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Controle difuso de constitucionalidade das leis e espaço público no Brasil

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Agenda 01/04/2003 às 00:00

Resumo: o presente ensaio tem a intenção de resgatar a nova conformação da relação público-privado no Estado Democrático de Direito a partir da conformação do sistema de controle de constitucionalidade. Questiona a atual tendência à concentração presente nesse sistema, propugnando pela valorização do já consagrado sistema difuso como exigência do novo paradigma constitucional e de uma sociedade cada vez mais complexa e desagregadora, mas que, paradoxalmente, luta por mais participação.

Sumário. Capítulo 1. Colocação do Problema — a concentração do controle de constitucionalidade e o espaço público. Capítulo 2. A Relação Público-Privado no Estado Democrático de Direito. 2.1. Do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito. 2.2. Autonomias Pública e Privada no Estado Democrático de Direito. Capítulo 3. A Construção de um Espaço Público Plural. 3.1. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.


Capítulo 1. Colocação do Problema — a concentração do controle de constitucionalidade e o espaço público

O sistema de controle difuso de constitucionalidade das leis e atos normativos vem sofrendo sucessivos ataques no Brasil nos últimos tempos.

Basta vermos, por exemplo, a forma como foram regulamentadas a Ação Direta de Inconstitucionalidade e a Ação Declaratória de Constitucionalidade (esta criada com a Emenda Constitucional n. 3/93), através da Lei 9.868/99, além da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, regulamentada pela 9.882/99.

De início ressalte-se que a ampliação de competências dada ao Supremo Tribunal Federal através de lei ordinária é no mínimo questionável. Já nos ensinava o Professor Afonso Arinos: "lei que amplia jurisdição de tribunal é inconstitucional" (Melo Franco, 1958, p. 73, grifos nossos).

O que faz a lei 9.868/99 senão alargar as competências do STF? Desde uma perspectiva mais "dogmática", cremos que apenas a Constituição poderia dispor sobre os efeitos da Ação Direta de Inconstitucionalidade, tal qual ocorreu nas Constituições portuguesa e austríaca [1].

Quanto ao previsto nos artigos 27 e 28, parágrafo único, como pode o Supremo Tribunal Federal definir a partir de quando a decisão começa a produzir efeitos? Como pode o órgão de cúpula do Judiciário possuir fundamentos para dizer que há "razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social" que lhe obriguem a "restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado"?

O Relatório da Comissão que elaborou o anteprojeto defende que através das "informações" recebidas pelo Relator, o Supremo Tribunal Federal terá condições para tanto.

Certamente as várias situações concretas que estejam ocorrendo (ou venham a ocorrer) em virtude da lei questionada jamais poderão ser sopesadas pelo STF para que este possa "restringir os efeitos da decisão"

E mais, pelo parágrafo único do art. 28, a decisão do Supremo Tribunal Federal terá efeito vinculante, não apenas para as decisões em sede de ADC, tal qual prevê a Constituição reformada, mas também para as decisões em sede de ADIN.

Este dispositivo (de clara influência alemã) vem dificultar quaisquer tentativas de construção de uma sociedade mais aberta de intérpretes da Constituição, pelo menos no que toca ao âmbito operativo amplo destas interpretações via Judiciário e à defesa de direitos lesados ou ameaçados: ou porque a lei declarada constitucional atinge factualmente direitos subjetivos de certos cidadãos ou porque, antes de vir a ser declarada inconstitucional, a lei criou direitos (ao cidadão que de boa-fé agiu em conformidade com ela) que somente o juiz ordinário poderia avaliar, ou ainda, porque o cidadão se vê ainda prejudicado por uma lei porque a sentença que a declarou inconstitucional não alcança o período no qual a mesma porventura tenha causado lesão.

Nesse sentido assevera o Prof. Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira a respeito de tais dispositivos:

"... é também preciso reconhecer a inconstitucionalidade da lei nº 9.868/99, que pretende descaracterizar o controle difuso, (...) e por intentar transformar as decisões em ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal num meio espúrio de suspensão da ordem constitucional, ao pretender atribuir a esse Tribunal o poder de restringir o conteúdo e de fixar os efeitos temporais de suas decisões, flagrantemente invertendo a hierarquia das fontes ao poder determinar, à cidadania, à Administração Pública e aos demais juizes e tribunais, a obediência a leis e atos normativos declarados inconstitucionais pelo próprio Tribunal, com base em ‘razões (?) de segurança jurídica ou de excepcional interesse social’" (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, pp. 214-215, grifos nossos).

Quanto à lei 9.882/99, observa-se que não há uma indicação do que seja "preceito fundamental", afinal, qual preceito da Constituição não é fundamental? Ainda que se diga que a ação visa proteger os Direitos Fundamentais continua de pé a questão: há normas "mais constitucionais" que outras?

Segundo o art. 10 dessa lei, o Supremo Tribunal Federal, ao decidir, irá fixar "as condições" e o "modo de interpretação e aplicação" do preceito fundamental e dessa decisão (que possui eficácia erga omnes e vinculante) serão comunicadas as "autoridades ou os órgãos responsáveis pela prática dos atos questionados".

É sempre muito interessante observarmos a crença presente tanto nesta lei como na 9.868/99 de que o texto (decisão) pode limitar ou estabelecer quadros interpretativos a outro texto (lei, preceito fundamental ou outro ato). Será que o Supremo Tribunal Federal conseguirá completar satisfatoriamente uma tal tarefa?

Pensamos que não, seria preciso uma razão sobre-humana para poder imaginar as interpretações possíveis e proceder de forma democrática e honesta à fixação daquela mais adequada. Além disso, já dissemos que ele não teria condições de avaliar todas as situações subjetivas relacionadas ao ato questionado [2].

O que se infere do exposto é uma explícita tentativa de transformar o Supremo Tribunal Federal em uma Corte Constitucional, tal qual as Cortes européias.

A teorização dessa demanda possui entre o mais importante de seus defensores o Prof. Gilmar F. Mendes. De fato, no seu livro "Jurisdição Constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e Alemanha", o Prof. Gilmar procura fazer um estudo comparado do controle abstrato de normas perante o Tribunal Constitucional alemão e o Supremo Tribunal Federal, buscando apontar diferenças e semelhanças entre as duas formas de controle.

Ao final da obra encontram-se algumas "teses" que resumem bem o objetivo do texto:

- "não se deve olvidar que a Constituição de 1988 contribuiu para uma relativa concentração das questões constitucionais no Supremo Tribunal Federal, mediante a ampliação do direito de propositura e a limitação do recurso extraordinário às questões constitucionais" (p. 304).

- "A gradual evolução [?] de um sistema de controle incidente para um modelo no qual a função principal do controle está concentrado no Supremo Tribunal Federal, reforça o caráter do Tribunal, como autêntica Corte Constitucional, uma vez que ele não apenas detém o monopólio da censura no processo de controle abstrato de atos normativos estaduais e federais em face da Constituição Federal, como tem a última palavra na decisão das questões constitucionais submetidas ao controle incidental" (p. 304, grifos nossos).

Será, contudo, que todas estas inovações de que se fez menção se compatibilizam com a tradição do controle de constitucionalidade no Brasil? Será que a centralização (tão festejada) é, no caso brasileiro, uma "evolução", ou, mais diretamente, seria ela constitucional?

Percebemos, pois, atualmente, uma grave e discutível tentativa de esvaziamento do papel do controle difuso de constitucionalidade no Brasil em favor de formas centralizadoras de controle, tudo em nome de expressões como "segurança jurídica", "celeridade processual" ou "uniformização (harmonia) da jurisprudência".

"O controle jurisdicional de constitucionalidade não pode ser tratado como uma questão de Estado. É no contexto de uma esfera pública política de cidadãos, os quais, no exercício de seus direitos fundamentais, aprofundam o seu sentimento de Constituição e de Democracia, que a jurisdição constitucional deve ser exercida" (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 164).

Logo, aquela via centralizadora proposta não se coaduna com os princípios do Estado Democrático de Direito consagrados constitucionalmente, por exemplo (e este é o tema deste trabalho) com a percepção que ele possui do que deve ser a relação público-privado, isto é, que o Estado Democrático de Direito propõe a formação democrática das decisões vinculantes do Estado a partir do estabelecimento de condições equânimes de formação da vontade e da opinião públicas.

Segundo esse novo paradigma, o Estado não compreende todo o público (que também se operacionaliza através, e.g., de organizações não-governamentais) e, por outro lado, o privado não quer dizer egoísmo, mas respeito à igualdade (e/ou diferença) e liberdade do outro — conforme teremos oportunidade de tratar mais à frente.

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A incompatibilidade entre o paradigma do Estado Democrático de Direito e a tendência acima exposta é patente. Considerando que aquele reclama a ampliação dos foros de discussão e também dos centros decisórios de poder, essa, por sua vez, no que diz respeito ao controle de constitucionalidade, aponta em direção oposta à medida que propõe centralização da argüição de constitucionalidade ou inconstitucionalidade em um só órgão do Judiciário, que deve não apenas decidir abstratamente — logo, sem considerar as situações subjetivas envolvidas — mas também de forma vinculativa.

No intento de mostrar tal incompatibilidade, propomos estudar o espaço público da maneira como é entendido no Estado Democrático de Direito e a importância do sistema de controle difuso de constitucionalidade para a construção desse espaço.

Procuraremos repassar (rapidamente) alguns pontos sobre a evolução dos paradigmas constitucionais até chegarmos ao Estado Democrático de Direito, mostrando como evoluiu a relação público-privado. Dentro do atual paradigma, mostraremos, com Habermas principalmente, a eqüiprimordialidade do "público" e do "privado". Apontaremos como o controle difuso no Brasil é — ou pode ser — um mecanismo eficaz à construção de um espaço público democrático e plural; ao contrário de concepções que visam aproximar o Supremo Tribunal Federal da Corte Constitucional alemã (esta objeto de críticas no próprio Estado germânico (e.g., MAUS, 2000 e CATTONI DE OLIVEIRA, 2002, p. 129 e segs.).

Assim esperamos aplicar a esta decisão o que temos dito, mostrando como a concentração do controle de constitucionalidade pode colocar em risco — e até, no caso, obstruir — foros de formação discursiva de decisão judicial, frustrando ademais pretensões a direito e o próprio contraditório.


Capítulo 2. A Relação Público-Privado no Estado Democrático de Direito

Para entendermos a conformação da relação entre o "público" e o "privado" no atual paradigma (sobre o conceito de paradigma, CARVALHO NETTO, 2001, 15) vamos nos referir rapidamente a como essa relação foi vista nos dois paradigmas constitucionais anteriores.

Antes, porém, convém, desde já, delinearmos uma idéia do que temos entendido por espaços público e privado. Nesse sentido, tomamos a Habermas, quando este define como "públicos" aqueles eventos que são acessíveis a qualquer um (HABERMAS, 1984, p. 14); nessa linha, o espaço privado diz respeito ao sujeito em relação aos seus direitos, como destinatário da norma. Voltaremos a isso mais à frente.

2.1. Do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito

Num primeiro momento do Estado Moderno (Estado Liberal de Direito), apenas tinham acesso ao poder público os que participavam do Estado.

O "privado" era sinônimo de exclusão. Aliás, como bem mostra Habermas, em latim privatus dá a idéia de "estar excluído", "privado dos aparelhos do Estado" (HABERMAS, 1984, pp. 30-31).

Isto se deu pelo próprio pano-de-fundo subjacente à noção que os liberais possuíam de Estado. As Revoluções burguesas do século XVIII colocam em xeque a estrutura absolutista dos Estados Nacionais, não apenas ao derrubar efetivamente seus déspotas (ainda que esclarecidos), mas também — e quiçá com maior força — ao pregar princípios como liberdade, igualdade e propriedade, e conseqüentemente, laissez-faire, laissez-passer.

O Estado que então nascia pretendia dar à burguesia que o controlava uma liberdade quase total para agir segundo seus próprios interesses. Assim, o Estado (notadamente o Executivo) deveria se abster a cumprir apenas as funções públicas essenciais (e.g., poder de polícia). Sem embargo, apesar de pregar a liberdade e a igualdade e de defender a democracia, apenas podiam votar aqueles que preenchessem requisitos relativos à fortuna pessoal, isto é, o Parlamento, provavelmente um dos maiores símbolos institucionais dessa nova fase, não apenas era formado quase que somente por grandes burgueses, mas também estes eram escolhidos praticamente apenas por seus pares.

Numa tal conjuntura, decorreu logicamente que as leis, bem como toda a estrutura estatal estavam a serviço dessa nova elite; o grande campo "privado" significava não apenas liberdade de ação mas, de fato, como observamos com Jürgen Habermas (supra), significava exclusão de participação política e de quaisquer benefícios públicos. "O Direito é a limitação da liberdade de cada um à condição da sua consonância com a liberdade de todos, enquanto esta é possível segundo uma lei universal" (KANT, Immnanuel. A Paz Perpétua e outros Opúsculos, p. 74, apud, CATTONI DE OLIVEIRA, 2002, p. 58).

"Público" e "privado", estavam bem delimitados, pois, no Estado Liberal. O Direito Público garantia que o Estado, através das leis do Parlamento burguês, não retornasse ao Absolutismo. O Direito Privado, por seu turno, possuía aquelas verdades racionalmente dadas, positivadas com o intuito inicial de "codificá-las", isto é, reuni-las em um documento legal que, além de completo, poderia organizar toda a atividade dos indivíduos em suas interrelações (privadas) e protegidos da ingerência estatal (as leis possuíam esse sentido de apenas fornecer os limites mínimos da liberdade de cada um e limites "máximos" à atuação do Estado). Ou, como se expressa o Prof. Menelick, nessa época há uma separação bem nítida entre a sociedade civil (esfera privada) e a sociedade política (esfera pública). "A sociedade civil é o terreno dos Direitos naturais, onde todos, por nascimento, a integram, onde todos são livres, iguais e proprietários. No entanto, nem todos são membros da sociedade política. (...) O privado é visto como egoísmo e o público como estatal" (CARVALHO NETTO, 2001, p. 16).

Com a crise desse modelo, provocada principalmente por distorções internas às suas próprias premissas, reclama-se para o Estado que deixe seu papel abstencionista e passe a agir com o intuito de efetivar materialmente aqueles direitos: liberdade, igualdade e mesmo propriedade.

As novas Constituições que surgem sob este novo paradigma possuem, além do tradicional elenco de direitos individuais, uma outra relação de direitos a que se convencionou chamar de "sociais", que, como dissemos, não se constituíam a rigor em novos direitos, mas na releitura que se fez dos "anteriores".

Estas Constituições são documentos extensos, "programáticos" e elaboradas por sujeitos que possuíam consciência de que o mero elenco de direitos não possuía o condão de fazer com que os mesmos fossem observados. Por isso criam-se mecanismos processuais de reivindicação cidadã dos mesmos e de proteção à Constituição (à parte o caso americano, é a partir da Constituição de Weimar que surge/desenvolve o controle de constitucionalidade).

Para tentar cumprir todas as obrigações sociais e econômicas assumidas na Constituição, o Estado passa a intervir nas mais diversas áreas da sociedade (saúde, educação, transportes, economia, etc.) não apenas disciplinando exaustivamente cada uma dessas áreas, mas participando diretamente através de empresas ou fundações criadas e mantidas por ele.

A relação entre o "público" e o "privado" é redesenhada. A esfera pública é ampliada pois que o Estado (que abarca toda o público), também aumentou suas funções; enquanto que à privada, agora reduzida, concentra-se no egoísmo de cada indivíduo da sociedade de massas. Há uma publicização de institutos de Direito Privado (por exemplo, no que toca à função social da propriedade, ou às relações trabalhistas); ao mesmo tempo, não se pode perder de vista que se desenvolve nessa época a noção de que todo direito é público, pois feito por um órgão público de representação popular (o Parlamento). Logo, de uma distinção ontológica, parte-se para uma distinção didática. De fato,

"os conflitos, até então contidos na esfera privada, estouram agora na esfera pública; necessidades grupais, que não podem esperar serem satisfeitas por um mercado auto-regulativo, tendem a serem reguladas pelo Estado; a esfera pública que, agora, precisa mediatizar essas exigências, torna-se campo de concorrência de interesses nas formas mais brutalizadas da discussão violenta" (HABERMAS, 1984, p. 58).

O Estado Social não consegue cumprir, contudo, aquilo que havia sido sua grande promessa, "o pleno acesso à cidadania", na qual apostaram os maiores publicitas do século XX. Foi com o objetivo de formar indivíduos que pudessem agir politicamente de forma plena (já que agora "todos" podiam votar), que pudessem definir seu destino comum; que se outorgou ao Estado a missão de materializar os antigos direitos individuais, isto é, na crença de que, a partir do momento em que se concedesse saúde, educação, trabalho, lazer, (etc.) aos indivíduos, gerar-se-ia, logicamente, cidadania.

O que se viu, ao contrário, foi uma burocratização do Estado a tal ponto que em muitos lugares o tornou inoperante e simplesmente voltado para si mesmo. Doutro lado, os indivíduos se tornaram clientes de um Estado Paternalista.

A proposta do Estado Democrático de Direito parte de pressupostos bem distintos dos que o sucederam. Defende-se que o reconhecimento daqueles direitos individuais representou um avanço para a época; que a busca por sua materialização é importante; mas percebe que, se o mero reconhecimento formal não é suficiente para garantir a autonomia privada dos cidadãos, sua materialização pura e simplesmente em direitos "sociais" não garante a construção de uma autonomia pública plena.

Cidadania não é algo dado e nem conseguida alimentando-se a população; antes, ela é um processo (de participação política) e, tal qual a democracia, um aprendizado.

No Estado Democrático de Direito, pois, a distinção entre "público" e "privado" não é absoluta. Ocorre que, com a crise do Estado Assistencialista, organismos da sociedade civil passam a (cada vez mais) representar o interesse público não apenas a favor do cidadão, mas, ato contínuo, contra o Estado.

Nesse sentido bem observa Evelina Davigno — ainda que sob outros pressupostos — que a nova configuração da "cidadania" possuiria duas dimensões: a emergência de movimentos sociais (e sua luta pelo reconhecimento tanto da igualdade quanto da diferença) e a ênfase crescente na construção da democracia. "A nova noção de cidadania expressa o estatuto teórico e político que assumiu a questão da democracia em todo o mundo, especialmente a partir da crise do socialismo real" (DAVIGNO,1995, p. 104).

A autora possui o mérito de mostrar que a cidadania (autonomia pública) é algo construído historicamente, por outro lado, como exemplo dessa nova atuação cidadã, aponta o funcionamento dos Conselhos Populares como espaços (públicos) onde o conflito, ao invés de ser tido como algo ruim, ao contrário, é visto como necessário, legítimo e irredutível, onde o Direito está sob constante reinterpretação, devido ao debate sempre e aberto (DAVIGNO, 1995, pp. 114-115). De fato, em sociedades hiper-complexas como a nossa, a possibilidade do conflito é algo imanente a partir do momento em que os sujeitos não apenas não são mônadas, mas, necessariamente, entabulam relações intersubjetivas a todo tempo, o que gera, potencialmente, a possibilidade de estranhamento. Esse risco (DE GIORGI, 1998) deve de ser assumido pelos cidadãos e não simplesmente desconhecido, o que agravaria uma solução satisfatória (solução esta sempre precária, isto é, circunscrita a um tempo e lugar específicos).

Além do desenvolvimento de associações na defesa dos cidadãos, outra característica do novo paradigma é que aquelas agem também na defesa dos novos direitos que vêm surgindo nos últimos tempos; direitos sem um titular específico, que transcendem o âmbito individual e, ao mesmo tempo, não são simplesmente "sociais" ou "coletivos". São os interesses difusos que ainda causam perplexidade a boa parte da doutrina, e.g., quanto à extensão de decisões judiciais que versam sobre os mesmos.

No âmbito privado, este deixa de ser o reduto do egoísmo, pois, as relações privadas passam cada vez mais a sofrer a ingerência pública. Assim, agora "o público não mais pode ser visto como estatal ou exclusivamente como estatal e o privado não mais pode ser visto como egoísmo" (CARVALHO NETTO, 2001, p. 18).

É importante salientarmos que, desde o atual paradigma constitucional, não é mais possível concebermos um modelo de sociedade centrada no Estado, como o fazem tanto autores republicanos quanto liberais (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000, p. 49 e segs). Tal posicionamento é fundamental se queremos compreender a relação público-privado, não mais como oposição Estado-Sociedade (ou Estado-indivíduo), mas como tensão e co-originalidade das autonomias pública e privada.

Enquanto os republicanos reclamam as virtudes cívicas dos cidadãos que, politizados, chegariam ao nível de se apropriarem das agências estatais, os liberais, ao contrário, não pensam no fim da oposição entre Estado e indivíduo, mas tão só buscam um equilíbrio no qual a Constituição, funcionando como medium, controle o primeiro para assegurar a autonomia privada (e egoísta) do segundo (HABERMAS, 1995, p. 116); interferindo, dessa forma, o mínimo possível no funcionamento ótimo do mercado.

Da perspectiva da Teoria do Discurso o conteúdo normativo surge não de um pretenso "substrato ético" de dada comunidade (como defendem os republicanos), nem de "direitos humanos universais" (segundo os liberais), mas da estrutura das ações comunicativas. Ela valoriza a "institucionalização dos procedimentos e das condições comunicativas", ou seja, "uma soberania popular procedimentalizada e um sistema político ligado às redes periféricas da esfera pública política andam de mãos dadas com a imagem de uma sociedade descentrada"( HABERMAS, 1995, p. 117 grifos nossos).

Habermas observa muito bem a necessidade crescente de busca pelo consenso nas atuais sociedades, em que seus membros não podem mais resolver isoladamente seus problemas e anseios, mas, ao contrário, necessitam do "outro", isto é, as formas de vida atuais formam-se intersubjetivamente.

A referida relação que se dá entre os sujeitos é possibilitada pela comunicação, através da qual os mesmos suscitam pretensões de validade suscetíveis à crítica. Ademais, é através dela que "los actores, en el papel de hablantes y oyentes, tratan de negociar interpretaciones comunes de la situación y de sintonizar sus respectivos planes de acción a través de procesos de entendimiento, es decir, por vía de una persecución sin reservas de fines ilocucionarios" (HABERMAS,1998, pp. 79-80). Segundo o autor, os sujeitos envolvidos nessa interação têm assumir a posição performativa de alguém que quer se entender sobre "algo no mundo", para que a comunicação possa liberar sua "energia de vínculo". No epílogo da citada obra, ele completa:

"el derecho sólo puede mantenerse como legítimo si los ciudadanos salen de su papel de sujetos jurídico-privados y adoptan la perspectiva de participantes en procesos de entendimiento acerca de las reglas de convivência" (p. 660).

Percebe-se que aquela separação que isolava indivíduo e Estado não faz mais sentido a partir do momento em que este último, para se legitimar, deve agir em conformidade com os consensos (ou compromissos) formados intersubjetivamente, seja no âmbito da Casa Legislativa, seja em qualquer outro foro (sem qualquer relação de hierarquia entre eles).

Velasco Arroyo na introdução à edição espanhola do livro "A Inclusão do Outro" de Habermas, aponta que, segundo este, os pressupostos da democracia são gerados fora do Estado e as instituições estatais funcionam apenas como canais desses. De fato,

"La gésenis de la formación de la voluntad política se encuentra en los procesos no institucionalizados, en las tramas asociativas multiformes (partidos políticos, sindicatos, iglesias, foros de discusión, asociaciones de vecinos, organizaciones no gubernamentales, etc.) que conforman la sociedad civil" (VELASCO ARROYO, 1999, p. 17).

Os Tribunais, por outro lado, devem não apenas estar sensíveis a isso, mas também devem se posicionar (se auto-reconhecer) como loci próprios para que aqueles debates possam se dar de forma discursiva, onde a prevalência do melhor argumento seja garantida procedimentalmente pelo contraditório e pela neutralidade do juiz — que não é mais entendida como afastamento visando a uma pretensa objetividade lógica, mas, ao contrário, como uma garantia de que o magistrado, para tomar sua decisão, deve se colocar no lugar de cada parte, levando a sério as pretensões levantadas por cada uma. Esclareça-se, contudo, que o que as normas de Direito Processual devem fazer não é garantir a argumentação como tal, mas criar o ambiente que a possibilite ocorrer de forma livre (HABERMAS, 1998, p. 307).

O processo deve garantir não apenas a possibilidade do contraditório, mas que, efetivamente, as partes participem da formação do provimento jurisdicional; de forma que, caso isso não ocorra em um processo específico de forma satisfatória, o mesmo seja tido como nulo. Nesse sentido o Professor Aroldo Plínio, "há processo sempre onde houver o procedimento realizado em contraditório entre os interessados, e a essência deste está na ‘simétrica paridade’ da participação, nos atos que preparam o provimento, daqueles que nele são interessados porque, como seus destinatários, sofrerão seus efeitos" (GONÇALVES, 1992, p. 115). Como um processo que é, também o sistema de controle de constitucionalidade deve garantir "a participação ou a representação, nos processos ordinários cíveis, penais e nos processos especiais de garantia de direitos constitucionais e de controle jurisdicional de constitucionalidade, dos possíveis afetados por cada decisão, através de uma interpretação construtiva que compreenda o próprio processo jurisdicional como garantia das condições para o exercício da autonomia jurídica dos cidadãos". (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002, p. 155).

Para que o espaço público tenha de fato condições de produzir consensos (ou ao menos acordos racionais) abrangentes, inclusivos, todos os mais variados argumentos devem ter tido a oportunidade de terem sido postos em discussão, para que possa prevalecer o melhor (e todos os afetados pela decisão do Estado devem ter tido oportunidade de se manifestar). Logo, não deve haver limitações quanto aos grupos que devem participar [3] — o que não significa que se possa incluir todos, pois, toda inclusão implica sempre exclusão, contudo, mesmo aqui a democracia fica assegurada na medida em que os excluídos de hoje terão oportunidade de se manifestarem futuramente, isto é, o consenso não é definitivo.

De outro lado, é incompatível com o Estado Democrático de Direito a limitação quanto aos foros de discussão, por implicar diretamente na desconsideração das pretensões daqueles que deles participaram. Referimo-nos em ambos os casos, especificamente, a decisões como a que o Supremo Tribunal Federal proferiu ao decidir pedido de liminar na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 4, em que sua decisão implicou a desconstituição de decisões judiciais já tomadas e a suspensão dos processos que, no caso, estavam decidindo incidentalmente a inconstitucionalidade de determinada lei.

2.2. Autonomias Pública e Privada no Estado Democrático de Direito

Antes de entrarmos na questão específica do estudo do controle de constitucionalidade no Brasil, vamos mostrar como, no atual paradigma se relacionam o público e o privado de que já temos feito referência. Falávamos da Teoria do Discurso de Habermas e como este valoriza os procedimentos que visam ao entendimento intersubjetivo.

Contudo, falta-nos definir como se pode dar a relação entre uma reconhecida autonomia privada dos indivíduos e um Direito que lhes é imposto coercitivamente, isto é, a questão mesma da legitimidade deste Direito; a partir disso poderemos visualizar o sentido co-original entre as autonomias pública e privada.

Com o recurso do conceito de Ação Comunicativa mostramos como pressupostos contrafáticos dos atores sociais ganham relevância para a manutenção da integração social, pois, numa sociedade pós-tradicional (em que não há mais referenciais absolutos), a ação comunicativa fica livre de amarras, podendo tematizar sobre qualquer ponto. Sem embargo, ao mesmo tempo pode se desenvolver no seio desta comunidade um outro tipo de ação orientada não à busca intersubjetiva de entendimento, mas ao êxito individual.

É a ação estratégica, que parte do da linguagem desde uma racionalidade instrumental, onde um — ou ambos — dos falantes se vale dos pressupostos contrafáticos da comunicação assumidos pelo outro; trata-se do uso pernicioso, parasitário da comunicação, que apenas é possível justamente pela crença generalizada na própria linguagem como dimensão que visa ao entendimento.

Como uma comunidade como essa, que diferencia as ações comunicativa e estratégica, e em que não se pode confiar nas certezas do Mundo da Vida (haja vista que há várias certezas, muitas vezes contrárias), pode se manter unida? O que faz com que cada membro reconheça o outro como seu igual e respeite sua liberdade? O que faz dela uma comunidade e não um aglomerado de pessoas? Todas estas questões são pressupostos para o entendimento do que sejam os espaços público e o privado.

A saída encontrada por Habermas (desde uma perspectiva de Estado Democrático de Direito) está no Direito Positivo, um sistema que seja tal que suas normas possuam coerção fática e, ao mesmo tempo, numa relação de tensão, seja tido como legítimo pelos destinatários das mesmas (HABERMAS,1998, p. 89).

Habermas parte da concepção de Direito Liberal desde Hobbes e Kant. Este último explica a tensão acima exposta em termos de que a coerção estatal do Direito (Faticidade) pode ser exercida desde que para "impedir um impedimento à liberdade" (Validade) (HABERMAS,1998, p. 91) [4], ou seja, a partir do momento em que os indivíduos não podem mais fazer valer suas pretensões diretamente contra o seu próximo, mas, apenas indiretamente, já que o Estado toma para si esta função (o que confere um — novo — direito ao indivíduo: o de requerer do Estado a prestação jurisdicional), ao mesmo tempo, porém, os indivíduos estão indistintamente garantidos contra a ingerência estatal em sua liberdade e propriedade (direitos subjetivos).

Segundo Kant, o Direito, diferentemente da Moral, não dependeria da convicção íntima do sujeito que age em conformidade com a norma. Contudo, objeta Habermas, a legitimidade do Direito não pode recorrer só à legalidade, logo, ou as liberdades subjetivas (que conferem ao sujeito um campo no qual pode afirmar sua vontade) ligam-se novamente a um Direito Suprapositivo, ou precisarão ser completadas por direitos doutro tipo, que se dirijam ao exercício próprio da autonomia (pública) (HABERMAS,1998, p. 95). Este é um ponto determinante da relação entre as autonomias pública e privada (e, logo, das esferas pública e privada).

O Direito Positivo apenas pode impor suas normas e, ao mesmo tempo, ser legítimo, se "los destinatarios de esas normas jurídicas puedan a la vez entenderse en su totalidad como autores racionales de esas normas" (HABERMAS,1998, p. 96) [5].

Este paradoxo, a que já fizemos referência — do Direito que cria a si mesmo — possui um outro aspecto: é que, após toda refutação de fundamentos metafísicos ao Direito e com a contribuição da dogmática tradicional, o sistema jurídico restou circunscrito à "soberania popular e "aos "direitos do homem". Enquanto o primeiro faz referência à autonomia pública dos cidadãos (intimamente ligado, pois, ao processo de fazer leis), o segundo abrange os direitos civis, o Direito Privado, enfim, o grande espectro no qual o indivíduo, livre, pode agir, determinado tão só pelas normas que sobre ele incidem (autonomia privada).

A relação entre ambas nos vai fornecer os contornos da relação entre o "público" e o "privado": os direitos do homem, o campo de sua liberdade subjetiva de ação, não estabelecem uma prévia vinculação ao legislador, como se a autonomia privada se sobrepusesse à pública (tal qual vemos em Kant); por outro lado, aqueles não são algo livremente dado pelo Legislativo, como se este lhes pudesse atribuir qualquer conteúdo (como em Rosseau), de forma que a autonomia pública determinasse a privada (HABERMAS,1998, pp. 166-169).

Ao contrário, ambas autonomias se co-originam, a partir do princípio da auto-legislação de que falamos supra. Deste modo Habermas pode enunciar seu Princípio do Discurso:"Válidas son aquellas normas (y sólo aquellas normas) a las que todos los que puedan verse afectados por ellas pudiesen prestar su asentimiento como participantes en discursos racionales" (HABERMAS,1998, p. 172).

Em termos discursivos teremos, pois, como autonomia privada as liberdades subjetivas protegidas pelo Direito Positivo; ao mesmo tempo, a autonomia pública se configura na liberdade comunicativa dos cidadãos. Na esfera privada, o sujeito pode agir desonerado das obrigações — ilocucionárias — próprias da esfera pública (nesse sentido, uma liberdade negativa), não importando se suas razões poderiam ou não ser aceitas discursivamente por outrem, já que ele age na busca de seu próprio êxito. Desde uma perspectiva pública, ao contrário, os atores sociais fazem uso de sua liberdade comunicativa, assumindo a condição performativa de interagir no sentido de recíproco entendimento sobre algo a partir das pretensões de validade entabuladas por cada um (HABERMAS,1998, p. 184 e segs.). Como se percebe, a relação entre ambas é recíproca e complementar: apenas é legítimo o Direito que surge da formação discursiva da opinião e da vontade de cidadãos que possuem aqueles mesmos direitos."Una autonomía privada asegurada sirve a ‘asegurar el surgimiento’ de la autonomía pública, al igual que, a la inversa, la adecuada puesta en práctica de la autonomía pública sirve a ‘asegurar el surgimiento y despliegue de la privada’ (HABERMAS,1998, p. 491).

Assim, os cidadãos apenas podem agir publicamente, isto é, participar politica e democraticamente da feitura (ou do controle) das leis porque sua autonomia privada foi previamente garantida, e, os direitos subjetivos que dão forma a esta autonomia privada surgem justamente do processo legislativo democrático. A tarefa do sistema de controle de constitucionalidade passa a ser, desde esta perspectiva, o "exame e a garantia de realização das condições procedimentais, das formas comunicativas e negociais, para um exercício discursivo da autonomia pública" (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002, p. 154).

Sobre o autor
Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

Mestre e Doutor em Direito Constitucional (UFMG). Professor Adjunto na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e na Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Professor permanente do Programa de Mestrado em Direito da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Advogado no Cron - Advocacia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Controle difuso de constitucionalidade das leis e espaço público no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 64, 1 abr. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3988. Acesso em: 24 dez. 2024.

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