Palavras-chave: Germinal. Meio ambiente do trabalho. Insalubridade. Monetização do risco. EPI. EPC. Saúde do trabalhador.
I. Introdução
Assistindo ao Germinal[1], e após muito refletir sobre as condições degradantes de trabalho a que eram submetidos os trabalhadores nas minas de carvão naquela época – e por vezes atualmente - fato interessante me tomou a atenção: será que a ideologia que reveste o tão criticado pagamento do adicional de insalubridade, criado tempos depois da época vivenciada no filme, surtiria efeito se existisse na época retratada na obra cinematográfica?
Para que se possa alcançar uma conclusão, faremos uma breve análise do tão aclamado Germinal, de Émile Zola, teceremos algumas considerações sobre meio ambiente do trabalho e o instituto da insalubridade, para, ao final, respondermos à questão central supracitada.
II. Germinal
A obra Germinal foi publicada em 1885 por Émile Zola e, posteriormente, em 1993, deu origem ao filme de mesmo título, dirigido pelo cineasta francês Claude Berri, que retratou as degradantes condições de trabalho impostas aos trabalhadores, muitos deles mulheres e crianças, dentro de uma mina de carvão. Ilustrou, ainda, o desrespeito à dignidade da pessoa humana dos trabalhadores, que exerciam suas atividades em um ambiente escuro, insalubre, praticamente sem ter o que comer, em troca de um salário irrisório e, portanto insuficiente a custear sequer a alimentação básica dos trabalhadores, obrigando a suas mulheres, por vezes, a se submeterem a favores sexuais do dono de uma mercearia em troca de comida.
Ponto interessante e que merece destaque, é a diversidade social entre a burguesia dominante e o proletariado, que luta diariamente pela sua sobrevivência, deixando para quem a assiste ou lê a obra, a oportuna reflexão sobre a necessidade de mudanças na sociedade de maneira a garantir aos trabalhadores uma condição de vida e de trabalho mais digna.
Como bem define Katya Maia Motta[2], em dissertação sobre o filme em comento:
“[...] Em Germinal, essa ideologia dominante burguesa é representada por um grupo de pessoas que se mostra inconsciente em relação ao estado de sub-vida de seus empregados, os quais trabalham em uma mina de carvão. Essa inconsciência por parte da classe detentora do poder econômico se explica por esta achar que o proletariado é uma classe desprovida de privilégios e sonhos; para ela, os trabalhadores queixam-se sem motivos, já que, segundo seus critérios, eles possuem tudo aquilo de que precisam e a companhia administrada por eles é, na realidade, uma “mãe” para todos.”
Assim, tem o filme função didática no sentido de proporcionar ao espectador uma reflexão sobre o contexto histórico e social do Direito do Trabalho no século XIX e, consequentemente, propiciar a mais ampla reflexão sobre a evolução das normas protetivas que permeiam este ramo do direito.
III. O instituto jurídico da insalubridade
De outro lado, sobre o instituto jurídico da insalubridade, dispõe o art. 7º, XXIII da nossa Carta Magna que:
“Art. 7º - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XXIII - adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei;”
Na esfera infraconstitucional, o art. 193 da CLT assim disciplina sobre o tema:
“Art. 189 - Serão consideradas atividades ou operações insalubres aquelas que, por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos.”
O referido dispositivo legal, inserido na Consolidação das Leis do Trabalho desde 1977, dá ao trabalhador que está exposto de forma permanente a determinado agente nocivo o direito a percepção do denominado adicional de insalubridade, no percentual de 10%, 20% ou 40%, em grau mínimo, médio ou máximo, respectivamente, sobre o salário mínimo vigente. Trata-se de uma compensação financeira concedida ao trabalhador exposto ao probabilidade presumida de contrair doença ocupacional em razão das más condições ambientais de trabalho a que é submetido.
Para fazer jus a este adicional, consoante disposto no art. 190 da CLT, além de estar exposto ao risco, deve a atividade exercida pelo trabalhador estar inserida em um dos 14 anexos da Norma Regulamentadora n. 15, editada pela Portaria MTb n. 3.214 de 08 de junho de 1978.
Somente à título exemplificativo, se considerarmos o salário mínimo vigente de R$ 788,00 (janeiro/2015), o trabalhador que exerce atividade exposto a agentes físicos, químicos ou biológicos, sem a devida proteção, tem direito a um acréscimo salarial de R$ 78,80 (grau mínimo); R$ 157,60 (grau médio) e R$ 315,20. Esta é a compensação financeira concedida pelo empregador a seu empregado pela exposição a agentes nocivos.
IV. A monetização da saúde do trabalhador
Como se observa, ao criar o referido dispositivo legal, o legislador exerceu a árdua - por que não, impossível - tarefa de estimar o valor da saúde do trabalhador exposto aos agentes ambientais. Quando criado, certamente pensou o legislador que impondo ao empregador o pagamento de adicional de insalubridade, consequentemente o obrigaria a investir em melhorias nas condições ambientais de trabalho.
Todavia, com o passar do tempo, esta ideia se mostrou totalmente ultrapassada, haja vista que sendo ínfimos os valores pagos ao trabalhador à título de insalubridade, é muito mais vantajoso ao empregador custear o referido adicional ao invés de fazer gestão do meio ambiente de trabalho para neutralização ou eliminação do risco.
Corrobora com este entendimento, a reflexão de Paulo Rogério Albuquerque de Oliveira[3], de cuja obra destaco as seguintes passagens:
“[...] Vale a pena correr o risco de adoecer o trabalhador, contaminar o lençol freático, poluir o ar, depreciar aceleradamente seu maior patrimônio? A resposta é: depende do quanto se vai perder, pois o risco é enorme e isso pode até ser um estímulo, pois para quem tem perfil de investidor agressivo, maior o risco, maior o ganho! [...]”
“[...] No campo ambiental, a mensuração dessa perda passa igualmente pela decisão de comprar EPI ou implementar EPC; fazer gestão do meio ambiente do trabalho ou simplesmente cumprir norma trabalhista sem se importar com os resultados; [...] diminuir o número de mortes e acidentados ou manter os padrões de lucro; esconder, escamotear ou camuflar os dados sobre o meio ambiente do trabalho e agravos à saúde do trabalhador.”
“A experiência deste autor dá cabo à opção empresarial pelo ganho decorrente de assumir o risco de desequilibrar o meio ambiente do trabalho [...]”
Infelizmente, este é o cenário atual quando se trata de proteção ao trabalhador e meio ambiente do trabalho. Grande parte do empresariado não visualizou, até hoje, a importância de se fazer gestão dos riscos ambientais, bem como quais são os resultados positivos decorrentes desta prática.
Nesse sentido, contextualiza o ilustre professor Raimundo Simão de Melo[4]:
“[...] é mais barato pagar os adicionais do que adotar medidas preventivas, que num primeiro momento podem parecer caras, mas na verdade, no decorrer do tempo representam grande investimento empresarial, que levam à diminuição de custos com as responsabilidades pelos diversos danos causados aos trabalhadores. De outro lado, o pagamento dos adicionais salariais, pela ignorância dos trabalhadores em relação aos riscos à saúde, leva estes, muitas vezes a preferirem o pagamento, que é irrisório, mas, considerando que no caso de uma ação judicial recebem cinco anos atrasados e mais alguns, pelo tempo de demora do processo, no final das contas propiciam o pagamento de valores que nunca conseguiriam juntar de outra forma. Ou seja, de forma inconsciente os trabalhadores preferem vender a sua saúde por preço vil a lutar por melhores condições de trabalho.”
Este trecho da obra do festejado autor retrata a lamentável visão que se tem do adicional de insalubridade: o trabalhador prefere se expor ao risco e receber o pagamento do adicional. E esta é a questão central que se discute no presente artigo. Como se vê, de um lado, o empregador prefere correr o risco de desequilibrar o meio ambiente do trabalho e pagar o respectivo adicional e, de outro, o trabalhador, que exige e faz questão de receber o “acréscimo” salarial, achando que goza de “vantagem patrimonial”, inclusive perante os outros obreiros que não o recebem.
É cediço que o direito social é o direito das conquistas, fruto da luta de classes. As contradições ocorrem de tal forma na sociedade, que em determinado momento é necessário que ela se movimente e crie direitos. Exemplo disso, é que durante toda a história muito sangue foi derramado na luta da classe operária por melhores condições de trabalho e esta perspectiva é muito bem retratada em Germinal.
Todavia, chegamos ao ponto central do presente artigo, razão pela qual repiso o questionamento feito inicialmente: será que a ideologia que reveste o tão criticado pagamento do adicional de insalubridade, criado tempos depois da época vivenciada no filme, surtiria efeito se existisse na era retratada na obra cinematográfica? E acrescento: Será que a criação do referido instituto reflete um avanço no que diz respeito ao aumento dos direitos trabalhistas assegurados aos trabalhadores?
Conforme dito anteriormente, os trabalhadores da época trabalhavam sob péssimas condições em troca de salários irrisórios, o que comprometia, inclusive, a sua subsistência, chegando ao cúmulo de suas esposas a se submeterem a favores sexuais em troca de alimento.
Nesse enredo, imaginemos se a garantia à percepção do adicional de insalubridade existisse à época em que se passa o filme Germinal. Como é notório, em razão da nocividade que permeia as atividades exercidas na mineração, não há necessidade de se elaborar um estudo mais aprofundado para concluir que os trabalhadores que lá laboravam fariam jus à percepção do adicional.
Desse modo, tendo direito a perceber 10%, 20%, ou até mesmo 40% sobre o salário mínimo, acrescido a seu pagamento, certamente os trabalhadores optariam por recebê-lo.
Em contrapartida, façamos mais uma reflexão e imaginemos que os empregadores da época fossem zelosos e preocupados com as condições de trabalho de seus operários e adotassem todas as melhorias necessárias para a neutralização dos agentes nocivos no meio ambiente de trabalho. Por óbvio, adequado o meio ambiente de trabalho e eliminados os agentes nocivos ali presentes, os trabalhadores deixariam de receber o respectivo adicional. Trace um cenário da revolução que haveria, a partir do momento em que os trabalhadores sentissem o “decréscimo” em seu salário.
Em outras palavras, o que se coloca diante desta reflexão é que não haverá o momento em que o pagamento do adicional servirá como imposição para a melhoria das condições de trabalho. O trabalhador sempre irá optar por vender a sua saúde – mesmo que por valor ínfimo – e, em contrapartida, o empregador por comprá-la a prestações. Isso é fato.
V. Conclusão
Este cenário idealizador foi colocado, como peça fundamental para que se pudesse responder e concluir, doravante, que o adicional de insalubridade não representa nenhum avanço para a melhoria das condições de trabalho. Propositadamente, este comparativo entre épocas totalmente distintas foi realizado, para mostrar que valorar a saúde do trabalhador não é caminho para a melhoria do meio ambiente de trabalho e, consequentemente, da saúde do trabalhador.
A saúde do trabalhador, inserida na Constituição Federal como cláusula pétrea, e disposta entre os direitos e garantias individuais na qualidade de direito fundamental, deve ser objeto de proteção do Estado e da sociedade. Contudo, o que se verifica é uma total ineficiência do Estado e, consequentemente, um total desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. Importante salientar, que este princípio decorre diretamente do direito à vida – direito absoluto - o qual não pode ser valorado em nenhuma hipótese, razão pela qual a criação de adicionais de risco deve ser desprezada.
Enfim, para que se dê efetiva proteção à saúde do trabalhador, de maneira a garantir que este exerça suas atividades em ambiente cujos riscos inerentes ao trabalho estão neutralizados, garantindo a efetiva aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana, se conclui que o Estado deve executar as políticas públicas já criadas que versam sobre saúde do trabalhador, à exemplo do Plano Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho (PLANSAT), aumentando a fiscalização do trabalho e punindo os maus empregadores, somadas a quaisquer outras medidas eficazes, exceto a ideia ultrapassada e de estimar o quanto vale a vida e a saúde do trabalhador.
[1] Germinal é um romance do escritor Émile Zola (Paris, 2 de abril de 1840 — Paris, 29 de setembro de 1902).
[2] Motta, Katya Maia. Literatura e cinema: a adaptação do romance Germinal de Émile Zola. Disponível em <http://www.mackenzie.com.br/fileadmin/Pos_Graduacao/Doutorado/Letras/Cadernos/Volume_6/4-katya.pdf>. Acesso em: 07 de março de 2015.
[3] OLIVEIRA, Paulo Rogério Albuquerque de. Uma sistematização sobre a saúde do trabalhador: Do exótico ao esotérico. São Paulo: LTr, 2011.
[4] Melo, Raimundo Simão de. Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador: responsabilidades legais, dano material, dano moral, dano estético, indenização pela perda de uma chance, prescrição. 4 ed. São Paulo. LTr, 2010.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998.
BRASIL. Ministério do Trabalho. Portaria GM n.º 3.214, de 08 de junho de 1978. Normas Regulamentadoras de Segurança e Medicina do Trabalho.
Motta, Katya Maia. Literatura e cinema: a adaptação do romance Germinal de Émile Zola. Disponível em: <http://www.mackenzie.com.br/fileadmin/Pos_Graduacao/Doutorado/Letras/Cadernos/Volume_6/4-katya.pdf>. Acesso em: 07 de março de 2015.
Melo, Raimundo Simão de. Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador: responsabilidades legais, dano material, dano moral, dano estético, indenização pela perda de uma chance, prescrição. 4 ed. São Paulo. LTr, 2010.
OLIVEIRA, Paulo Rogério Albuquerque de. Uma sistematização sobre a saúde do trabalhador: Do exótico ao esotérico. São Paulo: LTr, 2011.
Ministério da Previdência Social. Plano Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho (PLANSAT). Disponível em: <http://www.mpas.gov.br/arquivos/office/1_121011-101326-948.pdf>. Acesso em: 07 de março de 2015.