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Fontes do direito e fato jurídico.

Resposta a Tárek Moysés Moussallem

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Agenda 01/05/2003 às 00:00

Sumário:1. Introdução: realismo lingüístico ou constructivismo? 2. Fontes de direito em Tárek Moysés Moussallem. 3. Fontes do direito em Paulo de Barros Carvalho. 4. Explicando o ovo e a galinha: significante e significação. 5. O fato jurídico como norma individual: o direito reduzido à linguagem escrita e documental. 6. Fato, evento e Habermas: algumas considerações. 7. Conclusão


1. Introdução: realismo lingüístico ou constructivismo?

O diálogo científico é o único meio de construção do conhecimento. Não há ciência no monólogo, porque todo ato de conhecer é um ato de sair de si em busca do outro, naquela fusão de horizontes em que se encontram o passado, o presente e o futuro, nas múltiplas fragmentações do mundo da vida. Não por outra razão, as críticas ofertadas por Tárek Moysés Moussallem ao segundo artigo da trilogia que escrevi sobre a teoria do realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho são sumamente bem vindas (1), porque possibilitam a reflexão serena sobre os aspectos teóricos problemáticos da contribuição científica do professor paulista, cuja importância no direito público brasileiro não se pode negar. Justamente pelo seu relevo, bem como pela perplexidade que suscita ao introduzir inúmeros conceitos novos tomados de empréstimo da semiótica, é que uma discussão franca, séria e honesta sobre a sustentação dos seus postulados se faz necessária.

Nada obstante isso, antes de analisarmos e respondermos as críticas opostas pelo professor capixaba aos meus argumentos contrários à teoria carvalhiana, faz-se mister de plano deixar claro que estou a debater idéias, ainda que o possa fazer de forma firme e direta, sem tergiversarções. Não se trata aqui de uma embate pessoal, nem tampouco se busca ferir susceptibilidades de ninguém, me sensibilizando sobremaneira as severas afirmações de índole pessoal feitas pelo professor do Espírito Santo, como aquela de me atribuir deslealdade (2), que não cometi, consoante adiante o demonstrarei. Na verdade, penso que o professor capixaba leu os meus textos com paixão não recomendada nos áridos campos da ciência. Como a paixão turva a vista, vislumbrou em meus textos afirmações que não fiz, ou atribuiu a eles interpretação amesquinhada por rancores que empalidecem a análise e a reflexão isentas. Não transformarei nosso diálogo em fogo cruzado de ataques, porque prezo em muito a contribuição de Paulo de Barros Carvalho e seus discípulos, nada obstante me reserve o justo direito de discordar, respondendo a um desafio científico feito à toda a comunidade jurídica.

A prática do diálogo científico é um exercício de tolerância, de constante ascese. Por isso, o primeiro gesto rumo à construção do consenso é a abertura sincera para o diálogo, que passa a ser entabulado sem ascendência de uns sobre os outros, sem argumentos de autoridade, porém com a certeza e a tranqüilidade de quem possui, ao menos em princípio, as melhores razões. Nesse diapasão, não se pode tomar qualquer teoria, mesmo a carvalhiana, como uma estrutura teórica hermética, apenas bem compreendida pelos iniciados, que teriam a única chave possível de ingresso íntimo em seus conceitos. A ciência é meio para o entendimento, ou não é ciência. Tampouco é ciência o conjunto de saberes que se põe infenso a críticas, ou que se supõe superior a elas pelo argumento de autoridade. Aliás, é sempre essa atitude a mais contundente revelação de suas fragilidades, porque negar-se ao diálogo sincero é ausentar-se de fundamentar as pretensões de verdade que as proposições possuem.

Feitas essas considerações necessárias, podemos ingressar na análise das críticas formuladas pelo professor Tárek Moysés Moussallem contra os meus textos, desvestido de qualquer intenção outra que não o confronto salutar de idéias.

A primeira crítica que me foi objetada diz respeito à expressão "realismo lingüístico", com a qual rotulei didaticamente a teoria entabulada por Paulo de Barros Carvalho. Segundo o professor capixaba, a expressão seria imprópria porque "realismo" emprega-se para denominar o "realismo jurídico" norte-americano ou escandinavo, "os quais, com determinadas discrepâncias, assentavam o conceito de ‘direito’ como as decisões dos órgãos jurisdicionais" (3). Acoplada ao vocábulo "lingüístico", o realismo indicaria a escola filosófica do realismo verbal, que propugnaria que os nomes adviriam das coisas designadas. Ao tempo em que faz a crítica, Tárek Mussallem denomina a teoria carvalhiana de "constructivismo jurídico", nada obstante não justifique o porquê da denominação empregada.

Denominei de "realismo" a teoria carvalhiana por reduzir o direito às normas jurídicas postas por uma autoridade competente, no ato de sua aplicação (4). É dizer, amputa-se do direito o mundo fora das repartições públicas (administrativas ou judiciais), porque não haveria processo de positivação do direito sem que a autoridade (administrador ou juiz) emitisse enunciados em linguagem competente ou tomasse conhecimento dos enunciados emitidos pelos particulares (5).

Quando outorgo à teoria carvalhiana o rótulo de realismo, o faço porque em sua medula está o axioma segundo o qual apenas haveria incidência da norma geral e abstrata se houver uma norma individual e concreta que a aplique. Mais ainda: para que se dê o processo de positivação do direito, se faria necessário o conhecimento da autoridade competente (o juiz ou o administrador) do feixe de linguagem produzido pelo particular, ficando assim reduzido o mundo jurídico ao mundo das repartições públicas. Para o professor paulista da PUC/SP e USP, "(...) De nada adiantaria ao contribuinte expedir suporte físico que contém tais enunciados prescritivos, sem que o órgão público, juridicamente credenciado, viesse a saber do expediente. O átimo dessa ciência marca o instante preciso em que a norma individual e concreta, produzida pelo sujeito passivo, ingressa no ordenamento do direito posto" (6). Não por outras razão, a nota fiscal e os livros da escrita do contribuinte são meros "feixes de notícias indicativas" (7), não sendo havidos como normas individuais e concretas mercê de não serem comunicados à administração fiscal. Não basta, portanto, na teoria carvalhiana, a emissão de um enunciado protocolar e denotativo para configurar uma norma individual: é necessário que ele chegue ao conhecimento da autoridade competente. (8)

Quanto ao adjetivo "lingüístico", para qualificar o substantivo "realismo", também explicitei o seu uso em meus textos. Para Paulo de Barros Carvalho, a facticidade jurídica seria sempre normativa, expressa em linguagem competente (que seria sempre documental e escrita). Mais ainda: a norma geral e abstrata, para que viesse a alcançar o inteiro teor de sua juridicidade, reivindicaria incisivamente a edição de uma norma individual e concreta (9). A linguagem gestual ou verbal seria mero fato social, como também a linguagem escrita que não fosse produzida ou conhecida pela autoridade competente. A lingüisticidade do direito, na teoria carvalhiana, é reduzida à linguagem competente, produzida sempre pelo poder posto. Essa, inclusive, a razão do repto lançado pelo eminente professor paulista, para que alguém lhe apontasse um único fato jurídico sem linguagem. O realismo de Paulo de Barros Carvalho, destarte, é um realismo qualificado: realismo lingüístico. Nada tem a ver, portanto, com o essencialismo do realismo verbal, conforme tenta o professor capixaba induzir.

Tárek Moussallem, por sua vez, denomina a teoria carvalhiana de "constructivismo jurídico", que reconheceria o direito positivo como integrante da heterogeneidade social, embora colocando em parêntesis o direito como fato social, psicológico, político, para tomá-lo apenas e tão-somente como norma (10). Essa denominação seria adotada tendo inspiração no constructivismo social (11), vindo a ser utilizada pelo professor do Espírito Santo sem uma preocupação mais clara em justificá-la, de vez que a definição do direito como norma jurídica é apenas uma das forma mais estremadas de normativismo, que por si só não justificaria um novo rótulo.

O constructivismo de Paulo de Barros Carvalho não é o constructivismo social, ético, político ou moral mais conhecido, que é aquele defendido por John Rawls (12), fundado no fato do pluralismo razoável e com a necessidade de uma sociedade democrática assegurar a possibilidade de um consenso sobreposto em relação aos seus valores políticos fundamentais, desenvolvendo "os princípios de justiça a partir das idéias públicas e compartilhadas da sociedade enquanto um sistema eqüitativo de cooperação e de cidadãos como livres e iguais, utilizando os princípios de sua razão prática e comum". (13)

Repugna ao constructivismo social ou ético de Rawls a formalização do direito, abastardado de suas raízes sociais e éticas, preso apenas a um jogo excessivamente formal da linguagem, em que tudo o que não ingressar através de uma norma individual e concreta não pode ser reputado jurídico. Para o momento, quero apenas enfatizar que o "constructivismo jurídico" da teoria carvalhiana é a corrente mais radical do ceticismo hermenêutico, reduzindo o seu objeto à linguagem competente da autoridade, escrita e documental.

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2. Fontes de direito em Tárek Moysés Moussallem.

Os três artigos que escrevi trataram da obra capital da teoria carvalhiana, os Fundamentos da incidência da norma jurídica. Apenas de passagem fizemos incursões no livro de Eurico de Santi, não tendo em nenhum instante tratado da tese de mestrado de Tárek Moysés Moussallem (14), nada obstante seja toda ela estribada na distinção introduzida por Eurico de Santi entre enunciação-enunciada e enunciado-enunciado. Essa observação é importante, porque toda a crítica feita pelo professor capixaba ao meu texto é baseada na comparação que fez com o seu próprio livro e com as classificações que adotou, e não com os livros por mim citados. Bastaria esse fato para esmaecer suas ponderações, porque baseadas na descontextualização dos meus argumentos. De fato, para comprovar o que estou a dizer, é só observar que em nenhum texto seu, Paulo de Barros Carvalho faz uso das expressões adotadas por Eurico de Santi e Tárek Mussallem.

Todavia, passarei a analisar o livro de Tárek Moussallem e, coetaneamente, enfrentarei suas críticas assestadas contra os meus argumentos.

Para Tárek Moussallem, a distinção entre fontes formais e materiais do direito deve ser superada, porque seria ingênua. Nem se deve pensar nas fontes como os fatores sociais, históricos e culturais que estão à base das normas jurídicas, nem tampouco o costume, a jurisprudência, o contrato e a lei devem ser havidos como fontes do direito. Para o professor da Universidade Federal do Espírito Santo, fonte do direito é a atividade de enunciação, ou seja, a atividade produtora dos enunciados não constantes do documento normativo, que se esvai no tempo e no espaço (enunciação) (15). Fonte do direito, destarte, não é nem as motivações históricas, políticas, religiosas, culturais, econômicas etc., que ensejaram a expedição de uma norma, nem tampouco o documento através do qual tais normas vieram de ser expedidas (lei, decreto, portaria, sentença, contrato etc.). Nas palavras de Moussallem (16): "(...) o que entendemos por fonte do direito não é a enunciação-enunciada, mas, sim, a atividade exercida por órgão credenciado pelo sistema do direito positivo, que tem por efeito a produção de normas, atividade essa inacessível imediatamente ao conhecimento humano, por carecer de linguagem".

Ora, nessa teoria, a fonte do direito seria uma atividade humana, sem linguagem, realizada pelo órgão credenciado pelo ordenamento jurídico. Logo, seria a fonte do direito um mero evento. Essa afirmação é capital e será objeto de nossas reflexões adiante.

Para o momento, convém assestar que Tárek Moussallem faz a distinção entre documento normativo (suporte físico dos enunciados), veículo introdutório (enunciação-enunciada) e enunciado-enunciado. Assim, enquanto para Paulo de Barros Carvalho (17) o veículo introdutor é o documento normativo (leis, portarias, decretos, sentenças, contratos etc.), para Tárek Moussallem e Eurico de Santi (18) o veículo introdutor seria a enunciação-enunciada. Então, todo documento normativo teria (a) um veículo introdutor de normas e (b) as normas introduzidas por ele. O veículo introdutor seria a enunciação-enunciada, enquanto as normas introduzidas estariam insertas no enunciado-enunciado.

Teríamos, de conseguinte, convivendo em um mesmo documento normativo duas normas: a "norma veículo introdutor" e a "norma enunciado-enunciado". Nesse diapasão, haveria duas espécies de fatos jurídicos: o fato jurídico tributário, localizado no enuncidado-enunciado, que seria fruto da aplicação da regra-matriz de incidência, e o "fato jurídico veículo introdutor", fruto da aplicação das normas sobre produção normativa, que teria por efeito estabelecer a obrigação de a comunidade observar as disposições prescritivas (19).

Tomando como exemplo um auto de infração, seria ele um documento normativo portador de duas normas: a norma veículo introdutor, que seria geral e concreta, e a norma tributária, individual e concreta. A primeira delas teria por antecedente a realização do procedimento fiscal por um agente competente. No seu conseqüente, se prescreveria a obrigação de toda a comunidade respeitar as disposições contidas naquele documento normativo (auto de infração) (20).

O exemplo citado por Tárek Moussullem é bastante elucidativo. Em primeira plana, é curial asseverar que o conteúdo do auto de infração está acobertado pelo sigilo fiscal, que é uma garantia constitucional do contribuinte. A par disso, estabelece ele uma relação jurídica inter partes entre o fisco e o contribuinte, e apenas entre eles, de natureza obrigacional. Assim, não há como se falar em uma obrigação de toda a comunidade respeitar as suas disposições, porque a eficácia jurídica é, consoante asseverado, inter partes e não inter alios. O dever de abstenção (ou o dever de observância) com eficácia erga omnes é estranho às relações obrigacionais, sendo apenas pertinente quando entram em jogo os direitos absolutos (personalidade, honra, direitos reais etc.). Em verdade, se historicamente o que se viu no direito privado foi a "pessoalização" dos direitos absolutos (sobretudo dos direitos reais) a partir da criação do conceito de relação jurídica (21), na exposição do professor capixaba se faz um caminho inverso – rompendo às sabendas com toda a tradição jurídica advinda dos pandectistas alemães, de quem somos herdeiros – criando uma "absolutização" impensada dos direitos pessoais (obrigacionais), que estaria prescrita no fato jurídico veículo introdutor.

De repente, não mais que de repente, uma norma que estabelece uma relação jurídica inter partes, desborda de seus limites, criando um estranho dever geral de observância, mesmo que ninguém venha a ter conhecimento da existência do auto de infração, mercê de não estar sujeito ao princípio da publicidade dos atos normativos. E ainda que venha a tomar dele ciência, nada haverá o que ser observado, senão para o sujeito passivo da obrigação advinda daquela relação jurídica.

Esse ponto dramático fica muito mais patente quando se pensa no contrato de locação, citado por Tárek Moussallem. Para ele, a enunciação-enunciada (veículo introdutor) do contrato traria as pessoas, o procedimento, o tempo e o espaço em que foram realizadas as negociações. Desse modo, assevera: "Da leitura da enunciação-enunciada constrói-se, juntamente com o preâmbulo do documento normativo, a norma jurídica concreta (porque constitui para o direito o fato específico de produção normativa) e geral (porque estabelece a obrigação de todos os sujeitos observarem seus enunciados-enunciados) denominada veículo introdutor" (22). Noutro giro, o contrato de locação veicularia uma norma concreta e geral, que faria nascer uma obrigação erga omnes para que fossem observadas as suas cláusulas (enunciado-enunciado). Diga-se novamente, para ficar bem assentado: pela teoria carvalhiana, como exposta por Tárek Moysés Moussallem, o contrato de locação haveria de ser observado por todos os sujeitos, sem embargo de ninguém, além das partes, dos amigos e talvez dos familiares mais chegados, ter conhecimento da sua existência, ainda que presumida, mercê da sua insubmissão ao princípio da publicidade. Noutras palavras, o princípio civilista da eficácia relativa dos contratos, pelo qual res inter alios acta aliis neque nocere neque prodesse potest (os atos concluídos por uns não podem beneficiar ou prejudicar a outrem), é superado por uma inquietante (e inexistente!) obrigação erga omnes de observância.

Outro ponto importante é o problema da existência daquelas duas normas (introdutora e introduzida) em um único documento normativo. A norma veículo introdutor teria a função de identificar a origem do documento, é dizer, a sua procedência credenciada, através da enunciação-enunciada, que seria as marcas identificáveis no texto, as quais remeteriam à instância da enunciação. A par dessa função, consoante visto, também teria a função de determinar a todos a observância de suas normas. E que normas deveriam ser observadas? As normas individuais e concretas, dispostas no enunciado-enunciado.

Tárek Moussallem enfatiza bem esse ponto: "(...) a norma sobre produção jurídica descreve, em seu antecedente, um agente competente e o procedimento prescrito pelo ordenamento jurídico para a produção normativa e, em seu conseqüente, prescreve a obrigação de todos respeitarem as disposições inseridas, pelo próprio veículo introdutor, no sistema do direito positivo" (23). Noutro giro, é como se o veículo introdutor prescrevesse: "- obedeçam às normas por mim introduzidas". Assim, a norma individual e concreta ganharia a sua normatividade, a sua natureza prescritiva, da norma geral e concreta contida no veículo introdutor do próprio documento normativo, e não das normas gerais e abstratas que seriam o seu fundamento de validade. Se sua prescritividade, é dizer, sua força normativa, advém de uma outra norma, no mesmo documento normativo, ela própria seria norma de segundo grau, sem força própria para incidir (ou ser aplicada). Haveria, então, duas normas: uma prescrevendo algo, e outra prescrevendo que aquela primeira norma seja obedecida. Pois bem: e essa última norma, que prescreveria fosse a primeira observada, retiraria a sua própria força normativa de onde? Se o leitor responder que seria da Constituição, retira a sustentação da teoria carvalhiana (pela qual todo o dever há de ser previsto em uma norma individual e concreta); se responder, nada obstante, que seria de uma outra norma concreta, teria o ônus de apontá-la.

Finalmente, há um outro aspecto que surpreende na obra de Tárek Moussallem. Toma ele, seguindo as pegadas de Paulo de Barros Carvalho, a linguagem segundo o princípio da auto-referência do discurso, implicando em ver a linguagem como não tendo outro fundamento além de si própria, não havendo elementos externos à linguagem (objetos, coisas, eventos etc.) que possam garantir sua consistência e legitimá-la (24). É dizer, a linguagem legitima-se por si própria (constructivismo).

Curiosamente, o professor capixaba faz a distinção entre enunciação-enunciada, enunciado-enunciado e enunciação. A enunciação seria justamente a atividade produtora dos enunciados não constante do documento normativo que se esvai no tempo e no espaço (25). Na veiculação de uma lei, por exemplo, a enunciação seria todas as atividades desenvolvidas no processo legislativo. Essa atividade, configurada nos debates em plenário, nas negociações entre os parlamentares, nos pedidos de vista, nos substitutivos, nas emendas etc., seria por excelência a fonte do direito. A fonte do direito, portanto, seria o evento da atividade parlamentar durante todo o processo legislativo. A enunciação-enunciada capta algo, uma parte dessa realidade, na configuração do agente competente, tempo e espaço. Parte da enunciação é documentada na enunciação-enunciada, se esvaindo boa parte dela, não relatada em linguagem competente.

Voltamos aqui ao conceito de fonte do direito para Tárek Moussallem, anteriormente por nós referido. Para ele, a fonte do direito é a atividade exercida por órgão credenciado para produzir normas, inacessível imediatamente ao conhecimento humano por carecer de linguagem. (26) Todavia, diante do princípio da auto-referência da linguagem, é evidente a inutilidade da enunciação como atividade sem linguagem (como não-linguagem), porque o que não tem linguagem não teria relevo, não tendo "realidade". Por isso, quando ele diz que a enunciação-enunciada apreende porção da enunciação, deveria ter dito também que a porção não apreendida não teria importância alguma: seria uma não-enunciação. Entrementes, surpreendentemente, essa atividade sem linguagem seria a verdadeira fonte do direito, para Tárek Moussallem. É interessante notar que aqui se abriu mão justamente daquilo que desde o início a teoria carvalhiana buscava defender.

Toda essa construção teórica contraditória visa a justificar o postulado segundo o qual "norma não cria norma" (27). Por isso, afirma ele que as normas são produzidas pelo fato-enunciação: as normas provêm de eventos, não de outras normas (28). Numa frase: "Com efeito, a enunciação é evento. Evento que para o ‘constructivismo jurídico’ somente é acessível pela enunciação-enunciada (fato jurídico) localizada, como não podia ser diferente, dentro do sistema do direito positivo" (29) Destarte, consoante assevera candidamente, "(...) é o não-jurídico que cria o jurídico. Assim, o não-contrato cria o contrato, o não-testamento cria o testamento, da mesma forma que, por exemplo, a cozinheira (não-bolo) cria o bolo" (30).

Com essa explicação, teríamos (a) a atividade de produção de normas (enunciação), (b) os documentos normativos criados, que conteriam (c) o veículo introdutor (enunciação-enunciada) e (d) a norma individual e concreta (enunciado-enunciado). A fonte do direito seria a atividade de produção normativa, sem linguagem escrita e documental formalizada. Seria o evento que poria normas, através do documento normativo editado. A enunciação seria, insista-se, apenas fáctica, é dizer, sem estar relatada por linguagem competente em sua integralidade. O nada jurídico criaria o jurídico.

A auto-referência do sistema do direito positivo, consoante Tárek Moussallem (31), consistiria na filtragem exercida pelo direito positivo na identificação do enunciados que foram gerados de conformidade com as suas normas de produção normativa (fundamento de validade). É curioso: se o direito positivo tem referência nele mesmo, como se abriria então esse círculo para que os eventos de fora do sistema (enunciação, atividade produtora) criassem normas? A resposta é surpreendente: através do relato na enunciação-enunciada, que capta porção daquela atividade.

Porém, todas essas afirmações carecem de maior compromisso com os pontos de partida assumidos. Aqui, merece atenção o seguinte ponto: quando se afirma que o não-jurídico cria o jurídico, ou que o evento cria o direito, na verdade deixa de se levar em conta que esse evento (enunciação) é regrado por normas (fundamento de validade). Para que realmente o evento criasse o direito, deveria a teoria carvalhiana demonstrar que esse evento é puro evento, ou seja, que ele não seria regulado por normas a priori. Todavia, Tárek Moussallem afirma: "A enunciação no direito positivo não se faz ao bel-prazer do emissor da mensagem. Pelo contrário, o controle da produção normativa (v.g. controle de constitucionalidade) ocorre justamente porque a enunciação (acessível pela enunciação-enunciada) deve-ser efetivada de acordo com as normas superiores (fundamento de validade) àquelas produzidas (a partir da enunciação-enunciada e enunciado-enunciado). Porém, a atividade de enunciação somente se torna controlável após a produção do documento normativo. Por meio da enunciação-enunciada regressa-se (reconstrói-se) à enunciação para verificar se esta se realizou de acordo com as normas de produção normativa e de seu fundamento de validade" (32).

Uma lei complementar, por exemplo, não enuncia qual foi o quorum da sua votação. Mesmo lendo a sua enunciação-enunciada, não se tem como saber se o processo de produção foi cumprido, a não ser através da própria enunciação (dos documentos do legislativo que estão fora do corpo da norma introdutora). Como a enunciação-enunciada não enuncia tudo, a parte não enunciada do quorum seria enunciada por que meios? Diria Tárek Moussallem, provavelmente: através da teoria das provas. Que seja, mas a resposta já demonstra que a enunciação não relatada em linguagem competente não é uma não-enunciação (mero evento), contendo respostas que a enunciação-enunciada não traz. É dizer, mesmo sem linguagem competente, a enunciação tem relevo jurídico, por mais que se busque negar, justamente por não ser puro evento, mas "evento qualificado juridicamente".

Além disso, outro ponto é ainda mais relevante. Afirma-se que a enunciação não se faz ao bel-prazer do emissário. Há normas que regram a produção de outras normas. Logo, todo ato ponente de normas é regulado por outras normas (sub specie norma), seu fundamento de validade. Qual norma regula a atividade da assembléia constituinte originária? Qual o fundamento de validade da Constituição Federal? Eurico M. Diniz de Santi responde que a Constituição é Constituição porque diz que é Constituição: o produto juridiciza o processo. Por essa razão, rejeita a teoria da norma fundamental de Kelsen. Ainda que se admita, como quer Tárek Moussallem, que Eurico de Santi tenha talhado "a oiro e fio" tais expressões, não percebeu ele a profunda divergência entre o pensamento de ambos: para Eurico Marcos Diniz de Santi a norma fundamental de Kelsen é desprezada (33), enquanto o professor capixaba a conserva como fundamento de validade de todo o sistema (34).

Afirma Tárek Moussallem, insista-se, que a enunciação (a atividade produtora de normas) é um evento, ou seja, uma atividade carente de linguagem. Conquanto isso, não nega que essa atividade produtora de normas (fonte do direito) seja normada, vale dizer, atividade regrada por norma jurídica superior. Aduz ele (35): "Partindo do confronto entre enunciação-enunciada (aplicação-produto, norma inferior) e as normas de produção normativa (norma superior) é que alcançaremos a atividade de enunciação (fonte do direito) com o exclusivo intuito de conferir ao direito positivo uma estrutura escalonada (...)". Noutras palavras, a atividade produtora de normas é regrada por normas de produção normativa. Sendo atividade prescrita em normas jurídicas, não pode ser havida como estranha ao direito. Para a teoria pontesiana, bem como para toda a teoria clássica, seria um fato jurídico complexo, juridicizado pela incidência de normas jurídicas. Como a teoria carvalhiana refuta a incidência da norma (ou por outra, confunde incidência com aplicação), busca juridicizar porção desses fatos (evento, em jargão carvalhiano) através da enunciação-enunciada do documento normativo produzido, invertendo a ordem lógica e cronológica das coisas: aqui é o produto que reflexivamente - se voltando sobre si mesmo, em retroversão - transforma em jurídico o processo.

O problema que Tárek Moussallem haveria de enfrentar, conforme já enfatizei anteriormente, era sobre a estatura das normas de produção normativa que regram a assembléia constituinte, uma vez que essa seria a fonte do direito de maior hierarquia. Afinal, não se pode asseverar seriamente que a atividade produtora de normas da assembléia constituinte tenha sido regrada pela Constituição por ela produzida. A atividade produtora da norma fundamental do sistema jurídico é, também ela, objeto de normas jurídicas. Poder-se-ia refutar, afirmando que a própria assembléia constituinte fixa, ex novo, as normas sobre produção normativa. De onde viria esse poder? Kelsen respondeu: da norma fundamental pressuposta. Eurico de Santi rejeitou essa resposta, afirmando que o produto juridiciza o processo; a Constituição, a assembléia constituinte. Ao fazê-lo, ingressou naquele círculo vicioso referido, além de tentar explicar o jurídico pelo fáctico. Porém, a essas sutilezas Tárek Moussallem não desceu, tentando inutilmente valer-se de Kelsen para tentar estabelecer uma hierarquia entre veículos introdutores, pondo a Constituição no cimo (36).

Toda esse enleio conceptual tem por finalidade dar sustentação à afirmação de que "fato jurídico não cria norma jurídica" (37). Em assoalho de suas teses, invocou-se lição de Lourival Vilanova fora de seu contexto. De fato, como a teoria carvalhiana define o fato jurídico como norma individual e concreta, não poderia o fato jurídico (norma individual) ser causa de outra norma, porque norma não produz norma, sempre na visão dessa teoria. Para dar lastro a esse entendimento, afirma Tárek Moussallem: "A norma jurídica não pode ser causa-de-si-mesma. Nesse particular, é lapidar a lição de Lourival Vilanova: ‘Sendo causa-de-si-mesma, seria a um tempo causa e efeito, o que destruiria a polaridade relacional dos dois termos’. Tal assertiva mantém incólume a correta afirmação de que de enunciados fácticos não se inferem enunciados deônticos correspondentes, uma vez que ‘inferir’ é operação lógica de deduzir" (38).

Em verdade, para Lourival Vilanova a fonte do direito é sempre o fato jurídico: as normas jurídicas são produzidas por fatos jurídicos, não se confundindo com eles, mesmo quando as normas são criadas pelo costume (hipótese inaceitável pela teoria carvalhiana). Eis a lição autêntica de Lourival Vilanova (39): "Num e noutro caso, a aprioridade da norma, relativamente aos fatos (ou ao fato único), advém de seu modo de formação e da relação-de-validade com o sistema. A norma jurídica forma-se de acordo com as normas de formação do sistema (sobrenormas), ou as ‘regras do processo legislativo’. Se foi fato consuetudinário que esteve em sua origem, o fato consuetudinário tornar-se-á fato jurídico, para ser produtor de normas (fonte é fato jurídico). E só é fato jurídico, o costume, se há, explícita ou implicitamente, norma no sistema que incida nesse fato, qualificando-o como fato jurídico, ou seja, como fonte, cuja eficácia é a ponência, ou a revogação de normas". A fonte do direito, portanto, é sempre um fato jurídico, e não um evento não-jurídico. Note-se, alfim, que toda essa miscelânea teórica decorre da necessidade de se sustentar o axioma da teoria carvalhiana segundo o qual a norma geral e abstrata apenas incidiria com a edição de uma norma individual e concreta. Por essa razão, o processo de produção de normas, embora sendo todo ele regrado, não seria jurídico, porque não seria relatado em linguagem competente em sua integralidade.

Sobre o autor
Adriano Soares da Costa

Advogado. Presidente da IBDPub - Instituição Brasileira de Direito Público. Conferencista. Parecerista. Contato: asc@adrianosoares.com.br

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Adriano Soares. Fontes do direito e fato jurídico.: Resposta a Tárek Moysés Moussallem. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4049. Acesso em: 22 nov. 2024.

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