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Cláusulas pétreas e direito adquirido

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Agenda 01/10/2000 às 00:00

          1. Problema polêmico e atual

Quatro de junho de 1998. Data em que foi publicada a Emenda Constitucional nº19 (EC 19/98). Era a reforma administrativa. Nela constava um art.29, prescrevendo que os subsídios, vencimentos, remuneração, proventos da aposentadoria, e quaisquer outras espécies remuneratórias, deveriam sujeitar-se a limites, porque a partir daquela data seria inadmissível a percepção de excesso a qualquer título.

Seis meses depois, precisamente no dia 15, do mês doze, o Diário Oficial veiculava a Emenda Constitucional nº 20 (EC 20/98). Chamaram-na de ´reforma da Previdência Social´. Ela parecia desconhecer os princípios básicos da poupança, solidariedade e segurança. Produziu no texto original da ´Carta de outubro´ mais de cem alterações e acréscimos, abrindo flancos para a cobrança de novas e elevadas contribuições. Deu ao legislador ordinário o poder de introduzir exigências que podem dificultar a obtenção de benefícios previdenciários. Se não bastasse, consagrou dispositivos obscuros, atécnicos, avessos à gramática, verbi gratia, o ponto e vírgula, separando os incs. I e II, do § 7º, do art.201.

Mas o que teriam em comum essas duas emendas à Constituição?

Seguramente, o que mais as identifica é o fato de terem ensejado modificações constitucionais que colocaram em risco direitos incorporados, em definitivo, ao patrimônio individual dos sujeitos, e, em tese, insuscetíveis de mudança formal.

Estamos diante do binômio cláusulas pétreas versus direito adquirido, fontes de discussões intermináveis.

Trata-se de matéria polêmica e atual.

Polêmica, porque, como veremos adiante, aquele entendimento do Supremo Tribunal Federal de que inexiste direito adquirido a regime jurídico de instituto de direito, tem sido incompreendido e deturpado nesse primeiro decênio de Constituição.

Atual, pois um tema antes adstrito ao âmbito meramente acadêmico, projetou-se em dimensões enormes, pelo simples fato de que repercutiu, quase unanimemente, na vida econômica da população.


          2. Limites de indagação

A essa altura resta-nos indagar:

1º) como funciona, na prática, a garantia do direito adquirido;

2º) como as cláusulas pétreas protegem aquelas conquistas incorporadas, em definitivo, ao patrimônio individual dos sujeitos;

3º) no caso das reformas administrativa e previdenciária, qual a posição que se exige do intérprete para que fiquem resguardados os direitos humanos fundamentais, dos quais os direitos adquiridos são espécies.


          3. Como funciona a garantia dos direitos adquiridos

3.1 Previsão em nossas constituições

Desde a Constituição de 1934, que os direitos adquiridos vêm assegurados à nível constitucional.

Omitidos na Carta de 1937, restaurados na de 1946, eles perduram até hoje.

Daí o constituinte de 1988 ter enunciado que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".

Optou, claramente, pela doutrina subjetivista da escola italiana, preconizada por Gabba, do mesmo modo que a Lei de Introdução ao Código Civil de 1942 (art.6º, § 2º).

3.2 Compreensão do instituto

Diz-se direito adquirido aquele que já se integrou ao patrimônio e à personalidade de seu titular, de modo que nem norma, nem fato posterior possam alterar situação jurídica já consolidada sob sua égide.

Trata-se de "todo direito que é conseqüência de um fato idôneo para gerá-lo em razão de norma vigorante antes da entrada em vigor de uma nova norma relativa ao mesmo assunto e que, nos termos do novo preceito sob o império do qual o fato aconteceu, tenha ele (o direito originado do fato acontecido) entrado, imediatamente, a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu".

3.3 Direito adquirido e estabilidade constitucional

Por outro lado, o instituto em estudo funciona como elemento estabilizador para proteger direitos sedimentados na vida diária dos homens e dos povos, almejando o ideário da segurança jurídica.

A questão central é saber como fica o inc.XXXVI, do art.5º, diante do princípio implícito da segurança jurídica, e quais as possibilidades de sua efetividade, ou seja:

1º) de sua eficácia social ou realização concreta;

2º) de sua estabilidade ou eficácia ex post das decisões jurisdicionais já consolidadas;

3º) de sua previsibilidade ou eficácia ex ante, decorrente da certeza, por parte dos homens, dos resultados que os atos jurídicos-normativos podem produzir em relação ao seu câmbio de expectativas.

Daí a segurança jurídica pressumir a positividade do direito.

Ela - a segurança - se qualifica como jurídica, precisamente porque é fruto de uma regulamentação legislativa, de uma tipificação normativa (tatbestand).

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Nesse sentido, a segurança jurídica depende de um conjunto de normas aptas a garantir aquilo que se denomina câmbio de expectativas, ou seja, o complexo de condições que visam a proteger o cidadão do arbítrio, gerando uma atmosfera de certeza nas relações.

Essa certeza é a base da segurança, encontrando na igualdade de condições a sua ratio essendi, porque o cidadão, através de sua observância, poderá saber as conseqüências de suas próprias ações, tendo em vista os efeitos que a ordem jurídica atribui ao seu comportamento.

3.4 Funcionamento prático da garantia

Disso exsurge o funcionamento prático da garantia dos direitos adquiridos.

Incide quando é deflagrado o processo de criação de novas leis ou da reforma daquelas já existentes, servindo para resguardar benefícios oriundos de situações jurídicas vantajosas para o sujeito, as quais foram consolidadas antes da entrada em vigor de novas disposições legais.

Sendo assim, é possível conceber o direito adquirido como aquele que já se integrou, em definitivo, ao patrimônio do seu titular, sem que lei nova possa alcançá-lo, porque seu papel é manter, no tempo e no espaço, os efeitos jurídicos de preceitos que sofreram mudanças ou supressões.

No plano concreto de produção dos efeitos das normas jurídicas, conseqüências processuais decorrem da garantia constitucional do direito adquirido.

O Supremo Tribunal Federal, tendo em vista a face instrumental da garantia em análise, firmou a impossibilidade de a lei nova ser impugnada, na via abstrata de controle de constitucionalidade, sob o argumento de estar violando direito adquirido, quando, na realidade, não esteja incidindo sobre situações passadas.

Reitere-se que inexiste direito adquirido contra a Constituição, assertiva majoritária na doutrina e, também, na jurisprudência do Egrégio Supremo Tribunal Federal.

Realmente, nem mesmo o direito pode molestar o passado das pessoas.

O que ele pode é prover para o presente e o futuro delas, jamais violando o que já se constituiu sob o amparo da ordem jurídica.

Por isso, não há direito adquirido contra a constituição, mas direito adquirido com a constituição e em razão dela.

Nos "sistemas de Direito Escrito, Legislado e Codificado, torna-se juridicamente impossível a interpretação contra legem, porque, se ocorrente, produziria uma violação dos princípios fundamentais da certeza e segurança da ordem jurídica, que têm na lei a sua fonte de maior expressão e hierarquia, só devendo obediência à constituição".

3.5 Direito adquirido e regime jurídico de instituto de direito

É necessário que se esclareça a posição do Supremo Tribunal Federal quando, em diversas assentadas, assinalou que não há direito adquirido a regime jurídico de instituto ou instituição de direito.

Não se trata de decisão política, como se poderia pensar a um primeiro momento, nem, tampouco, de retaliação à garantia constitucional do direito adquirido (art.5º, XXXVI) ou desrespeito a instituto insuprimível (art.60, § 4º, IV).

O que subjaz a esse raciocínio é a nítida diferença entre direito adquirido, direito consumado, expectativa de direito e simples faculdade legal.

Direito adquirido é a conseqüência de fato aquisitivo realizado por inteiro.

Direito consumado é aquele que já produziu todos seus efeitos concretos.

Expectativa de direito é a simples esperança, resultante do fato aquisitivo incompleto.

Meras faculdades legais são poderes concedidos aos indivíduos, dos quais eles não fazem nenhum uso.

Ora, ao se dizer que inexiste direito adquirido a regime jurídico de instituto de direito não se está indo de encontro à garantia estampada no art.5º, inc. XXXVI, da Constituição. Isto porque fatos realizados por inteiro, simples esperanças ou meras possibilidades legais não se enquadram no citado inc.XXXVI.

Logo, se a lei nova mudar regime jurídico de instituto de direito, alicerçado num direito consumado, numa expectativa de direito ou numa simples faculdade legal, esta alteração se aplicará imediatamente. Não há direito adquirido nesses casos.

Parece-nos, outrossim, que a decisão do Pretório Excelso não se dirigiu àquelas situações realmente integradas, em definitivo, ao patrimônio dos sujeitos, ou então, se implantaria o caos, a instabilidade, a insegurança. O Supremo Tribunal Federal deixaria de ser o guardião da Constituição e as liberdades públicas não passariam de meras figuras de retórica.


          4. O que são cláusulas pétreas e como elas tutelam direitos adquiridos

Convém entender o que são cláusulas pétreas e como elas protegem direitos adquiridos.

Decerto que as palavras têm vida.

Como signos lingüísticos, constituem verdadeiros pedaços de vida encartadas em folhas de papel.

Por isso, cumpre-nos investigar o sentido dos vócabulos, porque eles, se empregados indevidamente, constituem as fontes dos mal entendidos.

O adjetivo pétrea vem de pedra, significando "duro como pedra".

Trasladando a etimologia da palavra para o campo constitucional, cláusula pétrea é aquela imodificável, irreformável, insuscetível de mudança formal.

Tais cláusulas consignam o núcleo irreformável da Constituição.

Preferimos denominá-las, sem exclusão dos outros termos, de cláusulas de inamovibilidade, porquanto diante delas, o legislador não poderá remover elenco específico de matérias (v.g., art.60, § 4º, da Constituição).

Assim, a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes, os direitos e garantias individuais, incluindo-se aí os direitos adquiridos, não podem sofrer mudanças, porquanto são inamovíveis.

Mas vale investigar a índole jurídica das cláusulas de inamovibilidade.

Elas são aquelas que possuem uma supereficácia, ou seja, uma eficácia total, como é o caso do mencionado § 4º, do art.60.

Total, pois contêm uma força paralisante e absoluta de toda a legislação que vier a contrariá-las, quer implícita, quer explicitamente.

Daí serem insuscetíveis de reforma, e.g, arts.1º; 2º; 5º, I a LXXVII; 14; 18; 34,VII, a e b; 46,§ 1º; 60, § 4º etc.

São ab-rogantes, desempenhando efeito positivo e negativo.

Têm efeito positivo, pois não podem ser alteradas através do processo de revisão ou emenda, sendo intangíveis, logrando incidência imediata.

Possuem, noutro prisma, efeito negativo pela sua força paralisante, absoluta e imediata, vedando qualquer lei que pretenda contrariá-las.

Permanecem imodificáveis, exceto nas hipóteses de revolução, quando ocorre ruptura na ordem jurídica, para se instaurar uma outra.

Como se vê, as cláusulas de inamovibilidade trazem limites materiais ao poder de reforma constitucional, os quais foram reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal.

Alguns desses limites ou vedações materiais são expressos, outros implícitos.

A essa altura já se percebe: não é toda e qualquer assunto que constitui alvo da competência reformadora.

De fato, sendo o poder reformador subordinado e instituído pelo instrumento que lhe traçou o perfil e ditou o seu modus operandi, qual seja o poder constituinte originário, nem tudo ele pode, nem todas as manifestações solicitadas poderá satisfazer, nem todas as reclamações formuladas poderão ser acolhidas.

Portanto, do ponto de vista jurídico, é engano acreditar que os depositários do limitado poder reformador, investidos na laboriosa tarefa de modificar a Constituição, a fim de adaptá-la a novas realidades fáticas, tudo podem fazer.

Se assim fosse, estariam aptos para exercer o poder constituinte originário, o que lhes permitiria elaborar um novo Texto Supremo e não, simplesmente, alterá-lo.

Conseqüência disso, o legislador ordinário não tem a varinha de condão para fazer mágicas, exercendo livremente o poder de criar situações inconstitucionais, mantidas pela interpretação distorcida de preceitos e princípios constitucionais reformados.

Assim, quem desejar saber a extensão das cláusulas do art.60, § 4º, da Constituição, não precisa ir muito longe. Basta ter em mente o caráter instituído que condiciona as formas de exercício da competência reformadora.

Evidente que a garantia dos direitos adquiridos está abrangida, de modo direto, pela impossibilidade de interpretações deturpadoras de seu espírito.

Isso não passou despercebido ao Supremo Tribunal Federal.

Na primeira oportunidade em que ele apreciou o problema da inconstitucionalidade de emenda à Constituição, decidiu, unanimemente, que as normas intangíveis do art.60, § 4º, estipulam limitações ao poder reformador, não admitindo expansão, através de ato interpretativo, para evitar a ruptura total da Constituição.


          5. Interpretação conforme à Constituição e reforma administrativa

Diante do que acabamos de dizer, será inconstitucional o ato legislativo ordinário que não atentar para a intocabilidade da garantia dos direitos adquiridos (§ 4º, do art.60).

É que o princípio insculpido no art.5º, inc.XXXVI, dirige-se tanto aos depositários do poder reformador, quanto aos legisladores ordinários.

Por isso, recomenda-se que emendas constitucionais, a exemplo das que implementaram as reformas administrativas e da previdência, sejam interpretadas à luz da interpretação conforme à Constituição sem redução do texto.

Modalidade de decisão do Bundesverfassungsgericht, plenamente aceita e utilizada pelo Supremo Tribunal Federal, a interpretação conforme à Constituição sem redução do texto possui a natureza decisória, não consistindo, meramente, numa modalidade interpretativa.

É também uma espécie de interpretação constitucional, no sentido de que configura uma técnica a mais posta ao dispor do intérprete da Lex Mater, permitindo-lhe desvendar o conteúdo do produto normado.

Mas não é tão somente uma técnica interpretativa, pois se reveste em uma modalidade especial de ato decisório, encarregado de declarar a nulidade sem a redução do texto.

Categoria já conhecida da Suprema Corte norte americana, a interpretação conforme à Constituição possui o traço da flexibilidade.

Ela permite ao exegeta livrar-se do formalismo jurídico, imposto pela estrutura normativa dos textos legais.

Através da exclusão das opções interpretativas consideradas contrárias ao articulado constitucional, são preenchidas lacunas, corrigindo os vazios normativos inerentes à linguagem prescritiva do legislador.

Trata-se da otimização constitucional, que permite a construção dos textos legais, perante hipóteses concretas levadas ao tribunal, através da analogia, bem como da redução, derivação e compatibilização de pontos de vista normativos, inseridos na própria Lex Legum.

5.1 Interpretando os subsídios conforme à constituição sem redução do texto

A técnica da interpretação conforme à Constituição sem redução do texto poderá ser utilizada para se determinar o sentido, significado e alcance dos subsídios, oriundos da reforma administrativa.

Exemplificando, quando o art. 29, da EC 19/98, prescreve que os subsídios, vencimentos, remuneração, proventos da aposentadoria, e quaisquer outras espécies remuneratórias, sujeitam-se a limites, é dado ao intérprete lançar mão da interpretação conforme à Constituição sem redução do texto.

É que o art.29 possui vários significados, uns compatíveis com a garantia dos direitos adquiridos, outros não.

Como a interpretação conforme à Constituição sem redução do texto só se legitima se existir um espaço de decisão aberto às diversas propostas interpretativas, resta ao exegeta conciliar o art.29, da EC 19/98, com a garantia insuprimível dos direitos adquiridos (art.5º, XXXVI, c./c. art.60, § 4º).

Dessa forma, o alcance valorativo do preceito ficará reduzido, precisamente para impedir a retroatividade de atos legislativos, contrários a certas situações jurídicas consolidadas antes da promulgação da lei nova.

Em relação a eles não haverá qualquer retroatividade do art.29 ou de qualquer outra norma jurídica, porque incidirá a proteção do direito adquirido.

Continuarão, assim, percebendo integralmente seus vencimentos, sem qualquer decréscimo.

Aqueles que têm suas vantagens pessoais integradas regularmente em seus vencimentos, de forma lícita e consagrada antes à publicação da EC 19/98, não se sujeitarão ao teto salarial do funcionalismo, correspondente ao subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

De forma alguma poderão sofrer redução em seus salários, mesmo que percebam um valor superior ao limite máximo a ser regulado por meio de lei de iniciativa conjunta do Presidente da República e dos Presidentes da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal.

Sobre o autor
Uadi Lammêgo Bulos

Advogado Constitucionalista. Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Constitucional (SBDC), Doutor e Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Autor de "Constituição Federal Anotada", "Curso de Direito Constitucional" e "Direito Constitucional ao alcance de todos" (Editora Saraiva).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BULOS, Uadi Lammêgo. Cláusulas pétreas e direito adquirido. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 46, 1 out. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/373. Acesso em: 5 nov. 2024.

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