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O distanciamento do direito contemporâneo dos preceitos religiosos seculares

As transformações sociais pelas quais a sociedade brasileira vem passando têm sido determinantes para que as normas jurídicas que tiveram origem em valores religiosos sejam modificadas. Isso gera prejuízos para a ordem social?

INTRODUÇÃO

As transformações sociais pelas quais a sociedade brasileira vem passando têm sido determinantes para que as normas jurídicas que tiveram origem em valores religiosos sejam modificadas.

A sociedade passa por diversas transformações sociais, políticas e econômicas que contribuem para a evolução do pensamento jurídico. Os fatos sociais que surgem através de condutas influenciadas por uma nova forma de pensar trazem como consequência a reestruturação do próprio conjunto legal de um país; processo este que, no Brasil, culminou na modificação de algumas normas morais e éticas herdadas de valores da religião, contribuindo também para o acirramento das discussões de outras ainda em vigor; e, por fim, influenciando para que as novas que vêm surgindo acompanhem o pensamento social.


A HISTÓRIA DO DIREITO E DA RELIGIÃO

A importância da religião numa determinada sociedade tem amplos reflexos positivos. A comunhão religiosa faz nascer entre as pessoas uma formidável solidariedade e, esse espírito cooperativo, dá-se mesmo entre indivíduos desconhecidos. Não seria exagero dizer que a religião contribui até para assegurar a sobrevivência e multiplicação dos membros de uma sociedade. Isso porque praticamente todas as religiões compartilham alguns ideais comuns, por exemplo, o amor, a solidariedade, não fazer mal ao próximo etc.

Até mesmo os governantes exigiam que houvesse uma unidade social e religiosa em seu território, pois a não garantia de paz na própria seara haveria de ser prejudicial num ataque inimigo. Esse era um dos argumentos que levavam alguns países a adotar uma religião como oficial. Mesmo que nas civilizações primitivas o chefe de família ou do clã tivesse autonomia para decidir questões privadas e, no âmbito público, vigorassem as regras comuns impostas pelos governantes, ambos deviam obediência aos preceitos religiosos.

Não se pode negar que a religião foi a causa de centenas de guerras. A intolerância religiosa tem feito milhares de vítimas ao longo de toda a história.

Ainda não existiam legislações escritas ou códigos formais nas sociedades primitivas. O costume e as práticas eram transmitidos de forma oral e sempre se fundamentavam em crenças sagradas e divinas. Em virtude disso, o direito arcaico era executado e interpretado por sacerdotes que eram investidos de função espiritual e política. Mesmo com o desenvolvimento das sociedades, a figura do monarca ainda era vista como um soberano que detinha um poder divino. Ou seja, ele devia obediência ao ser supremo, mas as suas ordens eram a expressão da vontade de Deus.

O politeísmo, adoração a diversos deuses, foi, inicialmente, a prática mais comum. A Bíblia narra a história do Deus considerado onipotente, onipresente, onisciente e criador de todas as coisas. Jesus Cristo é o seu filho, que será enviado à terra para remir os pecados da humanidade. A doutrina da santíssima trindade faz do Pai, do Filho e do Espírito Santo uma só pessoa, sendo assim uma religião monoteísta. Os fiéis a Jeová, Deus da Bíblia, obedeciam aos mandamentos divinos revelados a Moisés e aos profetas. Com o advento de Cristo, foram conservados muitos pontos da lei mosaica, porém nascia uma nova doutrina. E esta seria a base sobre a qual emergiriam diversos ordenamentos jurídicos.

“As leis permaneceram durante muito tempo como coisa sagrada. Mesmo na época em que se admitia que a vontade do homem ou os sufrágios do povo podiam produzir uma lei, ainda era necessário que a religião fosse, ao menos, consensual.” (COULANGES, 2011, P. 245)


A RELIGIÃO NO DIREITO BRASILEIRO

Sabe-se que a estrutura jurídica do Brasil foi herdada do sistema jurídico romano-germânico. O direito romano está presente em praticamente todos os ordenamentos jurídicos modernos. Ele reúne o conjunto de normas jurídicas elencadas no Corpus Juris Civilis. Este é uma reunião ordenada de leis e princípios jurídicos reduzidos a um corpo único que disciplinaram os romanos nos diversos períodos da sua história e perduram até os dias de hoje.

Como já foi dito anteriormente, o direito arcaico era costumeiro, transmitido oralmente, e sempre baseado em mandamentos sagrados e divinos. Na sociedade romana tiveram início algumas transformações que objetivavam uma codificação do direito. Nesse período, o cristianismo estava em ascensão e já havia adentrado no império romano.

Constantino I, através do Édito de Milão de 313 d.c, aproximou ainda mais as leis romanas dos mandamentos cristãos. No anterior, ele já havia adotado o cristianismo como religião oficial do império. Tudo isso contribuía para que o direito fosse bastante influenciado pelos valores da religião cristã.

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Sabe-se que, no Brasil, cerca de 90% da população é Cristã. Inclusive, até 1891, a religião oficial do Brasil era o catolicismo. Só após esse período é que foi instituído o Estado laico. O fato desta religião (Cristianismo) ser majoritária no país contribuiu ainda mais para que muitos dos valores incorporados pela nossa Constituição e pelas demais leis fossem inspirados nos mandamentos bíblicos. No entanto, muitos dos conceitos éticos e morais cristãos que foram adotados por diversos ordenamentos jurídicos no mundo têm sido objetos de amplos debates. A sociedade passa por diversas transformações sociais, políticas e econômicas que contribuem para a evolução do pensamento jurídico. Os fatos sociais que surgem através de condutas influenciadas por uma nova forma de pensar trazem como consequência a reestruturação do próprio conjunto legal de um país. Processo este que, no Brasil, culminou na modificação de algumas normas, no acirramento das discussões de outras ainda em vigor e, por fim, tem contribuído para que as novas que vêm surgindo acompanhem o pensamento social.

As leis, nas sociedades primitivas, foram, inicialmente, parte da religião. Quando eram criadas, recebiam o caráter sagrado de revelação divina. Tal aspecto as tornava irrevogáveis.

Em princípio, sendo a lei divina, era imutável. Deve-se ressaltar que as leis jamais eram revogadas. Podia-se certamente promulgar novas leis, mas as antigas subsistiam para sempre, a despeito de qualquer contradição que houvesse entre elas (Coulanges, 2011, p. 246).

O Brasil adotou, como já foi dito, o sistema jurídico Romano-Germânico. Sistema este que teve grande influência dos cânones no seu desenvolvimento.

Os cânones são regras jurídico-sagradas que determinam de que modo devem ser interpretados e resolvidos os vários litígios. Mais que regras, são leis, isto é, são verdades reveladas por um ser superior, onipotente, e a desobediência, muito mais que uma infração, é um pecado. Cânones são os desígnios de Deus, transformados em regras a serem seguidas sem questionamentos pelos homens (Wolkmer, 2012, p. 272).

As normas jurídicas são estudadas pela Ciência do Direito. Quando se debate justiça e direito é necessário o estudo da influência que as Sagradas Escrituras trouxeram à cultura ocidental, como no caso do Brasil, que interessa particularmente a esse estudo.

Há, porém, que se ressaltar que a diversidade de religiões formadas ao longo dos séculos com base nos ensinamentos cristãos denuncia que a Palavra está sujeita a múltiplas interpretações. E é do sentido que se atribui à Palavra que vivem e se orientam as comunidades religiosas. Isto está a confirmar o caráter controvertido da justiça e de suas possíveis concepções materialistas, espiritualistas, ideológicas, racionais (BITTAR, 2008, p. 186).

A diversidade de pensamento, em âmbito religioso ou não, e os amplos debates acerca de justiça, igualdade e liberdade têm sido decisivos para que ocorram mudanças em norma jurídicas herdadas de valores religiosos. A legalização do aborto de anencéfalos, a descriminalização do adultério e a possibilidade de união homoafetiva são apenas alguns exemplos dessa realidade. A Constituição Federal também traz muitos pontos que se relacionam ao tema, tendo em vista que carrega em seu corpo princípios que servem de parâmetro a todas as questões a serem discutidas.

O preconceito deve ser afastado, a sociedade tem que conviver  e harmonizar com as escolhas antagônicas sem que o radicalismo egoísta suplante a liberdade constitucionalmente assegurada (LENZA, 2013, p. 1059).


CONCLUSÃO

Fica, por fim, o dilema: essa decrescente influência da religião na formação do direito contemporâneo brasileiro é beneficial ou prejudicial? Trata-se de uma questão que dificilmente alcançará um consenso social. Até mesmo por causa da diversidade de pensamentos em muito influenciada pelas crenças religiosas dos indivíduos. “(...) trata-se de não se invocar razões religiosas, motivos de crença ou interesses outros como escusa para o cumprimento dos deveres cívicos e humanos. Isso é a chave para a compreensão da diferença entre lei humana e lei divina. Se a lei humana mandar algo diverso da lei divina, é lícito ao homem desobedecer a lei humana?” (BITTAR, 2008, P. 197).

Não se pode também esquecer que o Brasil tem como princípio constitucional a laicidade.

“De se lado, o governo do Estado respeita e até protege o livre exercício de suas funções pela Igreja, declarando feriados os dias de preceito religioso da maioria da população, reforçando a segurança nas grandes manifestações de fé em santuários de renome internacional e proibindo por lei o desrespeito a imagens ou objetos do culto católico, ainda que, como no Brasil, o Estado se declare absolutamente leigo, tolerando todas as associações culturais e religiosas que não atentem contra a ordem pública e o bem comum.” ( DE CICCO, 2009, p. 146).

A conclusão a que se chegou com os estudos que possibilitaram este trabalho é que diversos valores herdados da religião, em especial do Cristianismo, foram ou são pilares importantes no Estado Democrático de Direito do Brasil. No entanto, há certos valores que, tendo em vista a mudança de paradigma social, tornaram-se insustentáveis no ordenamento jurídico.


REFERÊNCIAS

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de Filosofia do Direito. 6. Ed. São Paulo: Atlas, 2008.

CLAUDE, Rivière. Socioantropologia das Religiões. São Paulo: Ideias e Letras, 2013.

Coulanges, fustel de. A Cidade Antiga. 2.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

DE CICCO, Cláudio. Teoria Geral do Estado e Ciência Política. 2.ed. ver., atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

Elpídio, donizetti. Curso Didático de Direito Civil. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2013.

Lenza, pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 17.ed. ver., atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013.

Vade mecum. 16.ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

Wolkmer, antônio Carlos. Fundamentos de História do Direito. 7.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012.

Sobre os autores
Sávio Oliveira Lopes

Analista Judiciário (área judiciária - especialidade Direito) do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo (TJES). Ex-Juiz leigo do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJBA). Trabalhou em substituição como assessor de Juiz no TJES. Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Cândido Mendes (UCAM). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes (UCAM). Pós-graduando em Direito de Família e Sucessões no Instituto Legale Educacional. Foi revisor de monografias jurídicas durante 8 anos. É autor de 6 livros de poesia, quais sejam, "Variações de Sentido", "Retinas de cada tempo", "O silêncio do último pôr do sol", "Fragmentos dos comigos de mim", "Redemoinhos da minha cabeça" e "Antologia poética". Coautor dos livros "Antologia Jubileu de Ouro da UNIMONTES" e "Além da terra, além do céu."

Maria Aparecida de Oliveira

Ex-professora da UNIMONTES. Ex-advogada. Orientadora deste artigo científico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Sávio Oliveira; OLIVEIRA, Maria Aparecida. O distanciamento do direito contemporâneo dos preceitos religiosos seculares. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4387, 6 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40608. Acesso em: 5 nov. 2024.

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