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A importância de se investir na formação intelectual, cultural e profissional do Ministério Público.

Ou entre a vanguarda e o atraso

Agenda 01/02/2003 às 00:00

Tem-se observado no Ministério Público de vários Estados da Federação o recrudescer de manifestações que se posicionam firmemente contra a concessão de licença especial para freqüência de curso de doutoramento e de mestrado.

Enquete promovida pelo Sindicato dos Promotores e Procuradores de Justiça do Estado de Minas Gerais [1], junto à classe, ainda que por apertada margem e mesmo não tendo valor científico como método de pesquisa de opinião, por evidentes razões, também sinalizou no sentido da rejeição dessa prática.

A propósito, em recente voto proferido no Conselho Superior do Ministério Público, ínclito Conselheiro - após prestar testemunho acerca de frustrada experiência pessoal - valeu-se dos argumentos seguintes para justificar posicionamento contrário ao requerimento formulado por Promotor de Justiça, o qual pleiteava licença para freqüência do curso de mestrado no exterior, em brevíssimo resumo: 1) Os cursos de mestrado e de doutorado "não servem para aprofundar conhecimentos, servem apenas para formar docentes"; 2) que a titulação de mestre ou doutor, apenas "episódica e casualmente, trará à instituição algum benefício"; 3) que a instituição não deve "estimular" seus membros a frequentarem tais cursos e "tampouco deve suportar seus custos financeiros, por não haver neles interesse para o Ministério Público"; 4) "devem ser estabelecidos critérios objetivos que assegurem a restituição à instituição do capital empregado na formação do docente".

Em que pese o respeito à posição assumida pelos que se manifestam contrariamente à concessão de licença especial para os fins que aqui se discutem, dela divergimos por entendermos absolutamente equivocadas as premissas e os argumentos aos quais se aferram para a defesa dos seus pontos de vistas.

Vivemos hoje uma autêntica era da informação, onde, naturalmente, o permanente acúmulo de conhecimento, de criação e de capacitação, em qualquer dos seus níveis, constituem o principal ativo dessa sociedade pós-moderna e das demais organizações que a integram, podendo significar a diferença entre o êxito e o insucesso.

Aliás, não é sem razão o vaticínio do filósofo alemão Ulrich Beck quando nos alerta para aos perigos do provincianismo, do isolamento e do distanciamento dos canais de produção do conhecimento científico e de informação: "a soberania de informação do Estado nacional, como parte de sua soberania política, já não existe mais. Os Estado nacionais já não podem mais viver trancafiados; suas fronteiras protegidas por armamentos estão esburacadas. No que se refere à sua ligação com o espaço de comunicação global, há uma novidade: globalização informativa" [2].

Os arroubos dos que insistem em desconhecer as armadilhas de uma realidade latente e desafiadora, permanecendo atados a concepções paroquianas, de certo modo, são até compreensíveis posto que o avanço de uns pode significar a estagnação de outros. Para além disso, é possível crer que a má informação, a inexata ou mesmo equivocada compreensão do atual contexto jurídico, institucional, social, econômico e político que estão transformando as sociedades globalizadas possam levar a tais estrabismos de percepção. Segundo as valiosas considerações de Marcelo Leite, "é preciso formar mais pensadores, pesquisadores, engenheiros, não só estimulando a oferta (de vagas), mas sobretudo despertando vocações científicas. Inclusive nas ciências humanas, de onde flui o pensamento crítico que tanta falta faz nesta era de cientificismo galopante" [3].

Antes de ingressarmos no ponto central da nossa argumentação, devemos considerar também que as figadais críticas à possibilidade da licença para aquelas finalidades surgem repentinamente, como se o instituto fosse uma grande novidade ou ainda como se se tratasse de uma heresia ou mesmo de uma autêntica ilegalidade, quando sabemos que provém o instituto de datas imemoriais e que encontra-se previsto e devidamente regulamentado nas normas externas e internas [4] que regem o Parquet, estabelecendo-se inclusive a perda do tempo de serviço correspondente ao período do afastamento em caso de aproveitamento não comprovado, bem como o ressarcimento dos valores percebidos durante a licença em caso de exoneração do beneficiário [5].

Os novos movimentos doutrinários e os modernos princípios que vêm sendo insculpidos, tanto no âmbito do Direito Constitucional quanto na seara do Direito Administrativo, buscam oferecer contornos de vanguarda à Administração Pública, de modo ajustá-la aos novos tempos de globalização e de plena eficiência, instrumentando-a com inovadoras e criativas técnicas de gestão que possibilitarão, conseqüentemente, seja ela resgatada do secular atraso onde se encontra estacionária, principalmente em países como o nosso, tidos eufemisticamente na conta de "emergentes".

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Aliás, neste domínio, não são poucos os desafios a serem enfrentados já que o campo de influência dos movimentos globalizantes não está restrito apenas à ordem econômica. Contrariamente, tem fortíssima interferência também no funcionamento das instituições, sejam elas públicas ou privadas. Portanto, a modernização e a profissionalização da Administração Pública passam a ter um valor estratégico cuja observação se impõe tanto ao Estado quanto aos agentes da Administração.

Por óbvio - principalmente pelo fato de estar na cuidadosa condição de um dos principais vetores da Administração Pública - o Ministério Público passou a ser alvo de intensas pressões por parte da sociedade civil e de organismos sociais os quais, de forma impaciente e plenamente justificada, cobram-lhe maior eficiência, celeridade, efetividade e, principalmente, melhores resultados.

Parece-nos insuficiente e inapropriado ao Parquet dos nossos dias o cômodo posicionamento que busca garantir-lhe atuação meramente burocrática, unidimensional, tecnicista e despolitizada, voltada exclusivamente para funções cujo caráter é de tom eminentemente jurídico. Contrariamente, suas novas feições - que o alçaram com notoriedade à condição de defensor do "regime democrático" e dos "interesses indisponíveis da sociedade" - reforçam a natureza política da instituição, emprestando-lhe forte conteúdo social.

Tais fatos exigem do Ministério Público intenso comprometimento também no campo da sociopolítica, afastando-o da aridez proporcionada pelo tecnicismo exacerbado, de duvidosa eficácia. Conseqüentemente, a tradicional formação profissional dos integrantes do Ministério Público, que vigia num passado recente e era toda fundamentada numa cultura tecno-legal, absurdamente reducionista, não tem mais sentido nos dias que se vão [6].

Com efeito, a formação profissional dos integrantes desse novel Ministério Público há que ser diferenciada, diversificada, altamente difusa. A nova ordem em vigor exige desse neo profissional do Ministério Público preparo e conhecimento abrangentes que vão alcançar as mais diversas áreas, passando, necessariamente, pelo domínio de questões jurídicas, políticas, biológicas, sociais, ecológicas, antropológicas, cibernéticas, econômicas, de genética, educacionais, dentre tantas outras.

Por isso, é preciso ultrapassar a clássica visão segundo a qual o Direito e a Justiça limitam-se a compor um sistema autopoiético, onde a tônica principal é dominada pela clausura operativa que se opõe, ferreamente, à abertura cognitiva e à conexão com outros sistemas sociais [7].

Não bastasse a necessidade de aprimoramento determinada pelos "novos tempos", nota-se que a preocupação com o constante aperfeiçoamento profissional e intelectual dos membros do Ministério Público vem de longa data sendo reiterada nos diversos diplomas legais que regulamentam a instituição.

Com renovado efeito e escusando-me, por desnecessária, de uma visita mais detida ao passado, encontramos já na Lei Complementar n° 040/81 – verdadeiro marco da instituição – expressa referência à preocupação com o aperfeiçoamento cultural e profissional dos seus membros, prevendo-se a possibilidade de concessão de licença especial para freqüência a cursos de aperfeiçoamento e de estudos, no país ou no exterior [8]. Essa disposição foi repetida, com maior ênfase ainda, na legislação que se seguiu [9]. Outro exemplo inequívoco dessa preocupação relaciona-se à criação dos Centros de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional, erigidos à condição de "órgãos auxiliares", conforme dispõe o artigo 8°, III, da LONMP.

Portanto, enganam-se os que acreditam, de modo bizarro até, que o acúmulo de conhecimento por parte dos seus membros não pode trazer benefícios à instituição, sob o frágil argumento de que as vantagens permaneceriam restritas à utilidade e ao interesse pessoal e particular daquele que se dispôs enfrentar os rígidos critérios e exigências dos cursos de pós-graduação.

Maior equívoco, porém, é o de se supor que os cursos de mestrado ou doutorado não servem para "aprofundar conhecimentos" em determinadas áreas e que só se justificam pela exigência legal dessa titulação para aqueles que querem dedicar-se a cátedra. Ledo e retumbante laxismo que tem como principal feito confinar o Ministério Público aos limites da sua própria existência. Aqui há que se invocar, apenas por argumento, a fábula da águia que alguém pretendera transformar em galinha, apesar de toda sua potencialidade e do seu natural instinto de águia, conforme a narrativa de Boff em sua clássica obra [10].

Primeiramente é de se crer que a titulação de mestre ou de doutor não pode ser tida como monopólio daqueles que se dedicam ao magistério. Aliás, há excelentes profissionais nas suas respectivas áreas de atuação que não obstante ostentarem o título de mestre ou doutor, estão longe da cátedra por não terem nenhum talento, vontade ou paciência para exercê-la. Para além dessa frívola constatação, é possível afirmar que o saber é único e não pode ser dividido, compartimentado em porções estanques como se o conhecimento adquirido num curso stricto sensu (mestrado ou doutorado) fosse concebido e destinado a um uso específico ou ainda que possa servir como forma de se anular os conhecimentos extraídos de um curso lato sensu (especialização).

Beira mesmo as raias do absurdo e da insensatez a suposição de que o conhecimento haurido no curso de mestrado ou de doutorado tenha validade e utilidade apenas e tão somente para o exercício do magistério. A maior prova desse engano pode ser encontrada nos regulamentos de ingresso à carreira do Ministério Público e da Magistratura, onde referidos títulos são efetivamente considerados e valorados para fins de classificação. Aliás, a própria Constituição Federal assegura que os cargos e serviços auxiliares do Ministério Público serão providos "por concurso público de provas ou de provas e títulos" [11], clara indicação da sua importância e do interesse da Administração em selecionar os mais capacitados, com maior bagagem de conhecimento, ainda que representada presumidamente através da titulação do candidato.

Não se pode desconsiderar também a importância que a pesquisa científica e a cátedra têm para os interesses do Ministério Público. Com razão, pois tanto uma quanto a outra possibilitam ao membro do Parquet, através da produção científica e do exercício do magistério, influenciar o pensamento jurídico dos operadores do Direito e do Poder Legislativo, fazendo prevalecer as posições defendidas pela instituição. Sem dizer ainda na legião de promissores jovens universitários que, não raro, se sentem atraídos pelo Ministério Público propagado pelos mestres, que sabem como fazer neles despertar possíveis vocações.

Também parece-nos niilista a alegação de que tais licenças especiais representariam para o erário gastos insuportáveis e não justificáveis. Além de legal - porque previsto nos estatutos - trata-se de mais um ônus, perfeitamente justificável, que decorre da necessidade que o Estado tem de garantir a melhor forma de cumprir suas atribuições, proporcionando serviço profissional, eficiente e de qualidade à sua população.

Portanto, tais gastos devem ser tranqüilamente considerados nos mesmos moldes do que ocorre quando órgão público decide patrocinar congressos, seminários, cursos de especialização ou de aperfeiçoamento em determinados setores da atividade pública ou mesmo quando resolve adquirir obras jurídicas para distribuir entre seus membros, ou ainda investir na compra veículos de representação, etc.

Com o perdão pela força da retórica, é preciso, pois, recusar determinadas posições que sob a falsa capa de vanguarda, podem estar simbolizando o mais autêntico atraso.


Notas

01. SINDI-MP– Endereço eletrônico: www.sindimp.com.br

02. Aut. cit. in O que é globalização? Equívocos do globalismo – respostas à globalização. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1999, p. 41.

03. In Caderno Mais, Folha de São Paulo, 17.11.2002.

04. A Resolução n° 90/2001, do CSMP, publicada no "Minas Gerais" de 04.10.2001, regulamenta a licença especial prevista no artigo 137, inciso II, da Lei Complementar n° 034/94.

05. Cfr. Art. 137, II, §§ 4° e 5°, da Lei Complementar Estadual n° 034/94.

06. Conforme a advertência de Antônio Alberto Machado, "(...) no plano legislativo e político, foi possível observar então uma certa tensão entre o novo perfil do Ministério Público e a formação acadêmica predominantemente tecnicista dos integrantes dessa instituição. Formação esta que confere a estes últimos uma cultura jurídica extremamente formalista, despolitizada e rigorosamente apegada a ritos e procedimentos técnico-processuais. Essa tensão nasce exatamente como fruto do confronto entre a cultura jurídica essencialmente tecnológica e despolitizada de seus membros, proporcionada pelo ensino jurídico eminentemente dogmático, e a nova configuração ontológica do Ministério Público, forjada no campo sociopolítico de sua atuação, para além, portanto, das estruturas meramente jurídico-positivas que sempre balizaram a atuação tradicional do ‘fiscal da lei’ ou ‘custos legis’, in Ministério Público: democracia e ensino jurídico. Belo Horizonte: Livraria Del Rey Editora Ltda., 2000, p. 19.

07. Niklas Luhmann, in Introducción a la teoría de sistemas. México: Anthropos Editorial Del Hombre, 1996, p. 87.

08. Artigo 42.

09. Artigo 53, III, LONMP, Art. 204, I, Lei Complementar Federal n° 075/93.

10. Leonardo Boff, in A águia e a galinha. São Paulo: Editora Vozes, 2000.

11. Art. 127, § 2°.

Sobre o autor
Paulo Márcio da Silva

promotor de Justiça em Minas Gerais, professor universitário, mestre e doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Paulo Márcio. A importância de se investir na formação intelectual, cultural e profissional do Ministério Público.: Ou entre a vanguarda e o atraso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3701. Acesso em: 22 dez. 2024.

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