A comercialização de produtos "piratas" (falsificados) é considerada infração penal pela legislação brasileira, conforme se observa do §2º do art.184 do Código Penal: "Na mesma pena do §1º (Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa) incorre quem, com o intuito de lucro direto ou indireto, distribui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire, oculta, tem em depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma reproduzido com violação do direito de autor, do direito de artista intérprete ou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda, aluga original ou cópia de obra intelectual ou fonograma, sem a expressa autorização dos titulares dos direitos ou de quem os represente".
Em caso emblemático sobre o tema, a Justiça de 1º Grau do Estado de Goiás absolveu uma mulher denunciada por expor à venda cerca de 727 (setecentos e vinte e sete) CDs e DVDs, todos falsificados.
Segundo a peça acusatória, no dia 04 de fevereiro de 2010, a denunciada P. M. S. estava com a citada quantidade de produtos falsificados expostos à venda na cidade de Goiânia, sendo que, por volta das 18:40 hs, a mesma tentou fugir após perceber a presença da polícia, ocasião em que fora presa em flagrante por violação ao art.184, §2º do CP. Todos os produtos falsificados foram apreendidos.
Realizada a instrução processual, o Ministério Público requereu a condenação nos termos da denúncia, ao passo que a defesa pediu a absolvição pelo reconhecimento do princípio da insignificância.
Ocorre que, o juiz sentenciante, Dr. ADEGMAR JOSÉ FERREIRA, no dia 30 de agosto de 2013, prolatou uma sentença absolutória, haja vista o reconhecimento do princípio da adequação social. Calha trazer à baila trecho de referido decisum, in verbis:
Diante deste contexto, não pairam dúvidas de que a acusada efetivamente perpetrou o fato que lhe é imputado na exordial acusatória.
Contudo, ainda será preciso analisar a adequação típica deste agir, isto é, se a comercialização de cópias não autorizadas de CDs/DVDs caracteriza infração penal, mormente considerada a sua nítida aceitação social.
(...)
A teoria da adequação social foi concebida pelo grande jurista e filósofo alemão HANS WELZEL, que preconiza a ideia de que, apesar de uma conduta se subsumir ao tipo penal, é possível deixar de considerá-la típica quando socialmente adequada, isto é, quando estiver de acordo com a ordem social. É possível afirmar que, em razão da sua aplicação, não são consideradas típicas as condutas praticadas dentro do limite de ordem social normal da vida, haja vista serem compreendidas como toleráveis pela própria sociedade.
(...)
Basta caminhar pelo centro de Goiânia para se encontrar milhares de pessoas comprando CDs e DVDs falsificados ('pirateados', como são conhecidos popularmente) com toda tranquilidade, uma vez que não encaram a prática de maneira criminosa ou mesmo imoral. Aliás, para boa parte da população esta é uma das únicas formas de se adquirir produtos que visem a formação de seu capital cultural. É sabido que existem grandes gravadoras e produtoras que controlam a criação, produção e circulação dos produtos de entretenimento, ademais da altíssima taxa tributária, impedindo que as parcelas mais pobres tenham acesso à produção artística e cultural.
O mais absurdo é que camadas mais elevadas da sociedade patrocinam o suposto crime em tela, diuturnamente, através da 'internet', 'ipods', 'iphones' e outros. Carros luxuosos dotados de equipamentos habilitados à reprodução de músicas em formato digital ('MP3'), as quais, são 'baixadas' de 'sites' da 'internet', sem qualquer valor adimplido aos detentores dos direitos autorais, circulam livremente pela cidade. Crianças e adolescentes de classes mais abastadas, circulam com seus 'Ipods', 'Ipads', 'Iphones' e aparelhos outros, ouvindo canções que foram objeto de 'download' nas mesmas circunstâncias.
Mas contra tais pessoas, existe algum tipo de coerção estatal? Há nota da expedição de mandado de busca e apreensão a residências de pessoas que realizam gravação de mídias deste gênero, em violação ao art. 184, 'caput', do CP? Algum condutor de veículo, que tenha sido alvo de abordagem de rotina pela atividade policial, flagrado fazendo uso de mídia 'pirateada', foi criminalmente autuado na forma do art. 184, 'caput', do CP?
Jamais. Pois, o fato é que em sua grande maioria, a reprimenda penal é direcionada e investida contra as classes baixas. Desta forma que as condutas imorais típicas das classes despossuídas são tipificadas nos estatutos penais, como o furto, roubo, falsificação e etc.. Enquanto as práticas imorais típicas das classes possuidoras, não são tipificadas, ou quando o são tem penas brandas, como os crimes tributários ou contra o meio ambiente, e amiúde, são precisamente estes os crimes em que a afetação social é maior, tendo em vista que toda a população é prejudicada. Para ficar em um exemplo, temos o jogo do bicho, que notoriamente leva à ruína, sem qualquer controle, milhares de pessoas todos os anos, mas que não passa de uma contravenção penal.
Logo, precisamente aquelas que não conseguiram, ou muitas vezes foram impedidas, de se encaixar no mercado de trabalho formal e buscaram sustento no comércio informal, acabam sendo reprimidas pela legislação penal simbólica e voltada, exclusivamente, à tutela de grupos econômicos específicos, como forma de controle social de determinadas parcelas sociais. LUIZ FLAVIO GOMES e ANTONIO GARCIA-PABLOS DE MOLINA, com muita propriedade, lecionam sobre o tema:
O controle social é altamente discriminatório e seletivo. Enquanto os estudos empíricos demonstram o caráter majoritário e ubíquo do comportamento delitivo, a etiqueta do delinquente, sem embargo, manifesta-se como um fator negativo que os mecanismos de controle social repartem com o mesmo critério de distribuição dos bens positivos (fama, riqueza, poder etc.): levando em conta o status e o papel das pessoas. De modo que as 'chances' ou 'riscos' de ser etiquetado como delinquente não dependem tanto da conduta executada (delito), senão da posição do indivíduo na pirâmide social (status). Os processos de criminalização, ademais, vinculam-se ao estímulo da visibilidade diferencial da conduta desviada em uma sociedade concreta, isto é, guiam-se mais pela sintomatologia do conflito que pela etiologia do mesmo (visibilidade versus latência). [GARCÍA-Pablos de Molina, Antônio; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 4 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.]
Atualmente, é normal estarmos em bares, restaurantes, feiras, na rua, e nos depararmos com indivíduos vendendo objetos pirateados - e não é segredo para ninguém a origem falsificada de tais produtos. A reação da sociedade não é de rechaço para com essa ação, pelo contrário, é aceito com normalidade.
(...)
Além da reação popular de não repudiar a ação, vemos também a manifestação de diversos artistas que reconhecem que a pirataria serve como propaganda de seus trabalhos. Exemplo disso é o que afirmou o ilustre escritor internacionalmente renomado, Paulo Coelho, em seu blog paulocoelhoblog.com, em 2012 (original em inglês, tradução em http://blogs.estadao.com.br/link/paulo-coelho-defende-pirataria-e-ataca-sopa/):
(...)
Esta não é, de nenhuma maneira, uma prática rechaçada pela sociedade de modo expresso, notório, tendente a justificar a contundente intervenção penal.
Assim sendo, transparece que a prática ilícita cometida pelo denunciado seria passível de contenção mais razoável e proporcional com a só intervenção do Direito Administrativo, quem sabe com mera apreensão dos produtos contrafeitos e imposição de sanção pecuniária. E isto para não entrar nas raízes que fazem com que tais práticas existam na sociedade e tenham, de alguma forma, de serem punidas.
Finalmente, não há como conceber a imposição do cárcere a uma conduta que encontra tolerância na quase totalidade da sociedade.
Nessa esteira, tem-se que a referida absolvição foi assaz correta, a partir de uma leitura constitucional do Direito Penal. De fato, é notório que a Constituição Federal de 1988 é manifestamente garantista, sendo que um dos mais importantes princípios penais é o que diz que o direito penal deve ser a ultima ratio a ser usada contra os cidadãos, devendo ser usado somente quando os demais ramos do ordenamento jurídico se mostrarem ineficazes.
Por outro lado, há que enfatizar que somente as condutas tidas como inaceitáveis pela sociedade é que podem ser tipificadas como delituosas, isto é, rotuladas como "criminosas" e, assim, passíveis de punição corporal.
Ocorre que, a venda de produtos "piratas" (CDs e DVDs) em nosso país é um fato amplamente aceito por nossa sociedade como "normal", aceitável, natural. Ou seja, tal conduta não pode continuar a ser rotulada como criminosa, tendo em vista que o corpo social não a considera como tal. Nessa seara, o penalista FERNANDO CAPEZ[1] leciona que:
(...) Adequação Social: todo comportamento que, a despeito de ser considerado criminoso pela lei, não afrontar o sentimento social de justiça (aquilo que a sociedade tem por justo) não pode ser considerado criminoso.
Para essa teoria, o Direito Penal somente tipifica condutas que tenham relevância social. O tipo penal pressupõe uma atividade seletiva de comportamento, escolhendo somente aqueles que sejam contrários e nocivos ao interesse público, para serem erigidos à categoria de infrações penais; por conseguinte, as condutas aceitas socialmente e consideradas normais não podem sofrer este tipo de valoração negativa, sob pena de a lei incriminadora padecer do vício de inconstitucionalidade. (Curso de Direito Penal, volume 1, Parte Geral. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012).
Assim, considerando que tanto a compra como a venda de CDs e DVDs "piratas" no Brasil é um fato considerado normal pela sociedade, não há que se falar em crime, em homenagem ao princípio da adequação social.
Nem venham dizer que o costume não pode revogar a lei - argumento bastante usado pelos defensores da criminalização da referida conduta -, pois o que dizer da conduta dos pais que furam as orelhas dos bebês de sexo feminino para futuramente colocar brincos? Como se sabe, a ofensa a integridade física (inclusive a de furar a orelha) de qualquer pessoa consubstancia o crime de lesão corporal (art.129 do Código Penal: Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem), passível de pena de detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano.
Não há dúvida de que a não criminalização da conduta dos pais se dá justamente porque tal conduta é considerada normal, justa, aceitável por nossa sociedade, razão pela qual a ofensa à integridade física (furo na orelha) de um bebê recém-nascido não é rotulada de criminosa, não obstante sua subsunção ao citado art.129 do Código Penal (Lesão corporal). Ademais, não esqueçamos que ainda há uma agravante a ser reconhecida no referido caso, isto é, a agravante de quando a vítima do delito é criança, a teor do art.61, II, "h", ocasião em que na segunda fase da aplicação da pena deveria haver um aumento de 1/6 (um sexto) sobre a pena-base.
Contudo, mesmo diante do referido cenário, isto é, da existência do delito de lesão corporal (art.129 do CP) e de uma agravante (art.61, II, "h", do CP), "até as pedras da rua sabem" que lesionar a orelha dos bebês de sexo feminino para futuramente serem colocados brincos não é uma conduta rotulada pela sociedade como criminosa.
Destarte, vê-se claramente que a venda de CDs e DVDs "pirateados" no Brasil não deve continuar a sofrer os rigores do Direito Penal em reconhecimento ao princípio da adequação social. Desta forma, parabéns ao magistrado do Estado de Goiás pela leitura constitucional aplicada ao caso.
Infelizmente, cabe registrar, que o entendimento do Superior Tribunal de Justiça[2] (entendimento firmado a partir do julgamento do REsp 1.193.196-MG, DJe 04.12.2012) e do Supremo Tribunal Federal é no sentido da existência sim do crime de violação aos direitos autorais (art.184, §2º do CP), sendo que um dos frágeis argumentos é o de que o costume não pode revogar a lei, argumento este já rebatido linhas acima.
Diante o exposto, assaz correta se mostra a decisão prolatada pela Justiça de 1º Grau do Estado de Goiás, que considerou atípica a conduta da comercialização de CDs e DVDs "piratas", cabendo-nos torcer para que os referidos Tribunais Superiores mudem seus entendimentos sobre a matéria, em homenagem ao princípio da adequação social.
Referências
[1] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, volume 1, Parte Geral. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.35.
[2] Infelizmente, importa destacar, que no dia 29/10/2013, o STJ expediu a Súmula nº 502, reafirmando a criminalização da venda de produtos piratas (CD's e DVD's), in verbis: "Presentes a materialidade e a autoria, afigura-se típica, em relação ao crime previsto no art.184, §2º, do CP, a conduta de expor à venda CD's e DVD's piratas".