3. Antropocentrismo, no plano internacional
O tópico anterior fez-se necessário para convencermos o leitor de que o destinatário dos direitos ditos fundamentais é o homem, que é o epicentro, também, das garantias fundamentais. Nesta linha de raciocínio, o Estado possui o papel de garantidor, quer contra atos dele próprio, quer contra atos de órgãos e entidades privados. Resta analisar, de outra feita, o papel do Estado no asseguramento dos direitos e garantias fundamentais de seus cidadãos perante outros Estados e organismos internacionais, bem ainda a importância destes organismos na aldeia global e a possibilidade de voltarem-se contra o Estado a que se vincula o cidadão para protegê-lo.
Considerando a relevância mundial dos direitos humanos (aqui entendidos em sua expressão mais aceita, isto é, como aqueles acatados internacionalmente ou, ao menos, buscados pelos países para formarem pauta mínima a serem incorporados por todas as nações) [20] e a historicidade global que os alenta, bem ainda a falta de um efetivo tribunal internacional apto a assegurá-los plenamente, até mesmo ante os entraves naturais da soberania dos Estados, urge, de toda forma, conferir-lhes eficácia e proteção internacionais.
Aqui, no plano internacional, mais do que no plano interno das nações, agora com o avanço bélico de países como os EUA, faz-se imperioso levantar a bandeira do antropocentrismo, que tem o homem como centro, destinatário e portador dos direitos humanos. É o ser humano quem ostenta a carta de direitos humanos, acima dos direitos fundamentais reconhecidos pelo seu país de origem ou no qual viva. Toda a comunidade global há de respeitar a carta internacional, porque, agora, o homem é cidadão do mundo. Também foi globalizado, absorvido pelo sociedade planetária. Esta consciência é de suma importância, essencial à convivência digna entre os homens.
E os direitos humanos mais primários (os individuais) recebem o alento de outras categorias (os coletivos, os difusos, os de segunda, terceira e quarta dimensões). Levando consigo estes direitos, incorporados à sua existência, todos os países devem respeitá-los, porque não pertencem à pauta legal de cada Estado, mas, superando este estágio (de direitos fundamentais), são da alçada do próprio ser humano, qualquer que seja ele, não importando sua nacionalidade, sua genética, sua origem, credo religioso ou preferência sexual.
Na medida em que há coincidência de direitos fundamentais, dispostos nas Cartas Constitucionais de diversos países, como ocorre sobretudo no mundo ocidental, é preciso reconhecer que eles são expressões de algo maior, mundializado (os direitos humanos). Então, aí, as nações têm dupla obrigação de respeitá-los: (a) como direitos positivados na Carta Constitucional respectiva; e (b) como expressões de direitos essenciais à própria humanidade, muito embora possam vir a ser encarnados individualmente, mas reconhecidos pela aldeia global.
Disto se retira uma responsabilidade indisfarçável de cada país em preservar os direitos humanos. É que, ao preservá-los, preserva, também, o seu próprio povo e contribui para a sobrevivência digna da espécie humana, propiciando-lhe o desenvolvimento e a evolução necessária à vida no globo terrestre e – é hora de reconhecer - espacial.
Em torno destes direitos, já existe uma certa aceitação e reconhecimento mundial. Tanto eles se consolidam internamente, nas Constituições dos países, como são objetos de tratados internacionais, muitos incorporados à cultura dos povos. Esta conquista, resultado de lutas históricas, manchadas de sangue e sacrifícios, não pode, agora, ser perdida nem minimizada. É preciso avançar. Ao lado do seu reconhecimento, pelo menos mais três fatores necessitam ser enfrentados: (a) a preservação dos direitos já conquistados; (b) o aperfeiçoamento e o elastecimento deles; e (c) a sua eficácia, a sua efetividade, a sua proteção, o seu respeito, o mais integral possível, em todos os planos. É preciso cuidar-se de garantias aos direitos humanos, no plano internacional.
Logicamente, esta eficiência perpassa várias instâncias e dimensões, desde a da consciência dos povos em admitir a necessidade e a importância dos direitos humanos e suas garantias, até a da operacionalização da sua prática, seja de modo preventivo, seja de forma repressiva.
Como cidadão do mundo, titular de direitos relacionados à aldeia global, o ser humano ostenta e leva consigo, para onde quer que vá, uma carta mínima de direitos e garantias, apresentáveis e exigíveis em qualquer nação ou organismo internacional. Todos os Estados devem-lhe observância, pois responsáveis, no âmbito interno, pela manutenção da ordem mundial, dos valores reconhecidos internacionalmente.
A soberania de cada país encontra limites nos valores mais profundos da aldeia global. E somente esta é que pode questionar o ato do país que, porventura, desrespeite seus valores. Não pode uma outra nação de arvorar deste direito para, dizendo-se titular da repressividade mundial, com base apenas em poderio bélico, invadir países, caçar cidadãos, quebrar sua intimidade e penetrar no sossego sagrado dos lares. Esta atitude fere, a um só tempo, a soberania dos Estados e, pelo mau procedimento, os direitos humanos. Toda a sociedade mundial, enfim, é responsável por isto, eis que deixa ao desamparo titular de direitos por ela proclamados ínsitos ao ser humano.
Cada país deve censurar e repelir atos que ofendam os direitos humanos (quanto mais se expressos nas próprias Cartas Constitucionais) dos seus cidadãos, provenham de onde provierem. Na falta de condições tecnológicas, bélicas, econômicas ou de outra ordem, deve a nação recorrer aos organismos internacionais, denunciando a violência. E os organismos internacionais não podem quedar-se inertes: estará em jogo a existência de direitos inerentes ao ser humano; o mundo é responsável por sua preservação. Sem necessária deflagração de guerras, a luta pela preservação a tais direitos e garantias deve ser encampada, em todos os níveis e dimensões. A questão é de dignidade e, mais, de sobrevivência.
Sabendo-se que o cidadão é portador incontinenti de direitos humanos e de garantias essenciais à sua defesa, reconhecidas internacionalmente, ele os leva todos consigo, podendo apresentá-los aonde quer que se dirija. E todas as nações devem-lhe obediência e obrigação de fazê-los ver respeitados, contra quem quer que seja. Os eventuais conflitos entre direitos humanos serão resolvidos pelas técnicas e métodos de interpretação, de que vêm tratando os cultores do Direito.
Daí, constituirem-se a política e a prática dos EUA verdadeiros abusos e atentados aos direitos humanos, merecendo ser prontamente rechaçada. É ora de repensar a tecnologia, pondo-a a serviço do homem e preservando-lhe a intimidade e a privacidade. Não há legitimidade de nenhuma Nação para violar os direitos humanos, para invadir países nem para caçar cidadãos e invadir, sem autorização, o tranqüilo lar, este asilo inviolável, com exalta o liberalismo, de que são expoentes, contraditoriamente, os EUA.
4. À Guisa de Conclusão:
De tudo quanto aqui se expôs, fica claro que a tecnologia se encontra em franca evolução, nem sempre acompanhada pelos países de Terceiro Mundo.
Referências Bibliográficas:
ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993.
CHOUKE, Fauzi Hassan. Garantias Constitucionais na Investigação Criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
DWORKIN, Ronald. Los Derechos en Serio. Título original: Taking Rights Seriously. Trad.: Marta Guastavino. Barcelona: Editorial Ariel, 1995.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas Tendências do Direito Processual. 2ª ed. RJ: Forense Universitária, 1990.
LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípios Políticos do Direito Penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Garantia do tratamento paritário das partes, Garantias Constitucionais do Processo Civil. TUCCI, José Rogério Cruz e (Coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
MARQUES DE LIMA, Francisco Gérson. Fundamentos Constitucionais do Processo - sob a perspectiva de eficácia dos direitos e garantias fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2002.
—. Direito Processual do Trabalho. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis & BASTOS, Cleunice A. Valentim. Defesa Penal: Direito ou Garantia, Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 04:111-124, out.-dez., 1993.
ROBLES, Gregorio. Los Derechos Fundamentales e la Ética en Sociedad Actual. Madrid: Civitas, 1995.
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
SUANNES, Adauto. Os Fundamentos Éticos do Devido Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1993.
Notas
1. Carta Capital, edição de 28/11/2001, p. 22.
2. O Estado de S. Paulo, 30/01/02, A-12.
3. Superinteressante, ano 15, nº 05, maio, 2001, p. 90.
4. Superinteressante, ano 15, nº 05, maio, 2001, p. 94-95.
5. Detetives de Laboratório, Revista Superinteressante, ano 15, edição 174, março, 2002, p. 64
6. Veja, edição de 16/01/02, p. 97.
7. A revista Tudo que eu Quero (Editora Abril, edição nº 81, de 16/08/2002) abordou o trabalho desenvolvido por detetives e investigadores particulares, apresentando alguns aparelhos tecnológicos espetaculares, que podem ser colocados em lugares inimagináveis e de difícil detectabilidade: são microcâmeras, aparelhos em forma de cartão de crédito, canetas que gravam som e imagem, interceptadores de ligações telefônicas, enfim, uma parafernália capaz de invadir a privacidade da pessoa (p. 29).
Neste avanço, a tecnologia já estuda uma forma de tornar realidade velho desejo: "Ah, se eu fosse uma mosca...". Controlado por controle remoto, encontra-se em fase de testes um besouro mecânico, que pode ser controlado à distância, capaz de transmitir imagens do que vê no seu vôo pelo interior de ambientes e casas. Como o aparelho ainda é de grande porte para a finalidade que se lhe quer conferir (mede cerca de 30 cm), os técnicos estudam outros insetos mecânicos menores, algo como uma formiga ou uma mosca, inclusive no tamanho, capazes de registrar som e imagem, manipulados por controle remoto a 500m ou mais de distância.
Neste mundo de espionagem, precisa-se de tecnologia contrária e inibitória, o que tenderá a ser privilégio das classes mais ricas. As classes mais baixas continuarão a ser desrespeitadas no direito à intimidade, pois o Estado, certamente, não assumirá o preço da anti-tecnologia.
8. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 335.
9. Idem, p. 336.
10. Sarlet, A Eficácia..., cit., p. 338.
11. É de se indagar qual a natureza dos processos disciplinares instaurados pelos Conselhos profissionais para apurar infrações pertinentes ao exercício da profissão por determinado membro: é pública ou privada?
Tendo em vista a Lei n.º 9.649/98, cujo art. 58 conferia natureza de pessoa jurídica de direito privado aos Conselhos federais de fiscalização de profissões, e sua suspensão cautelar pelo STF (ADInMC 1717/6-DF, Rel. Min. Sidney Sanches, DJU 25.02.2000), afigura-se a permanência de sua natureza pública. De toda sorte, apesar dessa discussão, hão de prevalecer os princípios e garantias constitucionais do indiciado nos procedimentos e processos disciplinares conduzidos por tais Conselhos ou por suas comissões de ética (na OAB, no CRM, etc.), sob pena de nulidade.
12. Sustentamos a visão antropocêntrica dos direitos e garantias fundamentais no nosso Fundamentos Constitucionais do Processo - sob a perspectiva de eficácia dos direitos e garantias fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 62-79.
13. No campo público, o processo é orientado pelo primado do devido processo legal, em suas várias dimensões, da maneira mais ampla possível. Os meros procedimentos são cercados de garantias mínimas também. No Inquérito Policial, p. ex., hão de ser observados, dentre outros: o respeito à dignidade do indiciado, o respeito à integridade física e moral, a vedação ao constrangimento, a proibição de exposição ao público, o acesso às informações e à acusação do Inquérito, a proibição de tortura e o direito de identificação dos responsáveis pela prisão ou por seu interrogatório policial.
14. No nosso livro Direito Processual do Trabalho. 3ª ed., p. 301-302, tratamos destas breves ponderações, enfocando a validade das sindicâncias privadas no Processo do Trabalho.
15. Dworkin, Los Derechos en Serio, p. 246.
16. Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 339.
17. Registra-se, aqui, uma tendência de se criar o delegado natural (à semelhança do juiz natural e do promotor natural), com competência prévia ao fato investigado no Inquérito que preside. Contudo, há dificuldades jurídicas para tanto, sobremodo porque os delegados não são inamovíveis e sua independência funcional ainda é limitada, ante a hierarquia administrativa a que se vinculam.
18. Sobre garantias mínimas na investigação criminal, recomendamos: CHOUKE, Fauzi Hassan. Garantias Constitucionais na Investigação Criminal; TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro; MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis & BASTOS, Cleunice A. Valentim. Defesa Penal: Direito ou Garantia, Revista Brasileira de Ciências Criminais, 04:111-124; GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas Tendências do Direito Processual. 2ª ed.; LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípios Políticos do Direito Penal. 2ª ed.; SUANNES, Adauto. Os Fundamentos Éticos do Devido Processo Penal.
19. "O candidato inscrito em concurso público e dele eliminado em razão de motivo relevante apurado em sindicância sigilosa tem o direito de exigir a revelação da causa da exclusão, para que possa discutí-la judicialmente; a tutela judicial que, nessa conjuntura, seu interesse individual autoriza a pleitear, é aquela que lhe assegure a participação nas provas do concurso" (STJ/2ª T., RMS 1.627-TO, Rel. Min. Ari Pargendler; DJU-1 29.09.97, p. 48.164; IOBJur 1/11621, nov./97).
20. A expressão direitos humanos é mais utilizada em documentos internacionais e revela a existência de um bloco de direitos aceitos internacionalmente, enquanto a expressão direitos fundamentais revela a positivação interna, em determinado país, dos direitos humanos, dentro da sua opção política, através do seu ordenamento jurídico. É esta classificação que seguimos neste texto.
Referindo-se aos direitos consagrados no art. 5º, CF/88, José Afonso da Silva observa que "no qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive" (Curso de Direito Constitucional Positivo. 19ª ed., p. 182). O mesmo autor discorre sobre várias expressões similares: direitos humanos, direitos do homem, direitos subjetivos públicos, liberdades públicas, etc. (idem, p. 157-159). Robert Alexy entende por direitos fundamentais aqueles positivamente válidos, aclamados pela Lei Fundamental (Teoría de los Derechos Fundamentales, p. 28). Sobre as expressões direitos humanos e direitos fundamentais, v. Gregorio Robles, Los Derechos Fundamentales e la Ética en Sociedad Actual, p. 17-24.