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A (in)compatibilidade na ordem de entrega de brasileiro nato à jurisdição do TPI diante da Constituição da República Federativa do Brasil

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Agenda 03/05/2015 às 23:58

Este artigo aborda o eventual conflito (antinomia) do Estatuto de Roma, que instituiu o TPI, o qual prevê a ordem de entrega de nacionais ao TPI frente ao dispositivo constitucional que prescreve a proibição absoluta de extradição de brasileiros natos.

RESUMO

            O presente artigo objetiva promover um enfoque do Estatuto de Roma, que instituiu o TPI, de modo a destacar o eventual conflito (antinomia) apontado pela doutrina do dispositivo desse Estatuto que prevê a ordem de entrega de nacionais ao TPI frente ao dispositivo constitucional que prescreve a proibição absoluta de extradição de brasileiros natos. Para a plena compreensão da gênese e princípios do TPI imperioso se faz um retorno aos seus precedentes jurídicos, através do estudo da evolução dos Tribunais Penais Internacionais até a instituição e funcionamento efetivo da Corte Penal Internacional (CPI) – International Criminal Court (ICC). Segue-se uma análise de suas principais características, competência e crimes tipificados pelo Estatuto (genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e agressão). Ato contínuo, será apresentada a já mencionada incompatibilidade em relação ao texto do Estatuto e a Lei Maior. Serão elas: reais ou aparentes? Por fim, conclui-se que a inconstitucionalidade intrínseca advinda da incorporação do Tratado de Roma ao ordenamento jurídico brasileiro, no tocante à ordem de entrega de brasileiro nato à jurisdição do TPI, é apenas aparente. Até porque o instituto da entrega, previsto no Estatuto de Roma do TPI, difere do instituto da extradição, vedado pela Lei Maior. Logo, pretende-se demonstrar que a alegada incompatibilidade, mesmo naqueles aspectos que versem sobre cláusulas pétreas, inexiste, porquanto o texto expresso no Estatuto de Roma do TPI é complementar e se coaduna com o ordenamento constitucional brasileiro.

Palavras-chave: Tribunal Penal Internacional. Estatuto de Roma. Ordem de Entrega. Extradição. Constituição Federal.

INTRODUÇÃO

O estudo do TPI trilha o mesmo caminho da História da humanidade, estando intrinsecamente aliado às incontáveis violações de direitos humanos por ela sofridos ao longo dessa caminhada.

Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, por ocasião do seu término, a comunidade internacional saltou etapas e, invertendo a lógica da destruição, começou a repensar a noção de soberania nacional absoluta de outrora para construir um arraigado conceito de soberania, assentado no princípio da dignidade humana, com vistas à reconstrução. Assim, diante desses prenúncios, planta-se a semente para que o ser humano adquira o direito a ter direitos, tornando-se sujeito de direitos e deveres no plano internacional. A partir desse momento haveria o estabelecimento da responsabilidade internacional pessoal.

A princípio a aplicação da responsabilidade penal individual encontrou um óbice na inexistência de órgãos internacionais que aplicassem as normas de Direito Penal em âmbito internacional. A partir daí, a idéia da instituição de uma jurisdição internacional passou a afigurar como um dos temas mais instigantes da humanidade.

A verdade é que naquele momento a instituição de um tribunal permanente que venha a julgar e punir os mais terríveis crimes praticados contra a humanidade e que, desta forma desestimule ações do mesmo tipo por outros criminosos, de modo a atacar as violações frontais aos direitos humanos em termos repressivos (condenando os culpados) e preventivos (inibindo a tentativa de repetição dos crimes cometidos) representava, antes de tudo, um dever para com as vítimas e futuras gerações.

Esse processo, posteriormente a uma longa gestação, culminou com a criação do Estatuto de Roma e estabelecimento do TPI.

O Estatuto de Roma, responsável pela criação do TPI, foi ratificado por mais de 100 Estados (mais precisamente: 120), sendo que esse ato de aceite, realizado em manifestação de sua soberania, gera ao Estado-signatário o compromisso de cooperar com a Corte em seus atos e decisões.

Entretanto, esse comprometimento solenemente estabelecido em alguns pontos do texto normativo do Estatuto de Roma parece se contrapor a disposições previstas no direito interno de alguns Estados-partes – Ou, ainda, pior: Podem surgir eventuais incompatibilidades em relação a valores constitucionalmente consagrados de alguns Estados que aderiram a esse Tratado internacional.

No caso do Brasil, que foi um dos signatários originais do Estatuto do TPI, a situação não foi diferente. Considerando-se que o Brasil possui como um de seus fundamentos a soberania, no Estatuto de Roma constam alguns dispositivos que, em tese, são incongruentes com relação ao ordenamento constitucional brasileiro. Diante desse impasse surge a problemática: Como proceder frente a esse dilema? Seriam esses dispositivos inconstitucionais e, por isso, não poderiam ser recepcionados pela Constituição Federal ou haveria uma solução a fim de compatibilizá-los com a ordem jurídica brasileira?

Sendo o cerne do tema que se propõe a ser tratado o liame estabelecido entre o Estatuto de Roma do TPI e a Constituição Federal brasileira de 1988, especialmente a previsão da ordem de entrega (surrender) ante à impossibilidade de extradição de brasileiro nato por disposição constitucional. E sobre essa problemática que se debruçará o estudo a ser desenvolvido no presente artigo científico.

1. A TRAJETÓRIA DA CONCEPÇÃO DE UM TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL: O CAMINHAR DE UMA IDEIA

            A ideia de conceber uma jurisdição penal internacional não é recente. A trajetória da concepção de um Tribunal Penal Internacional trilhou um longo caminho. Enfim, foi uma longa gestação até que viesse a gênese do TPI.

1.1 Do surgimento dos Tribunais Militares aos Tribunais ad hoc no século XX: A evolução histórica dos Tribunais

            São precedentes históricos do TPI:

2. O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

Extirpando-se a prática de tribunais ad hoc, vem a lume o Tribunal Penal Internacional. No ano de 2002 surgiu a primeira Corte internacional permanente com jurisdição sobre pessoas acusadas de cometerem graves violações aos direitos humanos: o TPI, criado pelo Estatuto de Roma.[1]

No ano de 2002, durante a Conferência Diplomática dos Plenipotenciários[2] das Nações Unidas, o Estatuto de Roma (também conhecido como Tratado de Roma ou, ainda, Convenção de Roma) do Tribunal Penal Internacional foi afinal aprovado por cento e vinte Estados, em 17 de julho de 1998, contra apenas sete votos – China, Estados Unidos, Iêmen, Iraque, Israel, Líbia e Quatar – e vinte e uma abstenções, notadamente a da Índia.[3]

Nas palavras da ilustre Piovesan (2008, p. 223-224):

Surge o Tribunal Penal Internacional como aparato complementar às cortes nacionais, com o objetivo de assegurar o fim da impunidade para os mais graves crimes internacionais, considerando que, por vezes, na ocorrência de tais crimes, as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas na realização da justiça. Afirma-se, desse modo, a responsabilidade primária do Estado com relação ao julgamento de violações de direitos humanos, tendo a comunidade internacional a responsabilidade subsidiária. Vale dizer, a jurisdição do Tribunal Internacional é adicional e complementar à do Estado, ficando, pois, condicionada à incapacidade ou à omissão do sistema judicial interno. O Estado tem, assim, o dever de exercer sua jurisdição penal contra os responsáveis por crimes internacionais, tendo a comunidade internacional a responsabilidade subsidiária.

Como enuncia o art. 1º do Estatuto de Roma, a jurisdição do Tribunal é adicional e complementar à do Estado, ficando condicionada à incapacidade ou à omissão do sistema judicial interno.

Dessa forma, o Estatuto busca equacionar a garantia do direito à justiça, o fim da impunidade e a soberania do Estado, à luz do princípio da complementaridade e do princípio da cooperação.

A Corte Penal Internacional (CPI), também conhecida como Tribunal Penal Internacional (TPI) – International Criminal Court (ICC)–, instituição dotada de personalidade jurídica própria, passou a existir juridicamente a partir da data de 1º de julho de 2002 – quatro anos depois da adoção do Estatuto de Roma, que previu a sua criação –, mas seu funcionamento efetivo apenas iniciara em maio de 2003.

Segundo o Estatuto de Roma, o Tribunal Penal Internacional é uma pessoa jurídica de Direito Internacional com capacidade necessária para o desempenho de suas funções e de seus objetivos. O Tribunal poderá exercer os seus poderes e funções nos termos do seu Estatuto, no território de qualquer Estado parte e, por acordo especial, no território de qualquer outro Estado (art. 4º, §§ 1º e 2º).[4]

 O TPI trata-se da primeira instituição global permanente, universal e imparcial de justiça penal da História da humanidade, dotada de princípios previamente definidos, em contraponto aos tribunais ad hoc que o precederam, instituída para investigar, processar e julgar os acusados pela prática de crimes que desafiam a imaginação, violam a ordem internacional como um todo e que ultrajam profundamente a consciência da humanidade, a exemplo do genocídio, dos crimes contra a humanidade, dos crimes de guerra e do crime de agressão.

2.2 Características

2.2.1. Competência Material

A competência material do TPI, em conformidade com o Estatuto, se destina a julgar com caráter permanente e independente os crimes mais graves, de caráter internacional. Tais crimes são imprescritíveis e podem ser catalogados em quatro categorias, senão vejamos:

O art. 5º do Estatuto de Roma contém um rol com a tipificação dos delitos sujeitos à jurisdição do Tribunal. Assim, compete ao TPI o inquérito, processo e julgamento dos mencionados crimes internacionais. Contudo, há que se evidenciar desde já que se foram tipificados pelo TPI são esses crimes atrocidades que desafiam a imaginação, violam a ordem internacional como um todo e que ultrajam profundamente a consciência da humanidade.

2.2.2 Competência Temporal

Estabelecida no art. 11 do Estatuto, a jurisdição do TPI se atém ao julgamento dos crimes de sua competência cometidos depois da sua entrada em vigor internacional, que corresponde a 1º de julho de 2002, quando 60 países ratificaram o Estatuto, salvo se o Estado-parte consentir que a jurisdição do TPI retroaja, o que é confirmado pelo § 2º do mesmo dispositivo do Estatuto.

Ainda assim, nos termos do art. 11, § 2º do Estatuto de Roma, caso um Estado se torne parte do Estatuto depois da sua entrada em vigor, o Tribunal somente poderá exercer sua competência para o processo e julgamento dos crimes cometidos depois da entrada em vigor do Estatuto nesse Estado, a menos que este tenha feito uma declaração específica em sentido contrário, nos termos do § 3° do art. 12 do mesmo Estatuto. [5]

A imputação de julgamento a crimes praticados anteriormente ao advento desse lapso temporal, qual seja, da entrada em vigor do Estatuto de Roma configura flagrante violação ao princípio de direito penal nullum crime nulla poena sine legen praevia.[6]

2.2.3 Competência Territorial

Consoante o disposto no art. 12 do Estatuto de Roma, o TPI possui competência para julgar os atos delituosos ocorridos no território dos Estados signatários, independente da nacionalidade do agente.

O Tribunal será, igualmente, competente sempre que houver imputação de qualquer um dos crimes capitulados no art. 5º do Estatuto a nacional de um Estado-membro.

Ademais, observar-se-á tal competência nos casos de crimes cometidos a bordo de navio ou aeronave, ocasião na qual será verificada a bandeira da embarcação ou aeronave.

Por derradeiro, o TPI estará legitimado a exercer sua jurisdição mediante o recebimento pela Promotoria da notitia criminis, seja de um Estado, seja do Conselho de Segurança das Nações Unidas, nos termos do art. 13 do Estatuto. Ou, ainda, poderá o Promotor agir de per se nesse intento, conforme completado pelo dispositivo anterior.

2.2.4 Competência com relação à pessoa

            Contrariamente à Corte Internacional de Justiça (órgão judicial da ONU), cuja competência se destina ao julgamento dos Estados, o TPI ou CPI é competente para o objetivo precípuo de julgar pessoas naturais (art. 25, § 1º) – e não jurídicas –, responsabilizando-as individualmente por seus atos. Eis o traço distintivo entre ambas as Cortes que, sem embargo de que possam possuir semelhança nos nomes (é de fundamental importância não confundir TPI ou Corte Penal Internacional com Corte Internacional de Justiça), bem como ambas sejam sediadas em Haia, na Holanda[7], diferenciam-se na essência por sua finalidade.

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Nos termos do art. 26 do Estatuto, a idade mínima para que um indivíduo possa responder pelos crimes de competência do TPI é de 18 anos na data da prática do crime. Assim, com essa idade (18 anos), adquire-se a imputabilidade penal perante o TPI.

Oportuno mencionar que a acusação somente poderá proceder caso o crime tenha sido praticado na modalidade dolosa, pos a culpa é excluída do âmbito de competência do TPI, consoante prescreve o art. 30 do Estatuto.

Igualmente, não há previsão explícita de punibilidade da tentativa, em nenhum dos crimes definidos no Estatuto. Mas ela pode decorrer dos princípios gerais de direito invocados no art. 21, § 1, c.[8]

2.3 Princípios regentes

Como não poderia ser diferente, a atuação do TPI se encontra vinculada à observância de princípios fundamentais, a saber:

2.3.1 Princípio da Complementaridade (ou Subsidiariedade):

Expresso no preâmbulo, no art. 1º e mais especificamente no art. 17 do Estatuto, prescreve que a jurisdição do TPI, contrariamente a dos tribunais ad hoc que são concorrentes e têm primazia sobre as Cortes nacionais[9], deve ser complementar (não antecedendo nem se sobrepondo à jurisdição nacional) à jurisdição penal dos Estados.

Considerando-se que o Estado possui responsabilidade primária e a comunidade internacional possui responsabilidade subsidiária, a jurisdição do TPI terá caráter excepcional, isto é, somente poderá ser exercida quando o Estado que originariamente possui jurisdição direta sobre determinado caso demonstrar:

Eis os requisitos de admissibilidade para o exercício da jurisdição internacional. Superada a condicionante do prévio esgotamento dos procedimentos internos – falência das instituições nacionais –, uma vez verificada a realização de uma das condutas elencadas no art. 5º do Estatuto, justifica-se a aplicação da competência do TPI. Neste sentido, a jurisdição do TPI se afigura complementar à jurisdição dos Estados, sendo que só emerge quando verificados os requisitos para que o TPI adquira competência para proceder a persecução penal. Sendo assim, a jurisdição do TPI não antecede nem se sobrepõe à jurisdição interna dos Estados, simplesmente a complementa.

2.3.2    Princípio da Responsabilidade Penal Individual

Segundo dita este princípio, previsto no art. 25 do Estatuto, o indivíduo que incorre na prática do tipo penal incriminado pelo Estatuto deverá ser responsabilizado pessoalmente pela conduta perpetrada, o que não obsta a responsabilidade estatal pelo(s) crime(s) ocorrido(s) em seu território.

2.3.3 Princípio da Irrelevância da Função Social

            Realçando o princípio constitucional da Isonomia ou Igualdade (art. 5º, caput, da CF/88), permite que inclusive os chefes de Estado ou de Governo, ministros, parlamentares e outras autoridades sejam responsabilizados criminalmente pela prática de quaisquer das condutas discriminadas no Estatuto de Roma, sem qualquer privilégio ou imunidade.

Corroborando com o argumento alhures, leciona Piovesan (2008, p. 225):

De acordo com o art. 27, aplica-se o Estatuto igualmente a todas as pessoas, sem distinção alguma baseada em cargo oficial. Isto é, o cargo oficial de uma pessoa, sela ela Chefe de Estado ou Chefe de Governo, não eximirá de forma alguma sua responsabilidade penal, tampouco importará em redução da pena.

2.3.4 Princípio da Responsabilidade dos Comandantes e outros Superiores

Exige que todos os comandantes militares, ainda que não estejam fisicamente presentes no local do crime, despendam de todos os meios ao seu alcance a fim de elidir a prática criminosa, sob pena de lhe ser imputada a responsabilidade conjunta pela conduta de seus subordinados.

2.3.5 Princípio da Imprescritibilidade

 Conquanto ninguém possa ser julgado por delitos praticados antes da entrada em vigor do Tratado de Roma, por este princípio a ação criminosa tipificada no art. 29 do Estatuto não se sujeitará jamais ao decurso do tempo para ter extinta a sua punibilidade, eis que tamanha a ofensa ao bem jurídico tutelado lapso temporal algum seria capaz de apagar a mácula trazida pela conduta incriminada.

2.3.6 Princípio da Cooperação

Consagrado no art. 86 do Estatuto, segundo o qual os Estados-partes deverão cooperar plenamente com o Tribunal na investigação e julgamento dos crimes de competência deste, bem como assegurar-se de que seu Direito Interno preveja procedimentos aplicáveis a todas as formas de cooperação especificadas no Estatuto.

Integra este dever de cooperação a obrigação de prender e entregar os acusados ao Tribunal.[10

2.4 Penas aplicáveis

O Estatuto não definiu uma pena específica para cada tipo penal, cabendo aos magistrados do TPI, com sua discricionariedade, determinarem a dosimetria das penas, conforme as peculiaridades do caso concreto, observado o limite de 30 anos de reclusão.

Desta forma, em seu art. 77 o Estatuto previu as penas aplicáveis aos réus julgados pelo TPI, sendo elas as seguintes:

  1. pena de até 30 anos de prisão;
  2. pena de prisão perpétua;
  3. pena de multa; e,
  4. confisco dos proventos, sejam eles auferidos direta ou indiretamente do crime, preservando-se os direitos de terceiro de boa-fé.

2.5 Procedimento

Conforme os ensinamentos da ilustre jurista Piovesan (2008, p.224):

O exercício da jurisdição internacional pode ser exercido mediante denúncia de um Estado-parte ou do Conselho de Segurança à Promotoria, a fim de que esta investigue o crime, propondo a ação penal cabível, nos termos dos arts. 13 e 14 do Estatuto. Pode ainda a própria Promotoria agir de ofício, nos termos dos arts. 13 e 15. Em todas as hipóteses, o exercício da jurisdição é condicionado à adesão do Estado ao tratado, ou seja, é necessário que o Estado reconheça expressamente a jurisdição internacional. Note-se que a ratificação do tratado não comporta reservas, devendo o Estado ratificá-lo na íntegra e sem ressalvas (art. 120).

Logo, a jurisdição do TPI pode ser exercida de três formas distintas, senão vejamos:

  1. Pela solicitação de investigação feita por um Estado-parte do Estatuto.

Essa denúncia, que deve ser acompanhada de elementos factuais que a substanciem, dá início a investigações, conforme o procedimento adotado pelo Tribunal;[11]

  1. Por intervenção do Conselho de Segurança das Nações Unidas, autorizado pelo Capítulo VII da Carta (rupturas e ameaças à paz e segurança internacionais), apontando situações criminosas, independentemente de o Estado fazer ou não parte do TPI;
  2. Por iniciativa da Promotoria, que recebe a notitia criminis, das mais variadas fontes, e age de ofício (art. 15 do Estatuto);
  3. Por iniciativa autônoma do promotor se subordina ao “exame da Câmara de Questões Preliminares, que deve confirmar a existência de base adequada para dar prosseguimento às investigações”.[12]

3. O INGRESSO DO TPI NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

3.1 A ratificação

O Estatuto de Roma que cria o Tribunal Penal Internacional foi aprovado em 17.07.1998. O Brasil assinou o aludido estatuto em 07.02.2000 e o Congresso Nacional o aprovou, por meio do Decreto Legislativo n. 112, em 06.06.2002, tendo sido promulgado em 26.09.2002, pelo Decreto presidencial n. 4.388. A carta de ratificação fora depositada em 20.06.2002, entrando em vigor em 1º.07.2002. Para o Brasil, internacionalmente, nos termos de seu art. 126, passou a vigorar em 1º de setembro de 2002. [13]

A partir desse momento o Brasil, que foi um dos signatários originais do Estatuto, passa a fazer parte da jurisdição do TPI, em cumprimento ao disposto no art. 7º do ADCT.

3.2 Hierarquia normativa

            Por se tratar de tratado internacional de direitos humanos ratificado anteriormente à previsão de quorum qualificado previsto no art. 5º, § 3º, da CF/88 (quorum de três quintos em dupla votação nas duas Casas legislativas), o Estatuto de Roma integrou-se ao Direito brasileiro com hierarquia infraconstitucional, mas status supralegal (situando-se em grau superior às leis ordinárias, porém em grau inferior à Constituição). Logo, situa-se no patamar inferior à Constituição, todavia superior a toda a legislação infraconstitucional, possuindo, assim, status normativo supralegal.

4. AS INCOMPATIBILIDADES ENTRE O ESTATUTO DE ROMA DO TPI E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988

Em um ato típico de soberania o Brasil ratificou ao Estatuto de Roma, responsável por instituir o TPI. A partir da assinatura do instrumento de ratificação, o Estado brasileiro tornou-se signatário do Estatuto, obrigando-se a “cooperar plenamente com o Tribunal no inquérito e no procedimento contra crimes de competência deste”[14], em respeito ao princípio da Cooperação.          

Haja vista que, consoante o disposto no art. 120 do Estatuto de Roma, a ratificação deste não admite reservas (logo, não é possível a um Estado ratificar ao Tratado em parte, porquanto a sua assinatura importa em torná-lo signatário do instrumento em sua integralidade, em todos os seus termos, e não de uma parte ou outra dele), alguns constitucionalistas propugnam por possíveis inconstitucionalidades do TPI em relação à Constituição Federal Brasileira de 1988.

  Essa situação é denominada no direito dos tratados de inconstitucionalidade intrínseca dos tratados internacionais. Esta tem lugar quando o tratado, apesar de formalmente ter respeitado todo o procedimento constitucional de conclusão estabelecido pelo direito interno, contém normas violadoras de dispositivos constitucionais.[15]

A qual não pode ser confundida “com a inconstitucionalidade chamada extrínseca (ou formal), também conhecida por ratificação imperfeita, que ocorre quando o Presidente da República violando norma constitucional de fundamental importância para celebrar tratados, ratifica o acordo sem assentimento prévio do Congresso Nacional”[16]. O que não foi o caso do TPI, cuja ratificação ocorreu em consonância com o procedimento constitucionalmente previsto para a celebração de tratados (arts. 49, inciso I e 84, inciso VIII, ambos da CF/88).

A existência de uma inconstitucionalidade intrínseca (normas incompatíveis com a Lei Maior) é tendente a ensejar eventuais antinomias[17]. Isto posto, muito se discute acerca de eventuais incompatibilidades entre o referido Estatuto e a Constituição Federal brasileira, vez que em muitos pontos aquele parece colidir com determinados preceitos constitucionais. Desta feita, seria o caso de inconstitucionalidade intrínseca do Estatuto de Roma em relação ao ordenamento constitucional brasileiro?

Considerando-se que a República Federativa do Brasil tem como um de seus fundamentos a soberania (art. 1º, inciso I da CF/88), argumenta-se assim a pretensa antinomia (diga-se: aparente)[18] de alguns dispositivos do Estatuto de Roma em relação a valores constitucionalmente consagrados. Para efeitos da presente abordagem: a impossibilidade da extradição de brasileiro nato.

4.1 A entrega de nacionais à jurisdição do TPI

O art. 89, §1º, do Estatuto de Roma[19], prevê o instituto da entrega de pessoas para julgamento no Tribunal (surrender[20] of persons to the Court), dispositivo esse que, em tese, conflita com a impossibilidade de extradição[21] de brasileiros natos (em caráter absoluto) e naturalizados, de acordo com o art. 5º, LI, da CF/88[22].

Tal inciso pertence ao rol dos direitos fundamentais catalogados no art. 5º, da CF/88 e, exatamente por agregar direito fundamental por excelência, encontram-se protegidos por cláusula pétrea (art. 60, §4º[23]).

Preliminarmente impende fazer uma abordagem do conceito de extradição entendido como tal.

Para Accioly (2000, p. 364), extradição “e o ato mediante o qual um Estado entrega a outro indivíduo acusado de haver cometido crime de certa gravidade ou que já se ache condenado por aquele, após haver-se certificado de que os direitos humanos do extraditando serão garantidos”.

Já Rezek (2008, p. 197) concebe que “Extradição é a entrega, por um Estado a outro, e a pedido deste, de pessoa que em seu território deva responder a processo penal ou cumprir pena”.

No mesmo diapasão, Silva (2005, p. 342) assevera ser ela “o modo de entregar o estrangeiro a outro Estado por delito nele praticado”.

De acordo com os ensinamentos de Moraes (2003) a extradição subdivide-se em duas espécies, a saber:

  1. ativa: é requerida pelo Brasil a outros Estados soberanos;
  2. passiva: é a que se requer ao Brasil, por parte dos Estados soberanos.

Em outras palavras:

Extraditar é entregar um indivíduo a outro país, no qual praticou determinado crime, para que seja lá julgado, com a aplicação das leis desse país. Por exemplo, um canadense pratica um crime no Canadá e foge para o Brasil; o governo canadense, então, pede ao governo brasileiro a extradição do indivíduo, para que ele seja julgado no Canadá, com a aplicação das leis canadenses. (PAULO; ALEXANDRINO, 2008, p. 158).

Lenza (2008, p. 710), como sempre, ilustra com muita didática as regras sobre extradição (art. 5º, LI e LII, da CF), ensinamentos os quais se mostra oportuno reproduzi-los:

  1. em caso de crime comum, praticado antes da naturalização; ou
  2. de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na formada lei, praticado antes ou depois da naturalização;

Dentro desse contexto, surge a seguinte problemática: Como proceder caso o TPI decidisse requerer a entrega de um brasileiro nato para ser julgado por aquela Corte?

De modo a elucidar a previsível arguição de eventuais incompatibilidades entre a previsão em comento e ordenamentos jurídicos internos, o art. 102 do Estatuto[24], faz a distinção entre os termos entrega e extradição, cujos significados não se confundem: Entende-se por entrega a entrega de uma pessoa por um Estado a um Tribunal Internacional. Por seu turno, extradição consiste na entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado.

Neste passo, não obstante a extradição se tratar de “um instrumento de cooperação internacional na repressão de combate à criminalidade”[25], o Estatuto não se refere tampouco menciona extradição, mas sim entrega, vez que esta pressupõe uma relação pautada no princípio da Cooperação, enquanto aquele constitui procedimento característico entre Estados soberanos.

 Na concepção de Medeiros (2000):

A diferença fundamental consiste em ser o Tribunal uma instituição criada para processar e julgar os crimes mais atrozes contra a dignidade humana de uma forma justa, independente e imparcial. Na condição de órgão internacional, que visa realizar o bem-estar da sociedade mundial, porque reprime crimes contra o próprio Direito Internacional, a entrega ao Tribunal não pode ser comparada à extradição.

O fundamento para a proteção em sede constitucional da não extradição de nacionais se justifica no fato de que um julgamento realizado por uma jurisdição estrangeira poderia ser injusto ou parcial (para não dizer tendencioso), o que evidentemente não se vislumbra na atuação do TPI, cuja jurisdição, por ser internacional, não se submete a nenhum país em específico, logo, não há que se falar em soberania, mas em mitigação desse princípio em prol da cooperação internacional.

Ademais, conforme o princípio da Complementaridade presente no TPI, o Tribunal tem jurisdição complementar à jurisdição penal interna, o que quer significar que a entrega de nacional somente dar-se-á caso o Estado demonstre ser incapaz ou não julgue o nacional pelo crime cometido”.[26]

Considerando-se que o cumprimento da ordem de entrega de indivíduo ao TPI, órgão cuja atuação não deve ser entendida como estrangeira, mas sim como internacional[27], sendo que o Brasil se comprometera a se submeter à jurisdição do TPI (primeiramente pelo art. 7º, do ADCT[28] e, agora também pelo art. 5º, §4º, da CF/88[29]), equivaleria ao julgamento daquele ser realizado perante uma Corte brasileira.

Na opinião do Professor Mazzuoli (2005, p. 68/69) neste ponto reside a diferença fundamental entre ambos os termos:

Portanto, não se trata de entregar alguém para outro sujeito de Direito Internacional Público, de categoria igual a do Estado-parte, também dotado de soberania na ordem internacional, mas sim a um organismo internacional de que fazem par te vários Estados. Daí entendermos que o ato de entrega é feito pelo Estado a um tribunal internacional de jurisdição permanente, diferentemente da extradição, que é feita por um Estado a outro, a pedido deste, em plano de absoluta igualdade, em relação a indivíduo neste último processado ou condenado e lá refugiado. A extradição envolve sempre dois Estados soberanos, sendo ato de cooperação entre ambos na repressão internacional de crimes, diferentemente do que o Estatuto de Roma chamou de entrega, onde a relação de cooperação se processa entre um Estado e o próprio Tribunal.

O jurista Gomes (2007) partilha da mesma opinião, para quem:

De tal modo, na entrega a relação que se forma é entre um Estado e um órgão internacional (desprovido de soberania). Já na extradição, a relação envolve dois Estados, ou seja, o indivíduo fica sujeito à soberania daquele que o solicita.

   A esse respeito Comparato (2010, p. 481/482) leciona:

Já no tocante a possibilidade de o Brasil concordar em submeter cidadão brasileiro que se encontre em nosso território à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, deve-se assinalar que o Estatuto estabelece, em seu art. 102, a distinção entre extradição e entrega (surrender). A extradição supõe uma relação de cooperação, em plano de absoluta igualdade, entre dois Estados em um processo criminal, enquanto a entrega refere-se à cooperação de um Estado com um órgão jurisdicional internacional. Neste último caso, as partes envolvidas na relação situam-se em planos jurídicos diferentes. Não se deve, a propósito, esquecer que a Constituição brasileira dispõe, no art. 7º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que “o Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional de direitos humanos”. Ora, sendo o Tribunal Penal Internacional, como é óbvio, um órgão do sistema internacional de direitos humanos, não se pode deixar de concluir que a entrega de cidadão brasileiro àquele tribunal refoge ao âmbito de aplicação do art. 5º, LI, da nossa Constituição.

            Portanto, a extradição se dá somente entre dois Estados soberanos (trata-se de uma relação de Estado para Estado), sendo ato de cooperação entre ambos na repressão internacional de delitos, no ato de entrega, ao revés, verifica-se a relação entre um Estado-parte e um organismo de direito internacional (onde a relação de cooperação se processa entre um Estado e o próprio Tribunal).

            Assim, manifesta é a distinção entre: submeter um nacional brasileiro a uma Corte dotada de jurisdição internacional, criada pelo aceite e esforço comum de vários Estados, da qual o Brasil se tornou signatário mediante a ratificação do tratado, o qual se obrigou fielmente a cumprir; e, a sujeição de brasileiro nato (esta sim vedada pela Constituição) a um tribunal estrangeiro, cuja jurisdição está afeta à soberania de um outro Estado, que não o brasileiro.

            Por tudo isso, caem por terra as doutrinas que apontam a inconstitucionalidade do Estatuto de Roma. Afinal – como ensina a hermenêutica constitucional –, todas as normas jurídicas, para serem reputadas válidas e eficazes, deverão estar de acordo com os preceitos constitucionais.[30]

            Destarte, inexistem incompatibilidades entre o instituto em voga (ordem de entrega de brasileiro nato ao TPI) e a Constituição Federal Brasileira (norma constitucional proibitiva da extradição de brasileiro nato). Nesta toada, mostra-se plenamente admissível a ordem de entrega de nacional ao Tribunal, sem que tal afronte o ordenamento constitucional brasileiro.

CONCLUSÃO

A jurisdição penal internacional trilhou um longo caminho até que viesse a lume o TPI.

Várias foram as tentativas engendradas nesse sentido até que houvesse o estabelecimento efetivo da primeira Corte de Justiça Penal Internacional permanente, independente e imparcial.

Em pouco mais de uma década de existência o TPI se tornou um importante mecanismo de garantia contra as violações de direitos humanos.

Ao TPI ainda resta muito a fazer, bem como – e sobretudo – inúmeras resistências a romper, conforme adiante esclarecido.

A primeira delas diz respeito à soberania dos Estados-membros. Aliás, essa é a principal razão para a recusa por parte dos Estados em ratificar ao Estatuto de Roma. De fato, reconhecer suas limitações, de modo a abrir mão de parte de sua soberania, é algo de sobremaneira comprometedor para um Estado soberano, o que tem feito com que muitos Estados não reconheçam o TPI (Os Estados Unidos, por exemplo, já declararam abertamente que não pretendem fazer parte do TPI).

No caso do Brasil, embora seja signatário do Tratado de Roma, muitos pontuam que a ratificação do referido Estatuto estaria a desrespeitar um dos fundamentos que alicerçam a Constituição Federal Brasileira, qual seja, a soberania nacional (art. 1º, inciso I, da CF/88[31]) quando, por exemplo, prevê a entrega de nacional do Estado-membro à jurisdição do TPI, ante à proibição absoluta da extradição de brasileiro nato expressa no texto constitucional (art. 5º, LI, da CF/88).

O respeitado doutrinador André Ramos Tavares salienta que essas incongruências são insanáveis, posto que não se pode mudar a Constituição Federal nesses aspectos, por conta das chamadas cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, da CF/88).

Por sua vez, uma parcela significativa da doutrina, formada por nomes de peso (Flávia Piovesan, Valério de Oliveira Mazzuoli e Luiz Flávio Gomes) defende que se trata de um conflito de normas (antinomia) apenas aparente, vez que os critérios para solucioná-lo são normas integrantes do ordenamento jurídico, pelos motivos delineados nos parágrafos seguintes.

Como com propriedade se posiciona Steiner (PRR-3, 2009):

Os dois sistemas - o nacional e o do TPI - não se misturam, não se confundem, não interferem um com o outro. Portanto, não vejo como possível alegar-se incompatibilidade entre sistemas que não se tocam, que são paralelos.

Em que pese a possível antinomia que pode surgir em um primeiro momento, uma análise hermenêutica pormenorizada do assunto conclui ser cediço que o conflito de normas é apenas aparente.

Chayes (1995 apud PIOVESAN, 2000) entende:

[...] que a soberania não pode mais consistir na liberdade dos Estados de atuarem independentemente e de forma isolada à luz do seu interesse específico e próprio. A soberania hoje consiste, sim, numa cooperação internacional em prol de finalidades comuns. Um novo conceito de soberania, diz o autor, aponta a existência de um Estado não isolado, mas membro da comunidade e do sistema internacional. Os Estados, conclui, expressam e realizam a sua soberania, participando da comunidade internacional, ou seja, participar do sistema internacional é sobretudo um ato de soberania por excelência. Prenuncia-se, desse modo, o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava os seus nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica decorrente da sua soberania. Nesse contexto, pode-se afirmar que uma das principais preocupações desse movimento de internacionalização dos direitos humanos é justamente convertê-los em tema de legítimo interesse da comunidade internacional.

Com relação à soberania, mostra-se acertada a afirmação do doutrinador Mazzuoli (2011, p. 973/974), para quem:

Não existe restrição ou diminuição da soberania para os países que já aderiram, ou aos que ainda irão aderir, ao Estatuto de Roma. Ao contrário: na medida em que um Estado ratifica uma convenção multilateral como esta, que visa trazer um bem estar que a sociedade internacional reivindica há anos, ele não está fazendo mais do que, efetivamente, praticando um ato de soberania, e o faz de acordo com a sua Constituição, que prevê a participação dos poderes Executivo e Legislativo (no caso brasileiro: CF, arts. 84, inc. VIII e 49, inc. I, respectivamente) no processo de celebração de tratados internacionais.

Neste sentido esse monitoramento realizado pelo TPI, mediante o consentimento prévio do Estado que a ele se submeteu por intermédio da ratificação, não configura uma intromissão indevida no exercício da soberania desse mesmo Estado soberano. Afinal, a jurisdição do TPI é complementar, se coaduna com a jurisdição doméstica, conforme amplamente enfatizado ao longo deste artigo.

É sob esse enfoque que deve ser compreendido o TPI. Consoante preceitua Piovesan (2000), “o Tribunal Internacional Penal surge como um aparato complementar à jurisdição penal nacional. O Estatuto de Roma reitera a idéia de que o Estado tem a responsabilidade primária, o dever jurídico de emprestar a sua jurisdição. No entanto, se isso não ocorrer, a responsabilidade subsidiária é da comunidade internacional,” acionável quando as instituições nacionais mostrarem-se falhas ou omissas na proteção dos direitos humanos.

A mesma Piovesan (2003, p.151) continua:

A jurisdição do Tribunal é adicional e complementar à do Estado, ficando condicionada à incapacidade ou à omissão do sistema judicial interno. O Estado tem o dever de exercer sua jurisdição penal contra os responsáveis por crimes internacionais, tendo a comunidade internacional a responsabilidade subsidiária. [...] A jurisdição do Tribunal Penal Internacional não substitui a jurisdição local, mas é a ela complementar e subsidiária.

 E, por fim, conclui (Ibid., p. 151/152) que:     

O reconhecimento da jurisdição do Tribunal Penal Internacional, em si mesmo, é ato de soberania do Estado brasileiro, não cabendo ao Estado, a posteriori, valer-se desta mesma soberania para afastar a jurisdição Internacional.

No mesmo sentido são as lições de Mazzuoli (2005, p. 55):

Sua jurisdição, obviamente, incidirá apenas em casos raros, quando as medidas internas dos países se mostrarem insuficientes ou omissas no que respeita ao processo e julgamento dos acusados, bem como quando desrespeitarem as legislações penal e processual internas.

Destarte, a jurisdição do Tribunal Penal Internacional terá caráter excepcional, sendo que somente será cabível a aplicação desse Estatuto quando o Estado se mostrar manifestamente falho, omisso, incapaz de responder às violações de direitos humanos.

Outrossim, uma violação aos direitos humanos não se trata apenas de uma afronta a direito fundamental tutelado na órbita dos limites territoriais de um determinado País, mas de toda a humanidade em conjunto, independentemente de estarem positivados ou não no ordenamento jurídico de uma determinada Nação. Nesta toada, a tutela dos direitos humanos não se restringe ao campo de atuação de um determinado Estado, por tratar de direito inerente aos seres humanos, cuida-se de matéria cuja competência recai sobre um âmbito global (campo de atuação de cada Estado competente para punir a violação perpetrada) e, subsidiariamente, o juízo internacional (TPI), sendo que a competência deste último somente será trazida à voga ante a falha, omissão ou incapacidade daquele de responder às violações de direitos humanos, por força do princípio da Complementaridade, sem que essa intromissão fira a soberania do Estado no qual se deu o desrespeito aos direitos humanos, quer do Estado cujo perpetrador seja nacional. Por isso, não há que se falar em incompatibilidades entre o quanto disposto no Estatuto de Roma e a Constituição Federal Brasileira, pelo contrário, ambas as normas se complementam na busca incessante pelo bem comum, qual seja, a proteção dos direitos humanos em escala planetária tendente a preservar a paz mundial.

Até porque o TPI é um tribunal de última instância, cuja atuação somente estará legitimada em caso de inação (omissão ou incapacidade) dos Estados. Assim, trata-se de situações excepcionais, nas quais o Estado não atuou porque não quis ou não pôde atuar a contento. Portanto, não há que se falar em perda da soberania, já que a competência primária para o exercício da jurisdição pertence ao Estado, apenas diante da falha ou omissão dele que será acionada a competência subsidiária do TPI às jurisdições nacionais.

Por derradeiro, a ratificação do Estatuto do Tribunal Penal Internacional pelo Brasil é absolutamente compatível e consonante com a ordem constitucional brasileira, “não havendo como argumentar que esse Tribunal seria uma intervenção indevida no exercício da soberania nacional”[32], vez que nele há a conjugação da ordem interna e da ordem internacional, à luz do princípio da prevalência dos direitos humanos, mediante providências tendentes a punir e retirar do convívio coletivo mundial, não apenas criminosos genocidas ou ditadores, mas também os responsáveis pela prática de crimes internacionais, em relação aos quais não se admite esquecimento.

REFERÊNCIAS

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Sobre a autora
Rosemary Gonçalves Martins

Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Nove de Julho – UNINOVE (2013). Especialista em Conflitos Internacionais e Globalização pela UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo (2019).

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