2. Da Culpa
O Código Penal, no inciso II de seu art. 18, conceitua crime culposo como sendo “quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia”. (BRASIL, 1940). Os conceitos doutrinários, todavia, são mais específicos em detalhar a culpa do que o conceito trazido pelo Código Penal.
Para Nucci (2010, p. 210), culpa é “o comportamento voluntário desatencioso, voltado a um determinado objetivo, lícito ou ilícito, embora produza resultado ilícito, não desejado, mas previsível, que podia ter sido evitado”. Já para Bittencourt (2004, p. 270), culpa é a “inobservância do dever objetivo de cuidado manifestada numa conduta produtora de um resultado não querido, objetivamente previsível”. O Código Penal Militar, em seu art. 33, II, também traz o conceito de crime culposo, igualmente mais específico que o conceito trazido pelo Código Penal.
Art. 33: Diz-se o crime: II - culposo, quando o agente, deixando de empregar a cautela, atenção, ou diligência ordinária, ou especial, a que estava obrigado em face das circunstâncias, não prevê o resultado que podia prever ou, prevendo-o, supõe levianamente que não se realizaria ou que poderia evitá-lo. (BRASIL, 1969).
Para se configurar crime culposo é necessário que o agente aja ou omita-se em agir, violando-se o dever do cuidado, típico da vivência em sociedade, mediante imprudência, imperícia ou negligência, sem possuir intenção do resultado danoso, embora sua ocorrência seja previsível.
Imprudência é “a prática de uma conduta arriscada ou perigosa e tem caráter comissivo. [...]. Conduta imprudente é aquela que se caracteriza pela intempestividade, precipitação, insensatez ou imoderação”. (BITTENCOURT, 2004, p. 279). Age com imprudência, por exemplo, o motorista que dirige em velocidade acima da permitida na pista, que dirige embriagado ou fazendo manobras arriscadas.
Negligência é “um deixar de fazer aquilo que a diligência normal impunha”. (GRECO, 2006, p. 216). Age com negligência, por exemplo, o motorista que não troca os pneus já desgastados.
Imperícia é a “incapacidade ou falta de conhecimento necessário para o exercício de determinado mister”. (NUCCI, 2010, p. 213). É o profissional que não possui o conhecimento necessário para o exercício de sua profissão. Age com imperícia, por exemplo, o médico que, na operação, erra a artéria a ser cortada, trazendo a óbito o paciente.
Greco (2006, p. 208) elenca os requisitos necessários para se tipificar o tipo penal culposo, in verbis:
a) Conduta humana voluntária, comissiva ou omissiva; b) Inobservância de um dever objetivo de cuidado; c) O resultado lesivo não querido, tampouco assumido, pelo agente; d) Nexo de causalidade entre a conduta do agente e o resultado lesivo; e) Previsibilidade; f) Tipicidade.
Todo crime depende de uma conduta humana voluntária, que pode ser comissiva (agir) ou omissiva (deixar de agir). Todo crime culposo, como já dito anteriormente, deve possuir a inobservância de um dever de cuidado, que poderá acontecer por imprudência, negligência ou imperícia, e o resultado lesivo não querido (pois, senão, tratar-se-ia de dolo, na modalidade direto) e não assumido (pois, senão, tratar-se-ia de dolo, na modalidade eventual) pelo agente, e um nexo de causalidade entre a conduta do agente que inobserva o dever de cuidado e o resultado lesivo.
É necessária também, para se configurar o crime culposo, a previsibilidade do resultado danoso através da conduta que inobserva o dever de cuidado. A previsibilidade se consubstancia quando se consegue prever o resultado lesivo com a conduta do agente. Ocorre a previsibilidade objetiva quando o homem médio, aquele que não é ínfimo ou extraordinário, consegue prever o resultado lesivo. Entretanto, na previsibilidade objetiva, o agente, contrariando o homem médio, não foi capaz de prever o dito resultado.
A previsibilidade objetiva se determina quando um juízo levado a cabo, colocando-se o observador (por exemplo, o juiz) na posição do autor no momento do começo da ação, e levando em consideração as circunstâncias do caso concreto cognoscíveis por uma pessoa inteligente, mais as conhecidas pelo autor e a experiência humana da época sobre os cursos causais. (BITTENCOURT, 2004, p. 276-277).
Deve-se distinguir da previsibilidade subjetiva, que é a previsão do agente, devendo este “prever o resultado segundo suas aptidões pessoais, na medida do seu entendimento individual”. (CONCEIÇÃO, 2010). Enquanto a previsibilidade objetiva se consubstancia quando o homem médio consegue prever o resultado danoso através da conduta do agente, menos este, a previsibilidade subjetiva se consubstancia quando o próprio agente consegue prever o resultado danoso. A previsibilidade subjetiva não afasta a culpa e a transforma em dolo, na modalidade eventual, caso o agente, prevendo o resultado, acredita sinceramente na sua não-ocorrência (a chamada culpa consciente).
O último requisito da culpa é a tipicidade, que faz parte do Princípio da Legalidade, estampado nos art. 1º do Código Penal e art. 5º, XXXIX da Constituição Federal. É necessária prévia disposição legal para se responder pelo crime na modalidade culposa. E é necessário não apenas a prévia disposição legal do tipo penal a ser imputado ao agente, mas também que o mesmo possa existir na modalidade culposa (como homicídio, lesão corporal, incêndio e outros), ou, na sua ausência, só poderá responderá pelo crime aquele que o cometeu na modalidade dolosa, por força do Parágrafo Único do art. 18. do Código Penal, in verbis: “Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.” (BRASIL, 1940). Portanto, por exemplo, aquele que, por imprudência e não querendo o resultado lesivo, destruir, danificar ou deteriorar coisa alheia, não responderá pelo crime de dano (art. 163. do Código Penal) na modalidade culposa, sendo apenas um ilícito civil, nos fulcros do art. 168. do Código Civil.
Nucci (2010, p. 212) traz algumas situações peculiares no campo da culpa, in verbis:
-
Não existência da culpa presumida: a culpa tem que ser demonstrada e provada pela acusação.
Não diferenciação, no campo do Direito Penal, para os graus de culpa (levíssima, leve ou grave), devendo apenas diferenciar-se na individualização da pena e, caso a culpa levíssima for insignificante, não poderá ser considerada requisito para concretizar o tipo penal.
Não incidência da compensação de culpa, como ocorre na esfera civil, pois não há débito que se compense em esfera penal. Assim, caso A atropele B por imprudência, não pode alegar que B agiu com negligência e esta foi relevante para o seu atropelamento.
A possibilidade da ocorrência da concorrência de culpas, quando todos os envolvidos lesionam bens jurídicos alheios por culpa, e sem liame psicológico entre todos.
Não há, na esfera da culpa, a modalidade tentativa, devendo apenas responder, a título de culpa, pelos crimes consumados. Não há ocorrência da tentativa pelo fato de o primeiro de seus elementos ser a vontade livre e consciente de querer praticar a infração penal, enquanto que, na culpa, o agente não quer produzir resultado ilícito. O iter criminis é um instituto jurídico destinado aos crimes dolosos, não culposos. Não se cogita, prepara e executa crime culposo, mas tão somente crimes dolosos. (BITTENCOURT, 2004, p. 225). A doutrina, contudo, aceita a possibilidade de tentativa nos crimes culposos, quando ocorre a chamada culpa imprópria - o agente atua com dolo, mas, devido a erro de cautela que, analisado com mais cuidado, poderia ter sido evitado, responderá pelo crime na modalidade culposa.
A culpa se divide em três tipos: - culpa inconsciente, quando o agente não previu o resultado, embora previsível; - culpa consciente, quando o agente previu o resultado, mas acreditou sinceramente na sua ocorrência; - culpa imprópria, quando o agente agiu com dolo, mas responderá pelas penas cominadas ao crime culposo, conforme dito logo acima.
2.1. Da Culpa Inconsciente, da Culpa Consciente e da Culpa Imprópria
Segundo Damásio de Jesus (1991, p. 53), “na (culpa) inconsciente o resultado não é previsto pelo agente, embora previsível. É a culpa comum, que se manifesta na imprudência, negligência ou imperícia”. Conforme os ensinamentos de Damásio de Jesus, na culpa inconsciente o resultado não é previsto pelo agente, embora o requisito da culpa previsibilidade (objetiva) exista - ou seja, o homem médio consegue prever o resultado -, e a sua conduta é eivada de imprudência, negligência ou imperícia. Nucci (2010, p. 211), por sua vez, trata a culpa inconsciente como sendo “a culpa por excelência, ou seja, a culpa sem previsão do resultado. O agente não tem previsão (ato de prever) do resultado, mas mera previsibilidade (possibilidade de prever)”. Prado (2010, p. 348) trata a culpa inconsciente como sendo “a culpa comum, que se verifica quando o autor não prevê o resultado que lhe é possível prever. A lesão ao dever objetivo de cuidado lhe é desconhecida, embora conhecível”.
O agente, portanto, não foi capaz de prever o resultado – ou a lesão ao dever de cuidado -, mas o homem médio conseguiria prever. É a chamada culpa comum ou culpa sem previsão. E é imprescindível a previsibilidade do homem médio, pois, na sua ausência, configura-se caso fortuito ou força maior, não sendo, portanto, fato típico, por ausência de um dos requisitos da culpa e, consequentemente, pela ausência da mesma.
Já a culpa consciente é a culpa que ocorre “quando o agente prevê que sua conduta pode levar a um certo resultado lesivo, embora acredite, firmemente, que tal evento não se realizará, confiando na sua atuação (vontade) para impedir o resultado” (NUCCI, 2010, p. 211). Greco (2006, p. 218), por sua vez, define a culpa consciente como sendo
aquela em que o agente, embora prevendo o resultado, não deixa de praticar a conduta acreditando, sinceramente, que este resultado não venha a ocorrer. O resultado, embora previsto, não é assumido ou aceito pelo agente, que confia na sua não-ocorrência.
Configura-se culpa consciente, por exemplo, quando o agente ultrapassa um veículo em uma estrada e, verificando que na direção contrária vem outro veículo, acredita que, caso acelere, consiga ultrapassar o primeiro veículo sem chocar-se contra o segundo, o que não ocorre, gerando o resultado lesivo ofensa à integridade física ou morte. Por mais que o agente tenha previsto a possibilidade de chocar-se contra o segundo veículo, acreditou sinceramente que, caso acelerasse, conseguiria findar a ultrapassagem sem se chocar contra o dito veículo. Bittencourt (2004, p. 281), por sua vez, acredita que, ao analisar a culpa consciente, deve-se agir cautelosamente, pois a mera previsão do resultado não significa culpa consciente, pois se necessita da consciência do agente acerca do resultado. É a chamada culpa com previsão.
O Código Penal, por sua vez, não traz diferença alguma entre a culpa consciente e inconsciente, devendo o juiz apenas trazer no momento da dosimetria da pena prevista no art. 59. do Código Penal. O art. 18, II do Código Penal, que trata da culpa, sequer traz distinção da culpa consciente ou da inconsciente, como o inciso I do dito artigo traz distinção das modalidades do dolo, tendo sido trazida apenas pelo inciso II do art. 33. do Código Penal Militar e por construção doutrinária e jurisprudencial.
Bittencourt (2004, p. 280) questiona se a culpa consciente não seria, na maioria das vezes, indício de menor insensibilidade ético-social, sendo que há maior atenção por parte do agente na hora da execução das atividades perigosas, enquanto que na culpa inconsciente o descuido é maior e, assim, mais perigoso, haja vista a exposição ao risco ser mais frequente quando o agente nem percebe a possibilidade de ocorrência do evento danoso. Para o autor, é mais culpado aquele que sequer olhou o obstáculo, em detrimento daquele que avistou o obstáculo, mas acreditou sinceramente que este se afastaria a tempo. Essa análise, entretanto, deve ser feita pelo juiz na fase de dosimetria da pena.
Além da culpa consciente e da culpa inconsciente, o ordenamento jurídico brasileiro traz outra modalidade de culpa, a culpa imprópria. Apesar de ser considerado culpa, o crime foi cometido com a intenção de acontecer o resultado. Todavia, tal intenção é viciada por um erro que, com mais cuidado, poderia ter sido evitado. E tal erro deve ser evitável, pois, se inevitável fosse, excluiria por completo a responsabilidade penal. É a chamada culpa imprópria, por extensão ou assimilação.
A culpa imprópria ocorre quando o agente, no processo psicológico, analisa mal uma situação ou os meios empregados, faltando na cautela na dita avaliação, agindo assim de forma culposa. Porém, na execução do crime, age dolosamente, com o objetivo do resultado lesivo, embora viciado pelo erro evitável e culposo.
O § 1º do art. 20. do Código Penal especifica bem o que é a culpa imprópria: “§ 1º - É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo” (BRASIL, 1940). Analisando o dito parágrafo, consegue perceber que, caso o agente, por erro, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima, é isento de pena. Todavia, caso o erro derivou de culpa – ou seja, faltou cautela por parte do agente -, responderá por culpa, desde que haja previsão de culpa no tipo penal em questão, por força do art. 18, Parágrafo Único, do Código Penal.
Além do § 1º do art. 20. do Código Penal, a culpa imprópria também aparece na parte final do Parágrafo Único do art. 23. do mesmo diploma legal, quando diz que o agente responderá pelos excessos dolosos ou culposos nas excludentes de ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal, exercício regular do direito ou aceitação da vítima, nos bens jurídicos penalmente tutelados disponíveis).
3. Diferença entre Dolo Eventual e Culpa Consciente
O dolo eventual se consubstancia quando o agente age ou deixa de agir, prevê que tal conduta pode acarretar uma lesão a um bem jurídico penalmente tutelado e pouco se importa se a dita lesão ocorrer ou não. O art. 18, I do Código Penal preceitua que comete crime na modalidade dolo eventual quando o agente “assume o risco de produzi-lo (o resultado lesivo)”. (BRASIL, 1940), entendendo-se por assumir o risco o agente que conhece do risco e lhe é indiferente.
Para se concretizar o dolo eventual, em detrimento da culpa consciente, não basta o agente conhecer o risco do resultado lesivo e nada fizer para que este não ocorra, ou não agir para minorar o risco ou o resultado lesivo, pois isso não é assumir o risco; é imprescindível que o agente, ao conhecer do risco, pouco se importar com a ocorrência da lesão ao bem jurídico penalmente tutelado alheio. É o caso do agente que dirige em alta velocidade perto de uma escola, no horário de saída, e pouco se importa se acertará algum transeunte ou não.
Já a culpa consciente se consubstancia quando o agente age ou deixa de agir, prevê que tal conduta pode acarretar uma lesão a um bem jurídico penalmente tutelado, mas acredita sinceramente na sua não ocorrência. Como bem preceitua Greco (2006, p. 218), “na culpa consciente, o agente, embora prevendo o resultado, acredita sinceramente na sua não-ocorrência; o resultado previsto não é querido ou mesmo assumido pelo agente”. Percebe-se que, para ocorrer a culpa consciente, é necessário que o agente faça uma conduta (com todos os requisitos da culpa, como a imprudência, negligência ou imperícia), preveja que tal conduta possa levar a um resultado lesivo (previsibilidade subjetiva, lembrando-se que a conduta seja capaz de causar ofensa a um bem jurídico penalmente tutelado de forma iminente, e não remota) e acredita que não ocorrerá tal resultado, embora venha a ocorrer. É o caso, por exemplo, do motorista em alta velocidade que, vendo um transeunte atravessando na sua frente, correndo, acredita não necessitar frear o veículo, pois o pedestre conseguirá atravessar o veículo a tempo, mas acaba não dando tempo, acertando-o e ceifando-lhe a vida.
A diferença consubstancial entre o dolo eventual e a culpa consciente se dá em o agente, ao prever o resultado lesivo, acreditar sinceramente na sua não-ocorrência ou lhe for indiferente. É algo interno, do âmago do agente. E, como não se dá para retirar do âmago do agente se este acreditou na não ocorrência ou foi indiferente ao resultado lesivo, entendem os doutrinadores e a jurisprudência pátria que deverá retirar tais requisitos dos fatos que cercam a ofensa ao bem jurídico penalmente tutelado alheio.
AGRAVO INTERNO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. HOMICÍDIO. ACIDENTE DE TRÂNSITO. DOLO EVENTUAL. CULPA CONSCIENTE. REVALORAÇÃO DE PROVAS. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. Considerando que o dolo eventual não é extraído da mente do acusado, mas das circunstâncias do fato, na hipótese em que a denúncia limita-se a narrar o elemento cognitivo do dolo, o seu aspecto de conhecimento pressuposto ao querer (vontade), não há como concluir pela existência do dolo eventual. Para tanto, há que evidenciar como e em que momento o sujeito assumiu o risco de produzir o resultado, isto é, admitiu e aceitou o risco de produzi-lo. Deve-se demonstrar a antevisão do resultado, isto é, a percepção de que é possível causá-lo antes da realização do comportamento. 2. Agravo a que se nega provimento.
(BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Agravo Regimental no Agravo de Instrumento, 1189970 DF 2009/01050713-6, Relator: Celso Limongi, 2010).
PENAL. PROCESSUAL. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. ALÍNEA C DO PERMISSIVO CONSTITUCIONAL. FALTA DE COTEJO ANALÍTICO. IMPOSSIBILIDADE DE EXAME DA DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. HOMICÍDIO. ACIDENTE DE TRÂNSITO. DOLO EVENTUAL. CULPA CONSCIENTE. REVALORAÇÃO DE PROVAS. POSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE ELEMENTOS DO DOLO EVENTUAL. CIRCUNSTÂNCIAS DO FATO QUE NÃO EVIDENCIAM A ANTEVISÃO E A ASSUNÇÃO DO RESULTADO PELO RÉU. DESCLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA QUE SE IMPÕE. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 4. Considerando que o dolo eventual não é extraído da mente do acusado, mas das circunstâncias do fato, na hipótese em que a denúncia limita-se a narrar o elemento cognitivo do dolo, o seu aspecto de conhecimento pressuposto ao querer (vontade), não há como concluir pela existência do dolo eventual. Para tanto, há que evidenciar como e em que momento o sujeito assumiu o risco de produzir o resultado, isto é, admitiu e aceitou o risco de produzi-lo. Deve-se demonstrar a antevisão do resultado, isto é, a percepção de que é possível causá-lo antes da realização do comportamento. 5. Agravo a que se nega provimento.
(BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Agravo Regimental no Recurso Especial, 1043279 PR 2008/0066044-4, Relatora: Jane Silva, 2008).
Conforme as jurisprudências acima lecionam, como é impossível retirar a aceitação ou não da ocorrência do resultado lesivo extraindo da mente do autor dos fatos, deve-se retirar as circunstâncias do fato que resultou na ofensa ao bem jurídico penalmente tutelado alheio. Por exemplo, A, ao perceber transeuntes à sua frente, acelera o veículo e passa próximo a todos, buzinando em tom de deboche. Em dado momento, acaba por acertar alguém, ceifando-lhe a vida ou ofendendo sua integridade física. É impossível saber se o autor dos fatos foi indiferente ou não na possível ocorrência do resultado lesivo, pois o simples fato de, ao prever o resultado lesivo, não agir para minorar o resultado, ou para o mesmo não ocorrer, não se configura, de plano, dolo eventual. Entretanto, analisando-se os fatos, pode-se extrair facilmente o dolo eventual, tendo em vista a aceitação do risco se dar no fato de, assim que fitou transeuntes à sua frente – visualizou a possibilidade da ocorrência do resultado lesivo -, acelerou o veículo. Passou próximo aos mesmos, buzinou em tom de deboche, o que demonstra sua total indiferença a possível resultado lesivo.
Em algumas situações, os fatos respondem, por si só, se o agente assumiu ou não o risco de produzir o resultado lesivo – como no exemplo acima, que todos os fatos apontam, categoricamente, para a aceitação do resultado lesivo por parte do agente. Todavia, há casos em que não se consegue extrair facilmente o dolo eventual ou culpa consciente dos fatos por si só. Além disso, há casos que, mesmo os fatos demonstrando que o agente assumiu o risco de produzir o resultado lesivo, é mister tentar verificar se, de fato, ele aceitaria ou não o risco da produção do resultado lesivo, como se adentrasse em sua mente, para verificar tal fato.
Greco (2006, p. 220) nos dá o exemplo do pai que comemora bodas de prata com sua mulher e três filhos e, durante a festa, bebe incomensuravelmente, ficando embriagado. Terminada a festa, volta para casa dirigindo o seu veículo, junto de sua família. Com pressa, pois queria assistir a uma partida de futebol, que seria transmitida na televisão, acelera o veículo. Entretanto, colide o seu veículo em outro, ceifando a vida de sua família inteira. Por mais que os fatos (dirigir embriagado, dirigir em alta velocidade por um motivo fútil) demonstrem que o pai agiu com dolo eventual, nunca, em tempo algum, ele assumiria o risco de matar toda sua família, pois um homem médio nunca aceitaria a possibilidade de ele próprio ceifar a vida de seu cônjuge e filhos no dia de comemoração de 25 anos de casado. Deve-se sempre enxergar com cautela o dolo eventual única e exclusivamente através dos fatos, pois, muitas das vezes, por mais que os fatos apontem o dolo eventual, ao adentrar no âmago do agente, perceber-se-á clara e indubitavelmente que o agente não aceitou – e jamais aceitaria - o resultado lesivo.
O dolo eventual e a culpa consciente são dois institutos do Direito Penal praticamente idênticos, difíceis de enxergar no caso concreto – muita das vezes, mesmo os retirando dos fatos –, e sempre passíveis de causar injustiça. Rotineiramente, ocorrerão dúvidas se o agente aceitou o não a possibilidade da ocorrência do resultado lesivo, mesmo retirando a resposta dos fatos que circundam a ofensa. Nesses casos, ocorrendo dúvida, deve-se sempre pesar sobre o réu a punição menos severa, para fazer jus ao princípio que ronda o Direito Penal do in dubio pro reo, ao invés de o princípio do in dubio pro societate, como muitos querem (GRECO, 2006, p. 221). A culpa consciente, por ser menos gravosa ao réu, deve sempre ser a regra, enquanto que o dolo eventual, por ser mais gravoso, deve sempre ser a exceção, para fazer jus ao princípio dito acima, devendo o último instituto apenas ocorrer quando tiver sido, nos autos, comprovado de forma indubitável, mesmo que através dos fatos, não podendo ser aplicado se pairam dúvidas.