A previsão constitucional dos crimes hediondos é corolário de uma necessidade de dar tratamento mais severo à prática de determinadas condutas criminosas, que pela sua hediondez (daí o nome) causam uma maior lesão aos interesses sociais. (hediondo: adj. Depravado; imundo; nojento; feio. Silveira Bueno; Minidicionário da Língua Portuguesa) [1].
O assento constitucional da matéria se dá no art. 5, inc. XLIII da C.F., ipsis litteris:
A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que podendo evitá-los se omitirem. (grifo nosso).
Se interpretarmos com cuidado o dispositivo acima, veremos que o legislador constituinte originário estabeleceu um dever jurídico geral, "erga omnes", a todos os cidadãos, de impedirem a prática de crimes hediondos e assemelhados. E o fez com extrema clareza. Vejamos: "A lei considerará crimes inafiançáveis (...) os definidos como hediondos (...) por eles respondendo (...) os que podendo evitá-los se omitirem."
Ora, ao assim dispor, quis dizer nosso constituinte, em curtas palavras, que, quando da ocorrência de um crime hediondo ou assemelhado, qualquer pessoa, que esteja presente à situação ou dela tenha conhecimento, deverá responder por esse delito, desde que, podendo evitá-lo, não o faça. E isso independe de qualquer vínculo subjetivo com os demais autores do crime.
Criou ele, como anteriormente dito, o dever de agir "erga omnes", praticando, todo aquele que não evita o delito, crime omissivo impróprio ou comissivo por omissão, inserindo-se, pois, na realização típica do crime, em concurso com os demais, através da figura de ampliação típica do art. 5º, XLIII, C.F., que quanto a estas infrações amplia o disposto no art. 13, §2, C.P.. Analisemos:
O C.P. em sua parte geral, visando regular a matéria da relevância da omissão, as hipóteses em que deve-se puni-la, estatuiu em seu 13° artigo:
Art. 13, caput: "O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa, considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.
§2 A omissão é penalmente relevante (leia-se ‘pune-se a omissão’) [2] quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:
a) Tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância.
b)De outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado.
c)Com o seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.
Este é, pois, o regramento geral da matéria, daí sua inserção na Parte Geral do Código Penal. Logo, salvo disposição especial em contrário, só responde por qualquer crime o indivíduo que o cometeu (autor ou partícipe), e aquele que, podendo e devendo impedir a sua prática, não o faz. Não se pune o fenômeno da cumplicidade, que é quando o agente sabe do crime, às vezes até pode evitá-lo, mas não tem nenhum dever jurídico de fazê-lo. Não é policial ou garante. Tudo conforme a mais abalizada doutrina Penal. Diríamos até ser ponto pacífico o assunto.
Entretanto o constituinte, quando regula a matéria dos crimes hediondos e assemelhados, no já citado dispositivo, tendo em vista as particularidades destes, e a necessidade de se reprimir veementemente as suas práticas, altera a disciplina penal da relevância da omissão, ampliando-a. Estabelece o dever jurídico de agir a todos os cidadãos, desde que, segundo a situação fática tenham meios de impedir o resultado. Faz despencar sobre os ombros de todos os indivíduos a obrigação de contribuir para que não ocorram tais crimes que tanto lesam os interesses sociais. Vejamos na prática alguns exemplos:
‘A’ inicia prática de um homicídio qualificado contra ‘B’, tudo conforme detalhado planejamento daquele. ‘C’, aleatoriamente, toma conhecimento do plano de ‘A’ (p. ex. lê seus escritos mirabolantes), e sabe que se avisar à polícia pode evitar o resultado. Se então ‘C’ não toma as providências para evitar o resultado, incide nas mesmas penas do crime, tendo em vista o disposto no art. 5º, XLIII, C.F., in fine.
‘A’ mantém ‘B’ encarcerado em uma casa de sua propriedade para a prática de extorsão mediante seqüestro. ‘C’, co-proprietário da residência, resolve visitá-la. Chegando lá descobre a situação acima, deparando-se com a vítima. Suponhamos que ‘A’ não estivesse lá naquele momento. Se então ‘C’ não liberta a vítima apenas abandonando o local do crime deve responder pelo delito.
Essa a interpretação que nos exsurge do artigo 5º, inciso XLIII, C.F. 88, e que, por falta de argumentos a desautorizá-la, nos parece correta. Conseguimos visualizar a presença de todos os elementos intrínsecos do crime (ou requisitos, como alerta o mestre Damásio Evangelista de Jesus) [3], necessários à imputação de uma prática criminosa a qualquer cidadão. Senão vejamos:
FATO TÍPICO:
1º Conduta [4]:
Há,a comum dos crimes omissivos impróprios. Segundo a melhor doutrina é o ato de não fazer uma ação devida configura dora da conduta. Com o mesmo valor jurídico de um fazer.
2º Nexo de Causalidade:
Há, mas entre o resultado e a conduta que o agente estava juridicamente obrigado a realizar. Responde, não por Ter causado o resultado,mas por não tê-lo impedido.
3º Resultado:
Ocorre normalmente com a consumação do crime, com as ressalvas entre o crime ser material, formal ou de mera conduta.
4 º Tipicidade:
Há, pois o indivíduo incide nas capitulações próprias dos crimes hediondos pela figura de ampliação típica do art. 5º, XLIII, CF que nestes casos derrogou a limitação do art. 13, §2º, do C.P..
ANTIJURIDICIDADE: [5]
Nos crimes omissivos impróprios, a ilicitude configura-se pela violação ao dever de agir imposto pela lei, com a finalidade de evitar ou tentar evitar o evento típico.
CULPABILIDADE: [6]
Como pressuposto da pena. Nada se altera
A reprovabilidade pessoal da conduta, pressuposto da pena, mantém-se nos requisitos comuns da imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.
Isso posto, afigura-nos clara e precisa tecnicamente a prática de um crime. Sua estrutura se vê completa.
Qualquer alegação de imputabilidade objetiva não merece guarida, desmorona-se, quando se vê como necessário para conjugar o tipo penal a presença do elemento subjetivo dolo a integrar a conduta do agente, mesmo que omissiva. O dolo apresenta-se na vontade livre e consciente do indivíduo não praticar uma conduta exigida pelo ordenamento jurídico, sabendo poder praticá-la, também sabendo ou assumindo o risco de que assim agindo está a deixar de impedir a prática de um crime, com consciência do elo causal, no caso hediondo ou assemelhado [7].
Esse elemento subjetivo faz tornar sem sentido, para nós, qualquer alegação de que a tese, ora levantada, poderia fazer com que qualquer um por motivos banais poderia ser acusado de não haver feito algo para evitar um certo resultado criminoso. Assim achamos não sustentável a tese daquele clássico exemplo em que, partindo da nossa sustentação, castigar-se-ia o pai do homicida por não ter imprimido a educação necessária ao filho, incucando-lhe o respeito à vida humana [8].
Anote-se que o guerreado dispositivo constitucional, art. 5º XLIII, C.F., constou esculpido no texto fundamental com claro objetivo: Prever constitucionalmente a existência dos crimes hediondos, seus assemelhados e prever tratamento penal diferenciado a eles, dada a sua relevância, em certos aspectos penais, Quais sejam: A inafiançabilidade, a insuscetibilidade de graça ou anistia e permissia vênia a responsabilidade penal de terceiros pela sua prática, desde que, podendo evitá-los, omissivamente não o façam. Fica criado assim, pelo próprio texto constitucional, o dever jurídico de agir a todos. Essa a interpretação literal e teleológica.
Ressalto! Sendo a finalidade deste dispositivo estabelecer regras especiais para o tratamento dos crimes hediondos e assemelhados, como uma espécie de ‘legislação especial’, deve-se segui-las. E entre as novas regras ressalta o dever jurídico estendido a todos de evitar a prática dos crimes suso designados, desde que se possa fazê-lo.
A criação desse dever de agir, por vias constitucionais, a nosso ver não ofende o princípio da legalidade e o da reserva legal, tudo pela supremacia constitucional, já que "quem pode mais pode menos" [9].
A lei não possui palavras descipiendas, sem sentido, diz a hermenêutica. Negar a tese que aqui se levanta seria fulminar de iniqüidade, negar qualquer relevância, sentido à parte final do inciso XLIII do art. 5º da nossa Carta Política. Veja-se: "A lei considerará crimes inafiançáveis (...) e os definidos como hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que podendo evitá-los se omitirem."
Qual a finalidade do dispositivo acima sublinhado se não for a de ampliar o rol das omissões penalmente relevantes referentemente aos crimes hediondos? Valeria dizer que o constituinte foi supérfluo, dispensável? A válvula de escape não nos parece apropriada.
Vinga na doutrina [10] o posicionamento de que o constituinte ao dispor "por eles respondendo os mandantes, os executores..." teria sido supérfluo, repetindo norma já estampada no art. 29 do Codex Penal. Pensamento que poderia levar a se cogitar que por consectário lógico a disposição "podendo evitá-los se omitirem" (criando a responsabilidade sustentada) também seria supérflua, mera redundância do art. 13, §2º, do C.P., porém com a ‘imperfeição’ de esquecer o requisito ‘devendo’. Refutamos!
Partindo-se do nosso entendimento estaria justificada a inserção literal da responsabilidade dos mandantes e executores no texto constitucional, pois, querendo a constituição prever que responderão pelos crimes hediondos e assemelhados todos que podendo evitá-los não o façam, criando assim o dever de evitá-los, necessário era grafar nitidamente que os executores e mandantes também respondem pelo delito, até para não se dar falsa idéia que só omissivamente se praticariam esses crimes, tese, que apesar de absurda, poderia ser sustentada. Vejamos:
"A lei considerará crimes inafiançáveis (...) e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os que podendo evitá-los se omitirem".
Só responderia quem podendo evitá-lo se omitisse? e os executores e mandantes? A lei quis ser clara, quis dispensar o uso de uma interpretação extensiva e para isso fez constar no inc. XLIII, art. 5º, C.F., que também os mandantes e executores responderão.
Logo, nem a previsão da responsabilidade dos mandantes e executores é supérflua. É ela norma de explicação, que visa a criar o ‘contexto’ necessário à inserção de uma nova teoria sobre a relevância da omissão nos crimes hediondos, sem gerar perplexidade.
Com isso, entendemos querer o constituinte, segundo a tese aqui esposada, distorcer algumas realidades constatáveis em casos concretos, em que pessoas, às vezes com todas as condições de impedir a prática de um crime, quedam-se inertes, demonstrando desapego, menosprezo a bens jurídicos tão relevantes. Tal conduta muitas vezes é merecedora de adequada reprimenda penal. Basta citar como exemplo a situação do tráfico de entorpecentes, em que grande número de pessoas cala-se sobre a sua prática, contribuindo sobre-maneira para o avanço dessa praga social (nesse sentido lembra-se como característico o exemplo daqueles vendedores de doces em portas de escolas que, conhecendo traficantes que ali transitam, aliciadores de menores, na maior parte das vezes não os delata a polícia). Para nós a conduta é típica. A análise sobre a culpabilidade ficaria dependente, no caso concreto, da exigibilidade de uma conduta diversa.
As conseqüências jurídicas da adoção deste posicionamento são, por óbvio, grandes. Estar-se-ia outorgando ao Estado, ao seu anseio punitivo, um poder indesejável, diriam os estudiosos da ciência penal? Estar-se-ia na contra-mão da política criminal, aumentando responsabilidades e por conseqüência punibilidade em tempos de descriminalização?
Creio que não nos cabe tais divagações, mormente quando o assunto é dar aplicabilidade a preceito constitucional emanador da vontade coletiva, legitimamente representada em Assembléia Nacional Constituinte.
Assim preleciona J.J. Gomes Canotilho [11]:
A soberania popular – o povo, a vontade do povo e a formação da vontade política do povo – existe, é eficaz e vinculativa no âmbito de uma ordem constitucional materialmente informada pelos princípios da liberdade política, da igualdade dos cidadãos, de organização plural de interesses politicamente relevantes, e procedimentalmente dotada de instrumentos vinculativos de um processo político livre.
A Carta Magna é sintomática, suprema e deve ser respeitada!
Questão complexa refere-se à aplicabilidade do preceito sob exame. Entendemos que o inciso XLIII, do art. 5º, C.F., in fine, enquadra-se entre as normas de eficácia plena, segundo a tradicional classificação de José Afonso da Silva [12], pois exaure-se em si mesmo. Portanto independe de regulamentação legislativa. Assim também diz a boa técnica, já que o dispositivo, no seu final, não remete a aplicação "aos termos da lei". Entretanto, talvez por prudência, seria interessante a regulamentação infraconstitucional da norma, pormenorizando o assunto, normatizando seus diversos desdobramentos. Talvez até dando uma maior discricionariedade aos magistrados para diminuir significativamente a aplicação da pena em certas situações. Quiçá também estabelecendo diferente preceito secundário para essa classe de infratores (cúmplices) cominando penas não privativas de liberdade, tudo com o escopo de se evitar decisões injustas a contrariar o rol de princípios modernos em voga no Direito Penal. A reprimenda que alcança essa modalidade de participação em crimes não pode equivaler a dos autores direitos, sob pena de até ferir os princípios da proporcionalidade e da individualização da pena.
Não se preocupou nesta abordagem em discutir o acerto ou erro do constituinte, a boa ou má inovação, mas tão só levantar o que a nossos olhos parece criado por aquela previsão constitucional. Se tal posicionamento não alcançar os ‘favores’ da doutrina e jurisprudência, ao menos entendemos que juridicamente sustentável, discutível, há de ser considerado.
Essa é nossa visão sobre esse assunto que remanescia camuflado no texto constitucional, mas que por suas conseqüências precisa ser bem, diga-se, muito bem explorado.
A ousadia de levantar tal discussão vem da constante inquietação que nos toma de não vermos posição peremptória quanto ao assunto em tela, isso com várias e várias consultas a experts no assunto. Apesar da relutância pessoal chegamos à conclusão de que mais valeria o risco de ser censurado por mestres no assunto do que remanescer indefinidamente com tal dúvida no espírito.
À análise dos doutos.
Notas
01. BUENO, Silveira. Minidicionário da língua portuguesa. São Paulo: FTD, 1996. P 337
02. JESUS, Damásio Evangelista. Direito Penal Parte Geral. São Paulo: Editora Saraiva. 1999. P 154.
03. Observação nossa
04. MIRABETE, Julio Fabrinni. Manual de Direito Penal Parte Geral. São Paulo: Editora Atlas. 1988. P. 106
05. BIERRENBACH, Sheila. Crimes Omissivos Impróprios. Uma análise à luz do Código Penal Brasileiro.Belo Horizonte: Del Rey, 2001, 2ª edição. P.133.
06. Como orienta, a hoje preponderante, teoria finalista da ação.
07. ZAFARONI, Eugênio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. São PauloEd. Revista do Tribunais. 2001, 3ª edição. P.543/545.
08. Assim discordamos da argumentação de Enrique Cury em Enrique Cury – Urzúa. Orientación para el studio de la teoria del delito. Ciência Penal, São Paulo: Comércio p.297-298, 1973.
09. Ao que nos parece o Ministro Cernicchiaro é contra, em: CERNICCHIARO, Luís Vicente. Direito Penal na Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, 3ªedição. P.196-197.
10- FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. São Paulo: Revista dos Tribunais.2000, 4ª edição. P 75/77.
11- CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra. Livraria Almeidina. 1991. 5ª edição. P.423.
12. SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1982. P. 89/91.