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O ato de improbidade administrativa e a impossibilidade de compromisso de ajustamento em virtude do art. 17, §1º, da Lei nº 8.429/92.

Avanço ou retrocesso?

Agenda 01/02/2003 às 00:00

         Sabe-se que dentre as inovações trazidas pela Constituição Federal de 1988, no Capítulo VII, destinado à Administração Pública – especificamente no art. 37, §4º - está a previsão de algumas medidas a serem aplicadas aos agentes públicos pela prática de atos de improbidade administrativa [1].

         Tal dispositivo constitucional não foi dotado de autoexecutoriedade, razão pela qual somente com a publicação da Lei nº 8.429/92 os atos de improbidade administrativa foram classificados e os agentes públicos, responsáveis pela prática dos mesmos, passaram a sofrer além das medidas previstas na Constituição Federal, outras mais trazidas na referida Lei.

         Em verdade, o anteprojeto de lei remetido pelo então Ministro da Justiça, Jarbas Passarinho, ao Presidente da República, Fernando Collor de Mello, continha treze artigos, que constituíam uma versão remodelada da Lei Bilac Pinto [2]. Provavelmente em decorrência dos inúmeros discursos de combate à corrupção, que se acentuaram após a Carta Constitucional de 1988, o Projeto de Lei - que recebeu o nº 1.446/91 - sofreu centenas de emendas ao tramitar pela Câmara de Deputados e Senado Federal. Impende acrescentar que quando encaminhado ao Senado Federal, o Senador Pedro Simon criticou a redução da improbidade a casos de enriquecimento ilícito, apresentando substitutivo que, dentre outras coisas, sistematizava as diversas espécies de improbidade administrativa, ampliando as penalidades.

         Assim, em 02 de junho de 1992 foi publicada a Lei nº 8.429/92, com 25 artigos. Dentre as previsões contidas na Lei de Improbidade, merece aplausos a classificação dos atos de improbidade em três espécies: os que geram o enriquecimento ilícito do agente público (art. 9º), os que causam prejuízo ao erário (art. 10) e os que violam os princípios que norteiam a Administração Pública (art. 11). A ampliação do conceito de agente público (art. 2º) também deve ser destacada como ponto positivo trazido na lei, assim como a previsão de providências cautelares, a saber: a indisponibilidade e o seqüestro de bens e o afastamento provisório do agente público (arts. 7º, 16 e 20).

         Dentre os pontos negativos contidos na Lei de Improbidade, podemos citar não somente a providência procrastinatória prevista no art. 17, §7º [3], como também a vedação imposta pelo §1º, do art. 17 que impede a transação, acordo ou conciliação nas ações de improbidade.

         Ora, se não cabe transação nas ações de improbidade administrativa, a fortiori não se admitirá transação nos respectivos inquéritos civis. Assim, o mencionado dispositivo legal veda os chamados compromissos de ajustamentos em caso de improbidade administrativa.

         Justifica-se tal vedação pela indisponibilidade do interesse público. Como bem assevera Cirne Lima [4], a administração é atividade do que não é proprietário, ou seja, do que não é senhor absoluto. Com efeito, pertencendo os bens e os interesses públicos a toda uma coletividade, não estão vinculados à vontade do administrador e sim à finalidade impessoal a que essa vontade deve servir. Por esta mesma linha de raciocínio, conclui-se que a vedação contida no art. 17, §1º, da Lei de Improbidade decorre da impossibilidade de se abrir mão de direitos alheios.

         Teoricamente, tal conclusão é isenta de reparos, uma vez que na defesa de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, os co-legitimados ativos à propositura da ação não agem em busca de direitos próprios e sim visando à satisfação de interesses de toda uma coletividade [5]. Porém, em virtude de aspectos práticos algumas concessões vêm sendo feitas a tal conclusão, em matéria de defesa de interesses metaindividuais.

         Assim, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/89), no seu art. 211, admitiu o compromisso de ajustamento em matéria de defesa de interesses metaindividuais de crianças e adolescentes, o qual passaria a ter eficácia de título extrajudicial. Posteriormente, o Código de Defesa do Consumidor inseriu um §6º ao art. 5º, da Lei nº 7.347/85, permitindo o compromisso de ajustamento, ou seja, transação extrajudicial na área de interesses metaindividuais, firmado pelos legitimados a propositura da ação.

         O compromisso de ajustamento não se confunde com a transação, que é instituto de Direito Civil, previsto no art. 1025 do Código Civil, que faculta as partes prevenirem ou terminarem um litígio mediante mútuas concessões. No compromisso de ajustamento, segundo pontua Mazzilli [6], o compromisso é exclusivo do causador do dano que ajusta a sua conduta de modo a submetê-la às exigências legais. O órgão público legitimado que toma o compromisso se obriga apenas a não agir judicialmente contra o compromitente em relação àquilo que foi objeto do ajuste. O compromisso de ajustamento vale como título executivo extrajudicial [7], devendo ser dotado de liquidez [8].

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         Apesar da vedação imposta a realização de compromissos de ajustamento em matéria de improbidade administrativa, em virtude do que dispõe o art. 17, §1º da Lei nº 8.429/92, questionamos o avanço de tal proibição.

         Conforme assevera Carlos Frederico Brito dos Santos "concordaríamos com a medida tomada pelo legislador se o conceito de ato de improbidade administrativa se restringisse ao art. 9º e à hipótese de violação do dever de honestidade contido no art. 11 da lei comentada" [9]. Porém, sabe-se que também comete ato de improbidade administrativa aquele que causa culposamente prejuízo ao erário (art.10), quando, então, perde sentido a vedação legal.

         O legislador constitucional ao determinar no art. 37, §4º algumas medidas aplicáveis aos atos de improbidade administrativa, certamente não previu a amplitude que seria conferida ao instituto pela Lei nº 8.429/92. Desta maneira, provavelmente não pretendeu que o agente público que retardou ato de ofício (art. 11, II) fosse punido com as mesmas sanções que aquele que incorporou ao seu patrimônio verbas públicas (art.9º, XI), com variações apenas quantitativas.

         Assim, apesar do disposto no art. 12, da Lei nº 8.429/92 levar ao entendimento da regra da aplicação em bloco das sanções passíveis de aplicação ao agente ímprobo [10], em atenção ao princípio da proporcionalidade, a jurisprudência vem admitindo que, em situações específicas e devidamente fundamentadas, deixe de se aplicar cumulativamente todas as sanções ali previstas [11].

         Com efeito, podemos trazer o exemplo de um servidor público, responsável pelo setor de pessoal de um determinado órgão público, que deixou de conferir, como era de sua obrigação, a folha de pagamento confeccionada por um servidor que lhe era subordinado, em razão da confiança depositada naquele. Posteriormente, descobri-se que na confecção da folha, o referido servidor desviou a quantia de R$ 2.000,00 (dois mil reais). Temos, ainda, o caso do administrador público que convoca candidatos aprovados em concurso público antes da publicação oficial do resultado do certame.

         Na primeira hipótese a servidora pública estaria enquadrada no art. 10 da Lei de Improbidade Administrativa, uma vez que a sua negligência ocasionou prejuízo ao erário. No segundo caso, o administrador público praticou ato de improbidade, previsto no art. 11, IV, por violação ao princípio da legalidade e publicidade.

         Em ambos os casos pensamos que seria possível a aplicação do princípio da proporcionalidade na imposição das sanções previstas no art. 12 da Lei nº 8.429/92, em virtude da pouca extensão do dano causado e proveito obtido.

         Ora, ainda tendo em mente os exemplos antes apresentados questionamos se não seria mais vantajoso para o interesse público a possibilidade de se firmar compromissos de ajustamentos em sede de Inquérito Civil a ter que propor uma Ação de Improbidade que se arrastaria por anos, com forte possibilidade de inocuidade das sanções aplicadas ao final da demanda.

         No Estado da Bahia, apesar das centenas de ações com fundamento na Lei nº 8.429/92, que tramitam em diversas Comarcas e nos Tribunais Superiores, nenhuma dessas ações, até a presente data, foi julgada em definitivo, o que significa dizer que nenhuma das sanções previstas abstratamente na norma antes mencionada foi aplicada aos agentes ímprobos até a presente data [12].

         Na ceara Penal que também trata de direitos indisponíveis, nota-se hoje uma forte tendência metodológica de se separar a criminalidade de menor potencial ofensivo da criminalidade de alta reprovabilidade, prevendo, para as primeiras, soluções consensuadas. Assim, a Lei nº 9.099/95, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, está evidentemente inspirada neste modelo "consensuado". Desta forma, o art. 2º da referida lei enfatiza que o processo, nas infrações de pequeno ou médio potencial ofensivo (que a lei se encarregou de delimitar) deve buscar, sempre que possível, a conciliação ou a transação. Não há dúvidas que os resultados práticos dessa nova tendência acolhem de forma mais confortável os fins sociais do direito.

         Faz-se necessária à adoção de uma postura crítica em relação ao conteúdo legal da Lei de Improbidade no que concerne a impossibilidade de compromissos de ajustamento que, no nosso entender, dificulta a plena realização dos fins sociais da norma.

         Fere o princípio da razoabilidade a movimentação da máquina judiciária para obtenção de um ressarcimento de danos e o pagamento de uma multa civil, por exemplo, quando o agente público que causou prejuízo ao erário, por culpa, está disposto a se submeter às referidas medidas em sede de inquérito civil.

         Hoje quando a atenção está voltada para a recente inclusão do foro privilegiado nas ações de improbidade administrativa, cuja análise não cabe a este trabalho, poder-se-ia pensar na revogação do § 1º do art. 17, como forma de viabilizar o compromisso de ajustamento e a transação, com as devidas cautelas, nos casos onde não se revelasse a desonestidade.


NOTAS

         01. "Art. 37...§4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade de bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível."

         02. A Lei nº 3.502/58 era alcunhada de Lei Bilac Pinto, em homenagem ao Deputado autor do projeto. Este diploma legal dispunha sobre o seqüestro e perdimento de bens no caso de enriquecimento ilícito, por influência ou abuso de cargo ou função pública, ou emprego em entidade autárquica, independente da responsabilidade penal cabível. Cumpre esclarecer, que o próprio Bilac Pinto, ao comentar a lei, reporta-se aos obstáculos aos quais estariam sujeitos os aplicadores da norma, em virtude da dificuldade da prova dos inúmeros requisitos necessários à configuração do enriquecimento ilícito (Cf. Pinto, Francisco Bilac Moreira. Enriquecimento Ilícito no Exercício de Cargos Públicos. Rio de Janeiro, Forense, 1960, p. 153).

         03. "Art. 17...§7º. Estando a inicial em devida forma, o juiz mandará autuá-la e ordenará a notificação do requerido, para oferecer manifestação por escrito, que poderá ser instruída com documentos e justificações, dentro do prazo de quinze dias (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.225-45, de 4/9/2001).

         04. Lima, Ruy Cirne. Princípios de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p.20.

         05. Mazzilli, Hugo Nigro. O Inquérito Civil. São Paulo: Saraiva, 1999, p.294.

         06. Mazzilli, Hugo Nigro. O Inquérito Civil. São Paulo: Saraiva, 1999, p.297.

         07. Cf. art. 585, II, do CPC.

         08. Deve conter obrigação certa, quanto à sua existência, e determinada, quanto ao seu objeto.

         09. Brito dos Santos, Carlos Frederico. Improbidade Administrativa: Reflexões sobre a Lei n. 8.429/92. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.145.

         10. Pela leitura do art. 12 se conclui que as sanções ali previstas são cumulativas, sendo o campo de discricionariedade conferido pelo parágrafo único, do referido artigo, limitado ao prazo e à base de cálculo referentes às sanções variáveis, quais sejam, pagamento de multa civil, suspensão de direitos políticos e proibição de contratar com o Poder Público ou de receber incentivos e benefícios fiscais ou creditícios (Cf. Martins Júnior, Wallace Paiva. Probidade Administrativa. São Paulo: Saraiva, 2001, p.263).

         11. "CONSTITUCIONAL – ADMINISTRATIVO – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – A decisão deve assimilar a circunstancialidade dos fatos de modo a estabelecer condenação proporcional e adequada no plano da realidade e das circunstâncias atenuantes da falta ou irregularidade administrativa. Desvio de finalidade que não configura delito no plano penal mas que corresponde a irregularidade que deve ser coibida no plano administrativo. Improbidade reconhecida, com mitigação das sanções em razão das circunstâncias de fato. Preliminares afastadas. Apelo parcialmente provido, prejudicado o agravo retido" (Apelação Cível nº 70001127364, Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, rel. Des. Perciano de Castilhos Bertoluci, julgamento em 15/02/01).

         12. A morosidade no andamento das ações de improbidade foi agravada com a introdução do § 7º ao art. 17 da Lei de Improbidade, através da Medida Provisória nº 2.102-32, de 21/06/2001.

Sobre a autora
Rita Andréa Rehem Almeida Tourinho

promotora de Justiça na Bahia, mestranda em Direito Público pela UFPE/UCSAL

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOURINHO, Rita Andréa Rehem Almeida. O ato de improbidade administrativa e a impossibilidade de compromisso de ajustamento em virtude do art. 17, §1º, da Lei nº 8.429/92.: Avanço ou retrocesso?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3742. Acesso em: 22 dez. 2024.

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