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O sistema federal e a complexidade da sua recepção pela Constituição indiana

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Agenda 16/07/2015 às 16:21

4  A PARTILHA DE COMPETÊNCIAS COMO INSTRUMENTO DE CONCILIAÇÃO E O TRATAMENTO DIFERENCIADO AO ESTADO DE JAMMU E KASHMIR

Não obstante a assimetria da federação indiana, manifesto é o desejo de unidade. Nesse sentido, o sistema de discriminação de competências entre os entes federativos adotado pela Constituição de 1950, que veio a abolir o sistema de castas, procedeu à enumeração de três listas, quais sejam, a primeira, que elenca as competências exclusivas da União, sendo constituída de 97 matérias, a segunda, que apresenta as competências exclusivas dos estados, da qual constam 66 matérias, e uma terceira lista que define o rol das 47 matérias que se inserem no âmbito das competências concorrentes. Os poderes residuais são da União.

Irretorquivelmente, tal distribuição de competências procura trazer solução ao elevado grau de assimetria que caracteriza a federação indiana A senda seguida para a consecução desse resultado é a do fortalecimento do poder da União, buscando a uniformização do Direito e sua aplicação territorial não adstrita a setores populacionais e religiosos.

A conciliação da pluralidade imanente à sociedade indiana é obtida com o manejo das competências concorrentes e o estabelecimento de artigos da Constituição que preveem dispositivos de aplicação específica a determinado estado da federação, de que é exemplo o paradigmático art. 370.

Sendo assim, além das matérias que ordinária e tradicionalmente são inseridas no âmbito de competência da União, compete a esta no Estado Indiano regular e regulamentar o sistema financeiro e bancário, tendo ainda presença marcante na implementação das políticas sociais, além de possuir papel determinante na orientação e destinação das transferências intergovernamentais.

O art. 3º da Constituição ainda franqueia à União, por meio do Parlamento Federal, a criação de novos estados, desmembrando territórios e alterando nomes, medida que prescinde da concordância do governo do(s) estado(s) envolvido(s) e da população diretamente interessada. Aos estados compete, dentre outras atribuições, o controle das forças policiais e a legislação sobre seguro-desemprego.

Traço marcante, contudo, da assimetria de fato e de direito do Estado Indiano é o tratamento diferenciado atribuído ao estado de Jammu e Kashmir, no art. 370 13 da Constituição. A esta unidade da federação indiana, de maioria muçulmana, é reconhecido o direito a uma identidade autônoma subnacional. Não obstante os representantes do estado de Jammu e

Kashmir tenham participado das deliberações da Assembleia Constituinte, a Conferência Nacional, que forjou o governo interino do estado, o excluiu da organização constitucional ordinária do Estado Indiano, reservando-lhe o direito de convocar uma Assembleia Constituinte para elaboração de sua própria Constituição, o que se consubstanciou em 26 de janeiro de 1957.

Destarte, o estado de Jammu e Kashmir recebe o influxo de duas ordens constitucionais, a da Constituição da Índia e a de sua própria Carta Política. A primeira determina a sua posição na federação indiana. A segunda regula os respectivos instrumentos de governo e de implementação das políticas públicas.


5  CONCLUSÃO

O estudo do sistema federal, sob a óptica da complexidade de sua recepção na Índia, não pode olvidar a pluralidade étnica, cultural, religiosa e econômica da sociedade indiana, reveladora de uma assimetria de fato eminente. Reclama-se, em tal contexto, uma resposta jurídica, por intermédio de institutos capazes de lidar com a diversidade sem exterminá-la, mas também sem permitir que esta extermine o Estado.

A solução encontrada ainda nos tempos da dominação britânica foi a adoção da forma federal de estado, que a Constituição de 1949 delineou, prestigiando o fortalecimento dos poderes da União em prol da construção de uma unidade nacional. As particularidades regionais, porém, não foram olvidadas, sendo atendidas por meio da correta modulação das competências concorrentes, ou ainda, em casos extremos, como o do estado de Jammu e Kashmir, pela outorga de uma autonomia assimétrica relativamente à estrutura federal ordinária.

Nos últimos anos, contudo, tem-se verificado um reclame da sociedade civil indiana no sentido do fortalecimento da autonomia regional, fenômeno que deve ser acompanhado com atenção. Passada a fase de consolidação da unidade nacional, por meio de uma União hipertrofiada, talvez seja o momento de se privilegiar o princípio da subsidiariedade, prestigiando-se a autonomia dos entes menos abrangentes e fortalecendo-se os mecanismos democráticos de participação pública direta na tomada das decisões políticas.

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Abstract:Study the reception of the federal principle as a distribution model of discipline of political power according to the territory in India means unraveling the complexity of harmonizing the Hindu religious right with the pragmatism of English Common Law. The difficulty of analysis is emphasized by ethnic, cultural, religious and economic plurality of that society, revealing an eminent asymmetry. Calls up in such a context, a legal response by institutions able to deal with diversity without exterminate it, but also without allowing this exterminate the state. The solution, even in the times of British rule, was the adoption of a federal form of government. Federalism outlined by the Constitution of 1949 honored the strengthening of the Union's powers in favor of building a national unity. There was no direct importation of US federal model. A legal acclimatization was essential, especially because of the regional particularities revealing the sharp asymmetry of that State. This article examines the scenario that occurred receiving the federal model and how it gave its consolidation throughout the twentieth century.

Keywords: Federalism. Reception. Circulation models. Hindu Law. Indian Law.


Notas                                                 

  1. Embora a Constituição espanhola não funde um Estado Federal, mas sim um Estado das autonomias espanholas, com discriminação constitucional de competências
  2. Segundo Daniel J. Elazar (1984), para que seja exitosa e promova o bem comum, a distribuição efetiva do poder real entre diversos centros de decisão política deve ser negociada por arranjos cooperativos de que participem efetivamente todos os atores.
  3. Procedendo à valiosa distinção entre os conceitos de Estado Unitário, Estado Federal e Confederação de Estados, Tércio Sampaio Ferraz Júnior (2011) assevera que “A ordem jurídica de um Estado Federal é, pois, uma ordem integrante e isto a separa tanto dos Estados unitários quanto dos estados confederados. Nos Estados unitários, a ordem é uma só e produzida por uma competência constituinte cuja principialidade é também única. Já nos Estados confederados, a ordem jurídica também é uma só, mas produzida pelo encontro de competências constituintes cada qual provida integralmente do seu atributo da principialidade. No primeiro caso, trata-se de um sistema que não se reparte em subsistemas. No segundo, é um sistema constituído por sistemas. No Estado federal, temos um sistema que se reparte em subsistemas.”. No mesmo sentido, leciona Ana Lucia de Lyra Tavares que “O Estado Federal distingue-se das demais formas principalmente por ser um estado internamente composto, isto é, apresentase na ordem jurídica internacional como um estado unitário. Na lição de Pontes de Miranda, “o adjetivo federal não interessa ao direito das gentes, nem dele emana”. E, mais adiante, realça: “a zona limítrofe entre a confederação e o estado federal é aquela em que os estados se obrigam a não proceder no plano supra-estatal ut singuli.” (1979, p. 36).
  4. Há quem ainda indique um quarto vetor para atender à competência tributária e da participação no produto da arrecadação dos entes mais abrangentes (vertente consentânea com o federalismo cooperativo), ensejando a respectiva autonomia financeira. Neste artigo adota-se o entendimento de que o quarto vetor indicado, em verdade, já se encontra inserido na autonomia administrativa. Ademais, prestigiar tal orientação importaria em valorizar o ingrediente econômico na consubstanciação do princípio federativo. Este autor não compartilha dessa orientação. Ao contrário, entende que o princípio federativo, cada vez mais, deve ser concebido como mecanismo jurídicopolítico de distribuição espacial do poder do Estado, como o era originalmente em “Os Federalistas”. Somente essa compreensão permite uma ligação mais direta desse princípio com a democracia e a tutela dos direitos fundamentais.
  5. O mencionado sistema de governo, ao que tudo indica, foi adotado para adaptar o sistema monárquico à forma de governo republicana.
  6. v.g., lançar e arrecadar taxas, direitos, impostos e tributos, pagar dívidas e prover a defesa comum e o bem-estar geral dos Estados Unidos; organizar e manter exércitos e uma marinha de guerra; estabelecer leis uniformes de naturalização; estabelecer legislação uniforme de falência; regulação do comércio, tanto em nível internacional quanto interestadual, e com as tribos indígenas.
  7. Tais como, desrespeitar os writs do habeas corpus; regular leis ex post facto; taxar produtos de exportação e faltar com a prestação de contas e não tornar público todos os recursos financeiros recebidos e despendidos.
  8. Tradução livre de: “is understood to mean federalism based on unequal powers and relationships in political, administrative and fiscal arrangements spheres between the units constituting a federation” (RAO; SINGH, 2004, p. 2).
  9. Há autores, como Louise Tillin (2006), que, embora reconheçam a assimetria de fato do Estado indiano, questionam a efetividade da assimetria jurídica da federação delineada pela Constituição de 1950. A autora não reconhece no art. 370 da Constituição – símbolo dessa assimetria normativa - um instrumento que represente um grau mais elevado de autogoverno para o Estado de Kashmir se comparado com os demais.
  10. Responsáveis pela introdução da estrutura política e social com base no sistema de castas.
  11. A Índia participou da Primeira Guerra Mundial ao lado da Inglaterra.
  12. Peritos que indicavam aos juízes ingleses, com base nos dharmasastras e nibandhas a solução aplicável ao litígio que lhes era apresentado. Esse sistema funcionou até 1864.
  13. “Art. 370.  Temporary provisions with respect to the State of Jammu and Kashmir.-(1) Notwithstanding anything in this Constitution,- 
  1. the provisions of article 238 shall not apply in relation to  the State of Jammu and Kashmir; 
  2. the power of Parliament to make laws for the said State shall  be limited to (i)  those matters in the Union List and the Concurrent List which, in consultation  with  the Government of the State, are declared  by  the President  to  correspond  to matters specified in the  Instrument  of Accession  governing  the  accession of the State to the  Dominion  of India  as  the matters with respect to which the Dominion  Legislature may make laws for that State;  and  (ii)  such other matters in the said Lists as, with the concurrence of the Government of the State, the President may by order specify.

Explanation.-For  the purposes of this article, the Government of  the State  means the person for the time being recognised by the President as  the  Maharaja  of Jammu and Kashmir acting on the  advice  of  the Council of

Ministers for the time being in office under the Maharaja's Proclamation dated the fifth day of March, 1948;

  1. the  provisions of article 1 and of this article shall  apply  in relation to that State;
  2. such of the other provisions of this Constitution shall apply  in relation to that State subject to such exceptions and modifications as the President may by order _358 specify: 

Provided  that no such order which relates to the matters specified in the  Instrument of Accession of the State referred to in paragraph (i) of  sub-clause  (b)  shall be issued except in consultation  with  the Government of the State:

Provided  further  that no such order which relates to  matters  other than  those referred to in the last preceding proviso shall be  issued except with the concurrence of that Government.

  1. If the concurrence of the Government of the State referred to  in paragraph  (ii)  of  sub-clause  (b) of clause (1) or  in  the  second proviso  to  sub-clause  (d)  of  that  clause  be  given  before  the Constituent  Assembly  for the purpose of framing the Constitution  of the  State  is convened, it shall be placed before such  Assembly  for such decision as it may take thereon.
  2. Notwithstanding  anything  in the foregoing  provisions  of  this article,  the President may, by public notification, declare that this article  shall  cease to be operative or shall be operative only  with such  exceptions  and  modifications  and from such  date  as  he  may specify: 

Provided  that  the recommendation of the Constituent Assembly of  the State  referred  to  in  clause  (2) shall  be  necessary  before  the President issues such a notification.”


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Sobre o autor
Sergio Paulo de Abreu Martins Teixeira

Procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio e Professor universitário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, Sergio Paulo Abreu Martins. O sistema federal e a complexidade da sua recepção pela Constituição indiana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4397, 16 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40959. Acesso em: 23 dez. 2024.

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