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O impeachment como golpe político e constitucional

Agenda 06/08/2015 às 15:33

Caminhamos para consagrar o Estado de Direito de Exceção (regressivo e repressivo) em essência. Apenas ingênuos e mal-informados ou oportunistas pensam que o impeachment poderá corrigir os desvios da moralidade pública.

Por que o pedido de impeachment de motivação política, neste momento, é um golpe constitucional? Porque segue a lógica (e as regras) de quem quer, tão-somente, o poder (e de modo absoluto e hegemônico). Apenas ingênuos e mal-informados ou oportunistas pensam que o impeachment poderá corrigir os desvios da moralidade pública.

Mesmo porque, a tônica do “jeitinho brasileiro” (gambiarra ilegal imposta à própria lei geral) continuará sendo a mesma que regula secularmente a vida comum do homem médio brasileiro. No aspecto cultural, o pior é que já se vê como se imiscuem no cotidiano as práticas fascistas (linchamentos públicos), falangistas (intolerância messiânica), golpistas (“aos amigos, tudo; aos inimigos a lei”) e reprodutivistas da corrupção (“levar vantagem em tudo”, manda a imortal Lei de Gérson).

Sob esse escrutínio de malversação jurídica da democracia, o impeachment provocará sérios e, talvez, irreversíveis traumas e danos no direito caracterizado como “medium” (de mediador) no controle social e como instrumento de regulação do pluralismo político. Antevendo-se, ainda, um mais grave engessamento da regra republicana da “alternância do poder” – e que está bem além da rotatividade partidária.

Para um exemplo concreto, basta-nos recordar dos 70 anos de poder dominante do PRI (Partido Revolucionário Institucional) no México, na forma de contra-revolução conservadora (do alto) e aplicada na contenção da política popular que se instaurara ideologicamente (no bom sentido) desde a Revolução Zapatista dos anos 1910-20.

No mais, o golpe constitucional que se ensaia no tupiniquim impeachment oportunista é um mero ajuste (i)legal da mais evidente subversão das “regras do jogo democrático”, agora insculpido como golpe institucional que se abriga sob as vestes de uma luta intestina (no interior do Poder Político), e entre os grupos de poder que lutam pela hegemonia sistêmica: ideológica, cultural, econômica, partidária.

Sob o condão deste tipo de luta política hegemônica, o Estado de Direito guarda as ferramentas do poder adicional requerido pelo Estado de Exceção e, após sua decretação (Lei Marcial), instaura-se outro tipo de Estado de Direito (tutelado juridicamente; é claramente regressivo quanto às garantias dos direitos fundamentais) e, assim, submerso em regras típicas e precisas do Poder Político que se torna absoluto no manejo do direito (retraindo-se, portanto, a ação do Legislativo e do Judiciário, suspende-se a autolimitação do poder), o Estado de Direito define-se como repressivo (politicamente) e regressivo (juridicamente).

Validado como Estado de Direito de Exceção (para além do Estado de não-Direito: lastreado por leis injustas), o medium que daí decorre comprova o fato de que o direito responde à violência dominada pelos grupos de poder hegemônicos; o direito exarado corresponde ao embate sob o manto do realismo político.

Por fim, estabelece-se a natureza da lógica jurídica do Estado de Direito: submerso em regras constitucionais (anteriores) e em leis de exceção (positivadas posteriormente). Ou, dito de outro modo: a natureza jurídica do Estado de Direito condiz com o comando do soberano que edita leis de exceção. Esta é a precisão de uma lógica jurídica extraída da lógica política de conquista ou de manutenção do poder absoluto.

Sob o (co)mando da exceção, o Estado de Direito é absolutista – e talvez esta tenha sido a maior engenhosidade do liberalismo político: conter os reclamos populares por participação popular com a recuperação e o manuseio dos meios de controle social editados pelo Absolutismo (ou cesarismo). De toda forma, resta convicta a conclusão de que o Estado de Direito não é uma fórmula vazia, pois, preenchida de poderes de exceção, não interroga ao poder que lhe deu vida e manifestação pela via absolutista.

Assim, é lícito dizer que a única regra absoluta no Estado de Direito de Exceção é, (in)justamente, a obrigação de o Estado de Direito não admoestar o Poder Político (STAATGEWALT).

Nem é preciso dizer, no entanto, vê-se nitidamente que o impeachment não retrata (em absoluto) o combate à corrupção pública, mas, sim, a prevaricação com o Estado Democrático de Direito, com a cidadania ativa e, de resto, com o que sobrou da democracia participativa e popular. A noção objetiva de controle de crise (KRITIK) metamorfoseou-se em repressão política e em deslegitimação das conquistas sociais e trabalhistas observadas nas duas últimas décadas.

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Afinal – se esta tremenda trepidação moralista fosse um marco regulatório das coisas públicas (e não ambulatório dos partidos em disputa) –, a Operação Lava Jato não teria nem de longe a dimensão (aliás, não verificada pela sanha punitiva) que merecem, tanto a Operação Zelotes (sonegação e evasão fiscal de divisas do grande capital: financeiro e industrial), quanto as investigações amorfas acerca do escândalo do Banco suíço HSBC: gravitando em torno dos grupos de poder que querem, precisamente, orquestrar o golpe constitucional.

Ainda, cabe a ressalva de que a primeira lição do poder – vinda diretamente dos clássicos da Teoria Política – adverte que o golpe de hoje apenas prepara as armadilhas de amanhã. A diferença está em que, no futuro, será uma farsa mal-disfarçada do mesmo golpe e de sua ilegitimidade, e que será intentada contra os bem-sucedidos do presente. O impeachment, autômato legal invocado pelo golpe constitucional, é o exato oposto dos poderes autônomos.

Não há que se brincar neste momento de crise aguda de legitimidade do poder central, pois a ação invasiva de medidas de exceção (apesar da previsão legal) é desconstrutiva da luta pelo direito e, profundamente/amplamente, regressiva na luta política desafiadora do processo civilizatório.

Não há que se aventurar no manejo do direito porque os subterrâneos do poder já se proliferam pela vida pública e civil. Vivemos a involução da consciência e dos ganhos jurídicos e políticos da democracia e é bem provável que venhamos a conhecer um refluxo moral próximo da barbárie social e política (se é que já não se manifestam).

A história cansa de nos provar que o escaninho do golpe é a vala comum em que se enterra a liberdade. E é óbvio que não há veracidade, publicidade, moralidade sem a tal liberdade – aquela que será demovida em suas bases reais pelo mesmo golpe que se perpetra no presente dia.

Por essas razões, políticas e jurídicas, o impeachment é um golpe político e constitucional; aplicado sob as regras da “racionalidade quanto aos fins” – tomada do poder –, é um golpe conservador. Nesses moldes, caminhamos para consagrar o Estado de Direito de Exceção (regressivo e repressivo) em essência.

Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. O impeachment como golpe político e constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4418, 6 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41268. Acesso em: 22 dez. 2024.

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