Em 24 de dezembro de 2002, quando, aliviados, pensávamos estar livres de toda a herança deixada pela era FHC, fomos surpreendidos com a publicação da Lei nº 10.628, que no seu art. 1º alterou o art. 84 do Código de Processo Penal.
Eis o inteiro teor do art. 1º da referida Lei:
"Art. 1º O art 84 do Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1984 – Código de Processo Penal – passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade.
§1º. A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece, ainda que o inquérito ou ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública;
§2º A ação de improbidade, de que trata a lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no §1º.
Têm-se, assim, instaurado o foro por prerrogativa de função para a ação de improbidade administrativa, o que constitui um duro golpe investido contra a sua eficácia.
Podemos iniciar relatando a inconstitucionalidade da Lei em análise, uma vez que o legislador ordinário, arvorando-se em Poder Constituinte, acrescentou competência originária no taxativo rol de competências de cada tribunal, o que somente poderia ser feito através de emenda constitucional.
Sabe-se que a competência por prerrogativa de função é restrita à esfera criminal, abrangendo crimes comuns e de responsabilidade. Ademais, constitui tradição do nosso ordenamento jurídico que a repartição de competência originária para processo e julgamento de crimes comuns e de responsabilidade é expressa pela Constituição Federal, de forma exaustiva, vedada qualquer interpretação extensiva.
Assim, no regime jurídico brasileiro, o sistema é de reserva exclusivamente constitucional para a criação de privilégio de foro. Neste sentido, Pontes de Miranda comentando a Carta Constitucional de 1967/69 aduziu que "não haverá outros foros privilegiados que os instituídos pela própria Constituição" [1].
No que concerne à Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), a doutrina majoritária nos dias atuais não hesita em afirmar que esta é desprovida de natureza penal. Neste sentido é o posicionamento de Celso Antônio Bandeira de Mello [2], Marino Pazzaglini Filho, Márcio Fernando Elias Rosa e Waldo Fazzio Júnior [3], Emerson Garcia [4]. O argumento que respalda tal posicionamento parte da própria Constituição Federal que se pronunciou quanto à independência da esfera cível e penal ao enumerar, no art. 37, §4º, algumas das sanções aplicadas no caso da improbidade administrativa, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
Ademais, conforme já ressaltamos em artigo publicado na revista Fórum Administrativo [5], sendo os tipos previstos nos artigos 9º, 10 e 11 da Lei nº 8.429/92 exemplificativos, não se ajustam às exigências do Direito penal, como, por exemplo, a obediência ao princípio da reserva legal.
A legalidade penal é uma garantia reconhecida na ordem constitucional brasileira desde o império. O silêncio quanto à natureza penal das condutas descritas na Lei de Improbidade Administrativa, impede que as mesmas sejam consideradas criminais, sob pena de violar-se a garantia constitucional dos indivíduos e da sociedade.
O legislador buscou, através da Lei nº 8.429/92, extrair conseqüências extra-penais ou cíveis lato sensu, mais precisamente, no âmbito do direito administrativo. Entender de natureza criminal as figuras da Lei de Improbidade equivaleria a desrespeitar o princípio da legalidade penal [6].
Ora, em conseqüência da natureza não penal da Lei de Improbidade, decorria a inexistência de foro por prerrogativa de função nas ações fundamentadas na referida Lei.
Com efeito, dentre as autoridades que possuem foro por prerrogativa de função, constitucionalmente estabelecidos, temos o Presidente da República (art.102, I, b), Deputados Federais e Senadores (art.53, §1º), Governadores dos Estados e do Distrito Federal (art.105, I, a), Juízes estaduais e do Distrito Federal e Territórios, bem como os membros do Ministério Público (art.96, III), os juízes federais (art.108, I, a), o Prefeito (art. 29, X), dentre outras.
Analisando-se os dispositivos constitucionais acima explicitados, depreende-se que as hipóteses de foro por prerrogativa de função se restringiam à esfera penal [7]. Conforme já analisamos, a Lei nº 8.429/92 não dispõe sobre crimes, determinando o art. 12 da lei, que as sanções ali contempladas se aplicam "independentemente das sanções penais, civis e administrativas, previstas na legislação específica". Desta forma, asseverava Juarez Freitas que,
no tocante à competência, ainda, tirante as previsões constitucionais expressas, não haverá prerrogativa de função, é dizer, a ação civil de improbidade deverá seguir, com peculiaridades, o rito ordinário, similar àquele da ação popular, devendo ser intentada em primeiro grau [8].
Para nosso estarrecimento, depois de firmado o entendimento quanto à natureza não penal da Lei de Improbidade, vem a Lei nº 10.628/02 e consagra o foro por prerrogativa de função para as ações de improbidade e o que é pior, o faz na seara do processo penal, até então estranha à Lei de Improbidade.
Resta-nos agora questionar quanto à eficácia da ação de improbidade com a introdução do foro privilegiado. O deslocamento das milhares de ações de improbidade existentes no pais que tramitam em primeira instância para os tribunais superiores, já sobrecarregados com o acúmulo de processos, contribuirá para a ausência de apuração e aplicação de sanções nas ações de improbidade administrativa.
Em artigo veiculado na Revista de Direito Administrativo [9], expressamos nossa crença na Lei nº 8.429/92, como instrumento eficaz no combate à improbidade administrativa. Ao contrário do Decreto-Lei nº 201/67, que trata dos crimes de Prefeito - cujo alguns tipos coincidem com hipótese de atos de improbidade – conhecido pela sua falta de eficácia ( pelo menos de eficácia no âmbito social), a Lei de Improbidade trouxe aos administradores públicos uma maior atenção no trato da coisa pública.
A atuação diligente dos promotores de justiça - acolhendo representações, apurando possíveis atos de improbidade administrativa e acionando administradores públicos ímprobos -, somada a disposição sem comprometimentos políticos dos Magistrados de 1º instância fez com que a grande elite político-econômica que domina o nosso país se sentisse incomodada, ou melhor, ameaçada. Apesar da argumentação favorável ao foro por prerrogativa de função na ação de improbidade girar em torno do nível hierárquico de algumas autoridades, a serem julgadas por magistrados menos graduados que os ministros da Excelsa Corte, concordamos com Emerson Garcia que afirma não existir qualquer inconveniente na manutenção dos atuais parâmetros de competência, acrescentando que o que se busca preservar no estabelecimento da competência originária ratione personae dos tribunais é, sobretudo, a imparcialidade do julgamento, evitando-se que uma alta autoridade da República exerça, maleficamente, a sua influência sobre o órgão julgador. Ocorre que a realidade desmente a suposta maior imparcialidade dos tribunais (Estaduais, Regionais Federais e Superiores), surpreendentemente ("surpreendentemente" para os mais ingênuos!) muito mais vulneráveis aos influxos políticos que um magistrado de primeira instância, cuja investidura se dá por intermédio de rigoroso concurso de provas e títulos (e não por indicação do Presidente da República ou pela malsinada regra do "quinto constitucional") e cuja judicatura se vê amparada pelas garantias previstas nos arts. 93 e 95 da Constituição Federal [10].
Pensamos que a situação se agrava ainda mais quando analisamos o §2º do art. 84 c/c com o seu §1º e observamos que o foro privilegiado na ação de improbidade administrativa permanece após o término do mandato. Ora, a justificativa invocada para argüição do foro privilegiado consiste na atribuição diferenciada exercida por certas autoridades. Com efeito, não se justifica a manutenção deste privilégio após o fim da situação que o sustentava, constituindo, ao nosso ver, afronta ao princípio da igualdade, desde quando não persiste a diferença geradora do tratamento desigual.
Tramita pelo Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade sob nº 2797-2, proposta pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CONAMP), argüindo a inconstitucionalidade do art. 1º da Lei nº 10.628/02, antes referido. Esperamos que os Doutos Ministros da Suprema Corte reconheçam o retrocesso que representa o referido Diploma Legal no combate à corrupção. O não acolhimento da flagrante inconstitucionalidade da Lei nº 10.628/02, contribuirá para abertura de um caminho para impunidade.
Vivemos na expectativa de encontrar uma Administração Pública proba, eficiente, comprometida unicamente com o interesse público, desprovida da busca inescrupulosa de ganhos privados baseados no tráfego de função pública. A importância da Ação de Improbidade nessa busca é inquestionável. Qualquer modificação legal que dificulte a apuração ou punição de atos de improbidade representa um retrocesso injustificável em um Estado Democrático de Direito, ou melhor, justificável apenas para uma elite cujo discurso em defesa da supremacia do interesse público não passa de palavras vazias que escondem objetivos egoísticos.
Notas
01. Miranda, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda 1 de 1969. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 239, tomo V.
02. Bandeira de Mello, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000, p.135.
03. Pazzaglini Filho, Marino, Elias Rosa, Marcio Fernando e Fazzio Júnior, Waldo. Improbidade Administrativa: Aspectos Jurídicos da Defesa do Patrimônio Público. São Paulo: Atlas, 1998, p. 224.
04. Garcia, Emerson. Improbidade Administrativa. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002, p.240, primeira parte.
05. Tourinho, Rita Andréa Rehem Almeida. A Improbidade Administrativa e o Artigo 339 do Código Penal.Fórum Administrativo: Direito Público, Belo Horizonte: Forum, n. 8, p. 1.043, out. 2001.
06. Pazzaglini Filho, Marino, Rosa, Márcio Fernando Elias, Fazzio Júnior, Waldo. Improbidade Administrativa: Aspectos Jurídicos da Defesa do Patrimônio Público. São Paulo: Atlas, 1998. p. 224.
07. No caso do Prefeito, apesar do art. 29, X não restringir expressamente ao âmbito penal o seu julgamento pelo Tribunal de Justiça, este tem sido o entendimento dado ao dispositivo, em virtude da interpretação sistemática feita a partir dos demais dispositivos constitucionais que tratam de foro por prerrogativa de função.
08. Freitas, Juarez. Do Princípio da Probidade Administrativa e de sua Máxima Efetivação.Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Renovar e Fundação Getúlio Vargas, n. 204, p. 79, abr./jun. 1996.
09. Tourinho, Rita Andréa Rehem Almeida. A Eficácia Social da Atuação do Ministério Público no Combate à Improbidade Administrativa. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Renovar e Fundação Getúlio Vargas, n. 227, jan/mar, 2002, p. 253-264.
10. Garcia, Emerson, Alves, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2002. p. 572.