RESUMO:
O presente artigo envolve uma problemática jurídica rotineira em torno da leitura da legislação infraconstitucional ante a supremacia da norma constitucional, ou seja, a necessária prevalência da Constituição Federal sobre as demais normas pertencentes ao ordenamento jurídico de um país forjado na concepção de Estado Democrático de Direito.
Para tanto, passar-se-á a estudar o tema sob o prisma da hierarquia das normas, ou seja, a Constituição Federal como norma suprema, da qual decorrem as demais normas.
PALVRAS-CHAVES: leitura constitucional; leitura infraconstitucional; supremacia constitucional; hierarquia das normas; estado democrático de direito.
RESUMEN:
Este artículo trata de problemas legales de rutina alrededor de la lectura de la legislación infra-constitucionales ante la supremacía de la norma constitucional, es decir, la prevalencia necesaria de la Constitución sobre todas las demás regulaciones que pertenecen al sistema jurídico de un país forjado en el estado democrático de direcho.
Para ello, van a pasar a estudiar la cuestión desde la perspectiva de la jerarquía de las normas, es decir, la Constitución Federal como norma suprema, de la que brotan las otras reglas.
PALABRAS-CLAVES: lectura constitucional; lectura legislativa; supremacía constitucional; jerarquía de las normas; estado democrático de direcho.
SUMÁRIO: I. A ideia de supremacia da Constituição: a Constituição como Lei Máxima. II. Leitura constitucional das normas penais e processuais penais. III. Princípios constitucionais na interpretação constitucional. IV. Conclusão.
I. A ideia de supremacia da Constituição: a Constituição como Lei Máxima.
No ordenamento jurídico brasileiro encontramos diversas normas, sendo que todas derivam de uma norma maior, a qual recebe o nome de Constituição Federal, e que por sua vez deve servir como matéria prima legal, isto porque o Brasil possui uma Constituição rígida e democrática.
A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada no dia 05 de outubro do ano de 1988, deve ser, portanto, considerada como referência para a elaboração das demais normas jurídicas.
Prevalece no meio jurídico internacional que toda constituição deve ser composta de garantias e direitos fundamentais, devendo o constituinte limitar o poder do Estado, determinando seus deveres e tornando possível o processo democrático em um Estado de Direito.
Cabe destacar que o Estado Democrático de Direito, como bem ensina MARCELO NOVELINO (2012:44), surge com o término da Segunda Grande Guerra Mundial, após as notórias atrocidades cometidas contra vários seres humanos à época, práticas estas legitimadas por um Estado apenas de Direito. Neste momento histórico, observou-se a necessidade de se limitar o poder do Estado. Buscou-se, então, a introdução nos ordenamentos jurídicos internacionais de mecanismos que garantissem principalmente a soberania popular, a garantia jurisdicional da supremacia da Constituição, a busca pela efetividade dos direitos fundamentais e a ampliação do conceito de democracia.
Deste modo, as constituições modernas, como é o caso da brasileira de 1988, buscam expressar a diretriz jurídica do país, com limitações ao Poder do Estado e proteção aos direitos e garantias notoriamente ditos como fundamentais (leia-se necessários) a todos os seres humanos.
Tal conceituação é extremamente importante para se entender o porquê da Constituição estar no ápice da hierarquia jurídica de um país: evitar o retrocesso social.
Deste modo, a criação de qualquer norma deve ser compatível com os preceitos constitucionais, onde os ditames constitucionais devem ser utilizados como paradigma para a elaboração de normas infraconstitucionais.
O próprio conceito de Constituição ajuda a explicar sua supremacia:
“[...] Constituição deve ser entendida como a lei fundamental e suprema de um Estado, que contém normas referentes à estruturação do Estado, à formação dos poderes públicos, forma de governo e aquisição do poder de governar, distribuição de competências, direitos, garantias e deveres dos cidadãos.” (MORAES, 2006:02)
Ainda, complementando o conceito de Constituição:
“[...] a Constituição é concebida como um conjunto de normas, um estatuto onde se acham reunidas as normas de organização do Estado.” (CARVALHO, 2005: 193)
Como visto, a Constituição é norteadora dos atos legais praticados no e pelo Estado, não sendo apenas a lei fundamental do Estado, mas como ensina CARVALHO (2005:207), trata-se também da lei fundamental da sociedade,
“[...] devendo estabelecer não só a conformação jurídica do Estado, como também princípios relevantes para uma sociedade aberta, como os princípios fundamentais da família e os estruturantes da ordem econômica e social.”
II. Leitura constitucional das normas penais e processuais penais.
Na esfera do Direito Penal e Processual Penal, a Constituição brasileira, como ensina ROBERTO DELMANTO JÚNIOR (2001:24), “estipula inúmeras disposições pertinentes ao processo penal, com matriz sobretudo garantidora das liberdades individuais, que têm eficácia imediata”.
Portanto, é fácil compreender que na Constituição há a prevalência de direitos garantidores da preservação da liberdade do cidadão. Estando estes consagrados em nosso ordenamento supremo através dos direitos e garantias individuais, elencados, sobretudo, no artigo 5º da Constituição Federal, os quais dão origem a determinados princípios constitucionais, como, por exemplo, da preservação da liberdade do indivíduo.
Estes preceitos constitucionais necessitam, por sua vez, serem “interpretados de maneira extensiva, resguardando-se, ao máximo, as liberdades da pessoa” (DELMANTO JR, 2001:14).
É importante frisar que o artigo 60 da Carta Magna prevê clausulas pétreas, onde em seu § 4º respectivamente combinado com o inciso IV dispõe que os direitos e garantias individuais jamais poderão ser abolidos por emendas constitucionais, tornando assim algumas disposições constitucionais imutáveis.
Destarte, como bem exemplifica DELMANTO JR. (2001:26-28), a Carta Magna prevê algumas cláusulas pétreas garantidoras da liberdade individual, conforme segue resumidamente:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;
LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;”
Destaca-se que os incisos acima citados por serem imutáveis (cláusulas pétreas) contribuem para a formação de princípios garantidores da liberdade individual.
Em razão do exposto até aqui, tem-se que as normas infraconstitucionais devem ser interpretadas de acordo com o que dispõe a Constituição, garantindo a supremacia constitucional e o Estado Democrático de Direito, conforme amplamente defendido no plano doutrinário:
“A supremacia das normas constitucionais no ordenamento jurídico e a presunção de constitucionalidade das leis e atos normativos editados pelo poder público competente exigem que, na função hermenêutica de interpretação do ordenamento jurídico, seja sempre concedida preferência ao sentido da norma que seja adequado à Constituição Federal. Assim sendo, no caso de normas com várias significações possíveis, deverá ser encontrada a significação que apresente conformidade com as normas constitucionais, evitando sua declaração de inconstitucionalidade e consequente retirada do ordenamento jurídico.” (MORAES, 2006:11)
Na mesma linha de raciocínio JOSÉ AFONSO DA SILVA afirma que:
“A constituição é algo que tem, como forma, um complexo de normas (escritas ou costumeiras); como conteúdo, a conduta humana motivada pelas relações sociais (econômicas, políticas, religiosas etc.); como fim, a realização dos valores que apontam para o existir da comunidade; e, finalmente, como causa criadora e recriadora, o poder que emana do povo. Não pode ser compreendida e interpretada, se não se tiver em mente essa estrutura, considerada como conexão de sentido, como é tudo aquilo que integra um conjunto de valores.” (AFONSO DA SILVA, 2008:39).
E ainda complementando:
“A Constituição é concebida, por isso mesmo, como ordem fundamental, material e aberta de uma comunidade. Como ordem fundamental revela sua posição de supremacia, e como ordem material contém, além de normas, uma ordem de valores, que se expressa no conteúdo de direito que não pode ser desatendido pelas normas infraconstitucionais. Considera-se ainda que a Constituição traduz uma ordem aberta, porquanto mantém uma permanente interação com a realidade. Há, desse modo, uma conexão de sentido entre os valores compartilhados e aceitos pela comunidade política e a ordenação fundamental e suprema representada pela Constituição, cujo sentido jurídico somente pode ser apreciado em relação à totalidade da vida coletiva.” (CARVALHO, 2005:196)
Entendendo que há a necessidade de interpretar a constituição de forma que as demais normas infraconstitucionais não colidam com os interesses consagrados nesta, o professor JOSÉ AFONSO DA SILVA leciona:
“Nossa Constituição é rígida. Em consequência, é a lei fundamental e suprema do Estado brasileiro. Toda autoridade só nela encontra fundamento e só nela confere poderes e competências governamentais. Nem o governo federal, nem os governos dos Estados, nem os dos Municípios ou do Distrito Federal são soberanos, porque todos são limitados, expressa ou implicitamente, pelas normas positivas daquela lei fundamental. Exercem atribuições nos termos nela estabelecidos.
Por outro lado, todas as normas que integram a ordenação jurídica nacional só serão válidas se se conformarem com as normas da Constituição Federal.” (AFONSO DA SILVA, 2008:46) (Grifou-se.)
Ainda com os ensinamentos do professor JOSÉ AFONSO DA SILVA (2008:47), cabe destacar que o princípio da supremacia constitucional resulta da compatibilidade vertical das normas do nosso ordenamento jurídico, no sentido que as normas de grau inferior somente valerão se forem compatíveis com as normas de grau superior, sendo o grau mais elevado a Constituição. Desta forma, as normas que não forem compatíveis com o estabelecido constitucionalmente serão consideradas inválidas.
Sobre esta diferenciação entre norma constitucional e a infraconstitucional o professor RAUL MACHADO HORTA faz uma pertinente citação do jurista mexicano GARCIA MAYNEZ:
“Podendo dispor de validez, de vigência e de eficácia, as normas jurídicas não se comportam igualmente dentro do ordenamento jurídico. Na exaustiva classificação de Garcia Maynez, as normas jurídicas se diferenciam pelo âmbito material e pessoal de validez, a hierarquia, a forma, as relações de complementação, a vontade das partes e as sanções. Há normas preceptivas e normas proibitivas, normas taxativas e normas dispositivas, normas constitucionais e normas ordinárias, normas primárias e normas secundárias. No domínio da Constituição, interessa particularizar a natureza da norma constitucional, que delimita o campo desta análise. A norma constitucional é a norma primária do ordenamento jurídico, ocupando o lugar mais elevado na pirâmide do sistema jurídico. A norma constitucional é a norma fundamental que ocupa o vértice do ordenamento jurídico. A posição de hierarquia suprema da norma constitucional desencadeia a sanção da inconstitucionalidade, quando se verificar o conflito entre a norma fundamental e primária e as normas ordinárias e secundárias.” (HORTA, 2002:194) (Grifou-se.)
O jurista e procurador da república DANIEL SARMENTO (2000:28) compartilha do mesmo entendimento, onde ensina que a Constituição acha-se em nosso ordenamento hierarquicamente como a lei fundamental, que condiciona a validade e permeia a interpretação de todas as demais normas jurídicas e que por esta razão a constituição pode ser considerada fonte comum de validade de todas as normas, conferindo coesão ao ordenamento jurídico. Portanto, qualquer um que pretenda interpretar a lei fundamental ou aplicá-la a casos concretos deverá buscar arduamente sua resposta entre diferentes ditames constitucionais, tais como os princípios constitucionais.
III. Princípios constitucionais na interpretação constitucional.
Os princípios constitucionais, de acordo com o professor KILDARE GONÇALVES CARVALHO (2005:355), dão coerência e consistência ao complexo normativo da Constituição, além de estabelecerem as bases e os fundamentos para a compreensão constitucional, expressando um conjunto de valores do constituinte na elaboração da Constituição, orientando ainda as suas decisões políticas fundamentais. Os princípios expressam valores fundamentais adotados pela sociedade política, constantes no ordenamento jurídico, e informam materialmente as demais normas, determinando integralmente qual deve ser a substância e o limite do ato que os executam.
Com esta concepção Carvalho anota:
“[...] os princípios constitucionais atuam no sentido de impedir a produção de normas jurídicas que visem reduzir a sua eficácia, uma vez que tais normas se voltam para a efetivação dos princípios, como mandamentos nucleares do sistema constitucional. A função hermenêutica dos princípios permite aos juízes extrair a essência de uma determinada disposição legal, servindo ainda de limite protetivo contra a arbitrariedade.” (CARVALHO, 2005:357)
Corroborando ainda com esta interpretação, o professor ANDRÉ RAMOS TAVARES leciona com muita clareza sobre o auxílio e a importância prestados pelos princípios constitucionais no entendimento das demais normas, como se pode observar:
“Os princípios constitucionais são normas presentes na Constituição que se aplicam às demais normas constitucionais. Isso porque são dotados de grande abstratividade, e têm por objetivo justamente imprimir determinado significado às demais normas. Daí resulta o que se denomina sistema constitucional, que impõe a consideração da Constituição como um todo coeso de normas que se relacionam entre si (unidade da Constituição). Os princípios constitucionais, portanto, servem de vetores para a interpretação da Constituição.” (TAVARES, 2007:100)
IV. Conclusão.
Com a breve exposição argumentativa trazida por este trabalho, componente de um breve estudo sobre a supremacia constitucional e sobre a importância dos princípios constitucionais, buscou-se trazer a luz a necessidade de ser realizada uma análise garantista nas normas evocadas constitucionalmente frente às normas infraconstitucionais, com destaque para aquelas com cunho penal, devido seus efeitos mais coercitivos na esfera de liberdade do cidadão.
BIBLIOGRAFIA:
AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. 11ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
DELMANTO JÚNIOR, Roberto. As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19ª ed. São Paulo: Atlas, 2006.
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Método, 2012.
SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. 1ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000.
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.