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É justo que eles paguem a conta?

Agenda 07/07/2015 às 14:55

Hoje discute-se a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional n. 171/1993 – PEC da Maioridade. Será que esse é o caminho?

É inegável a onda de violência que assola o país nos últimos anos.  Os números e as estatísticas estão aí para quem quiser ver. Na verdade, nem precisaria, pois o termômetro maior é o sentimento da população brasileira com a insegurança vivida. Ou será que algum de nós tem a certeza que ao sair de casa irá retornar são e salvo após um dia de trabalho? A realidade, meus amigos, é trágica, mas não deixa de ser a realidade, infelizmente.

E o que dizer então quando crimes (atos infracionais) bárbaros são praticados cada vez mais por menores adolescentes? O que dizer para uma mãe, esposa ou filho que teve um ente querido vítima de uma “sementinha do mal” – é o que eles dizem – que nada vai acontecer? O que dizer da revolta de uma comunidade que pretendia fazer justiça com as próprias mãos após os atos de barbárie contra 04 meninas que foram estupradas, torturadas e mortas na cidade de Castelo do Piauí no mês passado?

De fato, não há muito que dizer. A não ser, sentir a dor e chorar. Não existe explicação para esse sentimento.

Entretanto, apesar disso, não podemos deixar que nos enganem. Não se pode admitir que os governantes e oportunistas aproveitem da cegueira momentânea causada pelo sofrimento e dor, para vender a ideia salvadora que irá resolver todos os nossos problemas. Serei mais claro: Proposta de Emenda Constitucional n. 171/1993 – PEC da Maioridade. O próprio número já diz muito sobre ela. Basta conferir o Código Penal!

Qual o sentido da redução da maioridade penal? Buscar a diminuição dos crimes praticados pelos adolescentes? Se for isso, não se enganem. A pretendida alteração constitucional não será capaz de resolver o problema. A experiência no direito comparado, os estudos da sociologia, psicologia, criminologia, assistência social são unânimes em demonstrar que essa não é a solução. Não é através do recrudescimento das penas ou redução da maioridade que iremos resolver a violência. Afinal, se assim fosse, a Lei 8072/95 – Crimes Hediondos – deveria ter resolvido ou, pelo menos, diminuído a prática de infrações penais, pois trouxe um maior rigor para aqueles que cometem os crimes ali previstos.  A verdade é que não só não diminui, mas está aumentando absurdamente.

O que eles pretendem é a inversão de toda lógica. O objetivo é jogar uma cortina de fumaça e atrapalhar a visão da sociedade para o real problema. Se existe um culpado maior, sem dúvidas, é o Estado brasileiro.

O Estado falha em 03 etapas distintas.

Primeiro momento. No Brasil, ao contrário de outros países desenvolvidos, os direitos fundamentais básicos de natureza prestacional não atingiram um grau mínimo de realização. O Estado falha ao fornecer serviços básicos à população. Ou será que temos saúde, educação, segurança e, principalmente, emprego para todos?

Daí, os pseudos intelectuais que escrevem do alto da segurança dos seus castelos encantados e carros blindados, costumam dizer que não há justificativa imputável à ausência estatal. A pessoa quando quer corre atrás e consegue superar todos os obstáculos. Entrar na criminalidade é coisa de vagabundo que deseja vida fácil.

O discurso é até comovente e quase crível. No entanto, desconsidera algo muito importante, ou seja, a necessidade de olhar a realidade com os olhos do outro. Só assim enxerga-se com a nitidez exigida. Afinal, a cabeça pensa onde os pés pisam.

Qual será o tamanho da censura à conduta de um adolescente que bota um 38 na cara de um cidadão para fazer um assalto? Deveríamos chegar realmente ao ponto de amarrar em poste, linchar e até matar?

Será que seria mesmo tão censurável e revoltante se procurássemos aprofundar um pouquinho somente na realidade daquele menor infrator? Será que se soubéssemos que aquela criança nasceu em um ambiente já degradado, muitas vezes com pai alcoólatra, preso ou desconhecido; criada pela mãe ou avó, submetida a todas as formas de violências inimagináveis no seio familiar e fora dele; acostumada a presenciar todos os dias na porta de casa uma realidade mais dura que a retratada nos filmes; ignorada e humilhada pelo Estado, nas filas dos hospitais, nas escolas precárias, na ausência de programas e atividades culturais e esportivas; recebida com bala e tapa na cara pela força policial quando essa resolve aparecer vez por outra. Será que se soubéssemos disso tudo teríamos a mesma opinião?

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Como exigir que se comportem de acordo com a lei se muitas das vezes a sua infringência é a única maneira de se tornarem visíveis e de recuperarem um pouco da dignidade há muito perdida?

Infelizmente, a sociedade só tem olhos para o bonito e belo. Por isso preferimos não enxergar as mazelas, tratamos como invisível aquilo que não desejamos ver. O único problema é que esse ser invisível, vez por outra, vem à tona com toda sua visibilidade ignorada e nos obriga a enxergar da pior forma possível. Será que somente quando submergem das sombras que são mantidos e nos trazem dor é que devemos notar as suas existências?

Conforme se pode ver, a discussão é muito mais complexa que reduzir a maioridade penal ou querer resolver o problema através da tinta de uma lei qualquer.

Segundo momento. Falha do Estado em dar aplicação aos dispositivos do ECA. Na verdade, o Estatuto da Criança e Adolescente nada mais é que a densificação do comando constitucional estabelecido no art. 227 da CR/88 que exalta, em última análise, o princípio da proteção integral. A atenção primordial e básica não é conferida somente quando existe uma situação de risco ou a prática de ato infracional, mas em todos os momentos.

Com efeito, se já existe a primeira falha com relação às politicas públicas essenciais a cargo do Estado, o não atendimento das exigências do ECA piora ainda mais a situação.

Existe a falsa percepção que o diploma normativo supracitado é ineficaz para resolver o problema da violência. A verdade é que a Constituição da República criou um discriminem positivo para tratar as crianças e adolescentes de forma desigual, atendendo-se claramente o próprio princípio da isonomia, na medida em que as desigualdades devem ser enfrentadas de forma específica e particularizada.  

Assim, se reconhece que por estar em processo de formação psicológica, de valores, caráter e vida, a eles deverão ser dispensado tratamento específico. Ao invés da pena por excelência, o objetivo é aplicar medidas socioeducativas capazes de colocar os menores infratores novamente na linha que deve ser seguida. Com efeito, a intenção é formar um cidadão adulto que seja capaz de voltar à vida em sociedade e se comportar de acordo com os valores e regras estabelecidos.

O grande problema é que não existe uma aplicação efetiva dos institutos previstos. O Estado não garante a implementação daquilo que deveria estar em funcionamento. A título de exemplo, cito uma medida prevista no ECA, a denominada Liberdade Assistida. Ela é aplicada a atos infracionais de pequena gravidade, quando adequada para o fim de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente.

Nesse caso, deve-se indicar um orientador que irá supervisionar de forma próxima o adolescente, diligenciado na profissionalização do mesmo, na sua promoção social e familiar, verificando se possui assiduidade escolar e o devido aproveitamento etc. Mas o que ocorre na prática? O adolescente apenas comparece de tempos em tempos para assinar um documento. A mens legis não é cumprida. O espírito da lei é transformado em um mero ato formal de assinar um papel. É a velha lei para inglês ver.

Pergunto: como pode o Estatuto ser ruim ou ineficaz se até hoje não foi experimentada a potencialidade das suas regras e princípios em virtude da não implementação pelo Estado dos mecanismos e estruturas indispensáveis a sua consecução?

Eles querem usar a mesma lógica nefasta que utilizam no trato com os adultos. É de reconhecimento geral que no sistema prisional brasileiro a pessoa sai muito pior do que entra.

O sentimento de revolta é infinitamente maior, pois o Estado os trata como bichos. Superlotação, celas úmidas e mofadas, ausência de ventilação e equipamentos sanitários, comida estragada, ausência mínima de higiene, presos doentes misturados com os demais, tudo isso é o ingrediente necessário para a triste constatação que o sistema não recupera. Pelo contrário, agrava mais ainda o estado de revolta contra o mesmo. Afinal, não se pode esperar outra coisa de quem tem a sua dignidade ferida todos os dias.

Falaciosos e hipócritas são os discursos daqueles que dizem que o preso come e dorme à custa do Estado. Como se a prisão fosse algo bom, algum hotel que se busca o descanso. Está muito longe disso. Só quem diz essas asneiras são aqueles que nunca pisaram num estabelecimento prisional.

Se o Estado gasta em média R$ 2.000 reais com cada preso, por que até hoje não existem estruturas nos presídios e prisões para que o preso possa trabalhar em alguma atividade (panificação, produção têxtil, objetos artesanais etc) que gere lucro? Os presídios há muito poderiam ser autossustentáveis. Basta a vontade política para resolver o problema! Infelizmente, ela não existe.

Com efeito, por saírem piores do que entraram (triste realidade), qual a saída encontrada? Bingo! Sim, isso mesmo, vamos endurecer as penas porque assim eles ficam mais tempo presos e não saem tão cedo. Percebem a lógica nefasta por trás de tudo isso?

Eles querem fazer a mesma coisa com a redução da maioridade penal. Por não conseguirem implementar o ECA e a própria Constituição, propõem alterá-la para tratar os maiores de dezesseis anos como adultos para fins penais.  Resolvido o problema, não? Elementar, meu caro Watsom!

Terceiro momento. É preciso esclarecer, antes de tudo, que a opinião aqui apresentada não demonstra concordância com os atos praticados e nem insensibilidade aos sentimentos das pessoas vítimas da violência. É natural do ser humano, após sofrer na pele as consequências dessa triste realidade, ter o sentimento de revolta, raiva e ódio contra quem lhe fez e faz mal. Entretanto - esse é o verdadeiro objetivo desse artigo – é importante demonstrar quem são os verdadeiros “inimigos” e culpados pela situação vivenciada nos dias atuais.

Não podemos deixar que o populismo penal midiático, o discurso barato e inconsequente daqueles que se auto intitulam especialistas na área, os políticos que se aproveitam da comoção pública para tirar proveito eleitoral, pautem as ações sérias e corretas que devem ser adotadas.

Esse é o maior perigo que corremos atualmente. São em momentos como esses, momentos estranhos e cinzentos, sem certeza e a perspectiva de um futuro bom, que surgem os “messias” para nos liderarem pelo caminho do paraíso através de falsas promessas.

Nesse contexto de fragilidade da sociedade, qualquer proposta teratológica parece boa o suficiente para resolver o problema. Afinal, é da natureza humana agarrar-se a qualquer coisa quando a vida vai de mal a pior.

Outro dia escutei um deputado alegando que se deve reduzir a maioridade para os 16 anos devido ao fato que se o adolescente pode votar também pode ir preso. Segundo o mesmo, eles sabem muito bem o que estão fazendo. Pergunto: alguém tem dúvidas disso? Esse é o grande problema. A deturpação do discurso. É claro que um adolescente de 16 anos sabe o que está fazendo. Se uma criança hoje de 8 anos tem noção da realidade e muito mais amadurecimento e desenvolvimento do que uma criança de 30 anos atrás, como um adolescente de 16 não teria? Entretanto, isso não traduz justificativa plausível para a pretendida redução. O discurso é carente de fundamentação idônea a sustentar a consequência pretendida. Não se pode permitir que falsas premissas levem a conclusão que a saída é a aprovação da PEC 171/1993.

Infelizmente estamos vivendo momentos difíceis. Entretanto, não podemos perder a lucidez e os sentidos.

Para finalizar, dentro dos limites da minha memória, irei contar um caso verídico que ocorreu ano passado aqui na cidade de Fortaleza. Nessa época de alta estação, as praias e hotéis recebem turistas do Brasil e do mundo inteiro. A Praia do Futuro é o local na cidade que todos os turistas passam inexoravelmente para experimentar o tradicional caranguejo, o baião de dois com carne de sol e, evidentemente, as águas mornas do Atlântico nordestino.

Nesse ambiente propício ao descanso e à diversão, uma turista, estudante de medicina, foi vítima de um assalto praticado por uma jovem adolescente de 12 anos de idade. Ao ser abordada e tentar fugir, a estudante foi espetada e ferida nas costas com uma pequeno garfo de cozinha pela menor.

Bem, esse foi o fato. Entretanto, não basta que a notícia e o discurso de “higienização” diante da revolta pelo ocorrido se sobreponha ao que está por detrás de tudo isso.  Não se desconhece que a estudante teve sua vida e integridade ameaçadas, que possivelmente poderá ter um dano psicológico no futuro com o desenvolvimento de fobias, síndromes do pânico e até depressão. De fato, ela é mais uma vítima da violência.

O difícil é encontrar naquela possível assassina, escória da sociedade, o mesmo papel, não é mesmo? Afinal, ela quase matou uma pessoa. O pior de tudo é que quando entrevistada logo após o crime (ato infracional) foi categórica ao dizer que não tinha remorso e que faria tudo outra vez, pois precisava de dinheiro para sustentar o vício no crack.

Sim, meus amigos, aquela jovem de 12 anos, recém ingressa na adolescência, era viciada desde os 9 anos de idade. De tão magra, desnutrida e com o crescimento físico comprometido, aparentava ter no máximo 8 anos. Vivia nas ruas porque foi molestada e abusada pelo padrasto e era espancada pela mãe toda vez que relatava as “mentiras” contra o amado da mesma. A rua e a marquise sobre a calçada foram o ninho de proteção e aconchego encontrados contra os perigos e abusos do lar materno.

A pergunta que fica é: onde estava o Estado todo esse tempo? Cadê a sociedade para amparar essa pobre vítima do seu próprio infortúnio? Os trechos imortais da música “Um trem para as estrelas”, do poeta Cazuza, fazem todo sentido nesse momento:

 “(...) Num trem paras estrelas/Depois dos navios negreiros/Outras correntezas/Estranho o teu Cristo, Rio/Que olha tão longe e além/Com os braços sempre abertos/ Mas sem proteger ninguém/Eu vou forrar as paredes/Do meu quarto de miséria/ Com manchetes de jornal/Pra ver que não é nada sério/Nada sério (...)”.

Continuando a reportagem, foi entrevistado o Promotor da Infância e Juventude responsável pelo caso. O mesmo em tom de consternação foi enfático ao dizer que a jovem adolescente depois de 2 ou 3 meses estaria de volta às ruas e o Estado não teria mais nada a oferecer.

Mais triste do que a realidade é a constatação do futuro que está por vir para essa pobre adolescente.

Quem são os verdadeiros culpados? Quem são as vítimas?

Deixo a você, caro eleitor, a resposta.

Só advirto e peço encarecidamente: não permita que a conta seja mais uma vez paga por aquele que sequer tem o direito de sentar-se à mesa para comer!

Sobre o autor
Roberto Botelho Coelho

Advogado com especialização em Direito Público e Ciências Criminais. Aprovado recentemente nos concursos para Promotor Substituto do Estado do Amapá e Juiz de Direito Substituto do Tribunal de Justiça do Estado do Pará.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOTELHO, Roberto Coelho. É justo que eles paguem a conta?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4388, 7 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40597. Acesso em: 22 nov. 2024.

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