dizer, em qualquer pretensão acusatória. Assim, não pode o sujeito privado, acusado perante órgão também privado, v. g., renunciar à cláusula pública, encravada no seu patrimônio fundamental. Tampouco pode o investigador ou o acusador privado dispor dessa garantia para somente assegurá-la quando bem lhe aprouver ou conforme o alvedrio das suas conveniências.

Não bastassem estas ponderações, é claramente sabido que o Estado, no seu jus persequendi e no exercício do julgar, encontra várias limitações, definidas por cláusulas garantidoras do cidadão e do atuar estatal, capitaneadas na do devido processo legal. São imposições que orientam o processo e o procedimento. Garantias mínimas devem ser asseguradas ao acusado em geral, em dimensão variável conforme a hipótese seja de processo ou de mero procedimento. [13] Um prius suficiente para assegurar o respeito à sua dignidade e aos valores básicos da existência honrada e decente é imperioso.

É elementar a necessidade de assegurar o direito de defesa (e, na sua extensão, o de prova) ao acusado no processo privado e, em dimensão menor, mas igualmente inevitável, nos meros procedimentos privados. Afinal, certas provas tendem a desaparecer ou serem preparadas. De modo que, se não for garantido amplamente o direito de defesa, alguns meios de prova e outras evidências podem sumir, desaparecer da realidade e, portanto, tornar-se impossível de ser reproduzidos ou mesmo produzidos em juízo. Menciona-se a morte de testemunha no curso da investigação, o desaparecimento de indícios e situações ambientais e o sumiço de documentos (cheques, títulos de crédito, listas de fregueses, blocos de notas de compra e venda, etc.). Circunstâncias as quais o cidadão leigo não está acostumado a enfrentar e, exatamente por não saber agir ou não poder fazê-lo, não constitui advogado nem ajuíza as ações judiciais cabíveis. [14] O patrocínio do advogado, por exemplo, é garantia a que acusador nenhum, mesmo privado, pode se opor.

O Estado não pode se limitar a defender o cidadão apenas contra o Poder Público, contra si mesmo. Outros violadores do patrimônio jurídico individual, social e coletivo existem. A muralha, que se pretende protetiva ao trabalhador, ao sócio de entidade e ao consumidor, no setor privado, é frágil; qualquer invasor pode irrompê-la. E esta violação, muitas vezes, atenta contra o interesse público.

No campo privado, é função do Estado procurar equilibrar a relação entre as partes (princípio da igualdade de tratamento), assegurando garantias mínimas aos que se encontrem em estado de sujeição ou de hipossuficiência perante outrem. Foi inspirado neste teor que o Direito impôs limites à liberdade contratual, à autonomia da vontade, proibindo os contratos e as cláusulas leoninas ou que possam comprometer a dignidade do cidadão. E é sob dita ótica que existem as normas sobre relações de consumo (protegendo o consumidor), relações de trabalho (protegendo o obreiro), relações civis e comerciais (protegendo o devedor), etc. O Direito, no fito de equilibrar os pólos da relação jurídica, estabelece disposições protetivas da parte mais frágil. Se isto existe no plano material, urge que também se instale na dimensão processual, sobretudo agora quando se constata uma feição fundamental aos direitos e garantias processuais. Carece desenvolverem-se técnicas de equilíbrio, as quais supõem uma teoria da coerência da moralidade, para utilizarmos uma expressão de Dworkin. [15]

Ingo Sarlet vislumbra, no âmbito da problemática da eficácia privada dos direitos fundamentais, que "as hipóteses de um conflito entre os direitos fundamentais e o princípio da autonomia privada pressupõem uma análise tópica, calcada nas circunstâncias específicas do caso concreto, devendo ser tratada de forma similar às hipóteses de colisão entre direitos fundamentais de diversos titulares, isto é, buscando-se uma solução norteada pela ponderação dos valores em pauta, almejando obter um equilíbrio e concordância prática, caracterizada, em última análise, pelo não-sacrifício completo de um dos direitos fundamentais, bem como pela preservação, na medida do possível, da essência de cada um". [16]

A cláusula do due process of law ou do devido processo legal há de ser observada, com maior ou menor rigor de aplicação, em todos os atos procedimentais, sobretudo naqueles que tiverem por finalidade precípua aplicar sanção a determinado indivíduo.

Algumas garantias alcançam a etapa meramente procedimental e, às vezes, possuem natureza material. Destarte, admitem-se garantias e direitos do indiciado na investigação penal.

No Inquérito Policial, v. g., há de ser observado: o respeito à dignidade do indiciado, bem como à sua integridade física e moral; a vedação ao constrangimento; a vedação a situações vexatórias tanto do indiciado quanto das testemunhas e de todos quantos colaborem com a investigação; a proibição de exposição ao público; a publicidade do Inquérito, salvo quando for imperioso o sigilo, para proteger a intimidade ou para assegurar a investigação; a condução procedimental pela autoridade competente; [17] o acesso às informações e à acusação de terceiros no Inquérito; a proibição de tortura e o direito de identificação dos responsáveis pela prisão ou por seu interrogatório policial. Algumas destas garantias (v.g., o da publicidade) podem sofrer exceções, em situações especialíssimas, ditadas por lei. [18]

Estas garantias mínimas são aplicáveis, mutatis mutandis, às investigações em geral, como é o caso das conduzidas pelo Ministério Público, nos inquéritos civis públicos e nos demais procedimentos investigatórios.

Em face do princípio da publicidade, a orientar a atividade do Judiciário e da Administração Pública, [19] o sigilo nas investigações passa a ser excepcional, aplicável a situações também excepcionais, dependente de motivação, só sendo possível para atender ao resguardo da intimidade e para assegurar a eficácia da investigação, quando for imprescindível. Esta imprescindibilidade será demonstrada na motivação e se sujeitará à discussão na via judicial, no momento oportuno. Constatada a inadequação do método investigativo, todos os elementos decorrenciais igualmente estarão viciados (frutos da árvore envenenada), padecendo de defeito que comprometerá a validade da prova. De modo mais simples: a prova será imprestável.

Enfim, o Estado tem a obrigação de assegurar ao cidadão todos os direitos fundamentais (como o direito à intimidade e à privacidade) e todas as garantias inerentes a cada espécie de processo ou procedimento (máxime os princípios decorrentes do devido processo legal) contra atos do poder público ou da iniciativa privada.

Sobre o autor
Francisco Gérson Marques de Lima

procurador regional do trabalho da 7ª Região, mestre e doutor em Direito, professor de pós-graduação em Fortaleza, coordenador geral do curso de Direito da Faculdade Christus

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Francisco Gérson Marques. Por uma visão internacional antropocêntrica dos direitos humanos, num mundo de terrorismo, guerras, insegurança e avançadas tecnologias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. -182, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3649. Acesso em: 23 nov. 2024.

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