IX
A título de conclusão, podemos afirmar, resumindo as considerações anteriores:
A Lei nº 9.703/98 disciplina uma modalidade específica de depósito de coisa fungível (depósito irregular disciplinado pelas regras do mútuo), em estabelecimento bancário, com a participação singular do magistrado.
Entre as modificações operadas pela Lei nº 9.703/98 na sistemática dos depósitos judiciais e extrajudiciais de tributos federais duas são incontestáveis: a elevação da remuneração do depósito, pela aplicação da taxa SELIC, e a fixação do prazo de vinte e quatro horas, a partir da ciência da ordem judicial, para devolução da quantia depositada.
A transferência ou repasse do numerário depositado para a Conta Única do Tesouro Nacional, apontada indevidamente como inconstitucional, insere-se no poder do depositário (equiparado ao mutuário) de dispor da coisa depositada, eis que seu proprietário. Assim, o comando legal neste sentido está em perfeita consonância com a natureza do instituto usado.
A transferência ou repasse do numerário depositado para a Conta Única do Tesouro Nacional não afeta o princípio da separação dos Poderes porque não suprime ou altera qualquer competência ou prerrogativa do magistrado. Com efeito, o juiz continua fiscal da sistemática e elemento definidor do momento em que o depósito deve ser devolvido, se for o caso. Ao revés, a posição do magistrado resta prestigiada com a fixação peremptória de prazo para devolução, inexistente na regulamentação anterior.
A transferência ou repasse do numerário depositado para a Conta Única do Tesouro Nacional sequer arranha o princípio da isonomia. Dadas as características da relação jurídico-tributária, somente o sujeito passivo tem interesse na suspensão da exigibilidade do crédito tributário. Assim, o depósito não significa diminuição ou tratamento discriminador em relação ao contribuinte. Trata-se tão-somente de uma das conseqüências possíveis na relação entre o Fisco e o contribuinte.
A necessidade de se aguardar o trânsito em julgado da decisão em que se discute a juridicidade da exação não representa subtração patrimonial contra as cautelas constitucionais impostas pelo princípio do devido processo legal. Temos apenas o respeito pela necessidade do Fisco de realizar da melhor forma os créditos públicos. O critério legal, já presente na Lei nº 6.830, de 1980, vem sendo chancelado pela jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais e do Superior Tribunal de Justiça.
A transferência ou repasse do numerário depositado para a Conta Única do Tesouro Nacional não caracteriza empréstimo compulsório porque não há obrigatoriedade de depósito na ordem jurídico-tributária. Ademais, não existe tributo sem fato gerador (hipótese de incidência).
A devolução dos valores depositados, decorrente de "garantia" anterior para suspender a exigibilidade do crédito tributário, não se confunde com o sistema constitucional de precatórios, resultante da necessidade de satisfazer o credor do Estado que manejou um título executivo judicial para recompor seu patrimônio.
Em suma, a Lei nº 9.703, de 17 de novembro de 1998, ao modificar a sistemática dos depósitos judiciais e extrajudiciais de tributos federais não incorreu em qualquer vício de inconstitucionalidade.
NOTAS
(1) Na exata dicção da Lei nº 9.703/98. Trata-se, a rigor, de uma redundância. Afinal, em que pese as vozes discordantes, as contribuições são tributos. Neste sentido, a pacífica jurisprudência do STF.
(2) "O Governo Federal apresenta à sociedade brasileira seu Programa de Estabilidade Fiscal, fundado em uma premissa básica: o Estado não pode mais viver além de seus limites, gastando mais do que arrecada.
O equilíbrio das contas públicas representa um passo decisivo na redefinição do modelo econômico brasileiro. Trata-se, em essência, da introdução de mudanças fundamentais no regime fiscal do país, com o objetivo de promover o equilíbrio definitivo das contas públicas na velocidade necessária para permitir a consolidação dos três objetivos básicos do Plano Real: estabilidade da moeda, crescimento sustentado com mudança estrutural e ganhos de produtividade, e a melhoria progressiva das condições de vida da população brasileira.
(...)
Elevação das receitas
Como já observado, num contexto legal que impõe restrições a corte ainda mais acentuado de despesas, a magnitude do superávit primário necessário para desencadear movimento sustentado de estabilização da relação dívida/PIB, com redução das taxas de juros e aceleração do crescimento, torna necessária a elevação tópica de receitas. É imprescindível também a adoção de medidas que visam oferecer um grau um pouco maior de flexibilidade na gestão do Orçamento da União. São essas as razões que fundamentam a proposição das medidas descritas abaixo:
(...)
Incorporação dos depósitos judiciais à Receita Tributária Corrente: pretende-se incorporar à Receita Tributária Corrente os depósitos judiciais ou extra-judiciais administrados pela Receita Federal ou pelo INSS mediante repasse à conta única do Tesouro Nacional, observada a imediata disponibilização do depósito em virtude de decisão judicial ou pagamento definitivo do tributo ou contribuição devidos. Para esse efeito, o Executivo disciplinará os procedimentos necessários ao efetivo controle dos valores no âmbito da Caixa Econômica Federal. É importante ressaltar que as estimativas de ganho com esta medida consideraram apenas o valor líquido dos depósitos esperados a cada ano." (http://www.fazenda.gov.br/portugues/ajuste/respef.html)
(3) "§ 4º A partir de 1º de janeiro de 1996, a compensação ou restituição será acrescida de juros equivalentes à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia - SELIC para títulos federais, acumulada mensalmente, calculados a partir da data do pagamento indevido ou a maior até o mês anterior ao da compensação ou restituição e de 1% relativamente ao mês em que estiver sendo efetuada." (art. 39 da Lei nº 9.250, de 26 de dezembro de 1995)
(4) Decreto-Lei nº 1.737, de 20 de dezembro de 1979.
(5) "§3º - Mediante ordem da autoridade judicial ou, no caso de depósito extrajudicial, da autoridade administrativa competente, o valor do depósito, após o encerramento da lide ou do processo litigioso, será:
I - devolvido ao depositante pela Caixa Econômica Federal, no prazo máximo de vinte e quatro horas, quando a sentença lhe for favorável ou na proporção em que o for, acrescido de juros, na forma estabelecida pelo § 4º do art. 38 da Lei nº 9.250, de 26 de dezembro de 1995, e alterações posteriores; ou" (Destaque nosso. Art. 1º da Lei nº 9.703/98)
(6) A média mensal de depósitos judiciais e extrajudiciais de tributos federais junto à Caixa Econômica Federal, em relação ao ano de 1998, foi de R$ 101 milhões de reais. Os números projetam, para o ano de 1999, um quantitativo de depósitos cujo montante gira em torno R$ 1.000.000.000,00 (um bilhão de reais).
Outro dado relevante aponta para o levantamento de depósitos judiciais e extrajudiciais junto à CEF entre 15 de dezembro de 1998 e 11 de fevereiro de 1999, portanto, já sob a nova sistemática legal, de aproximadamente R$ 311 mil reais.
(7) Súmula nº 112 do Superior Tribunal de Justiça: "O depósito somente suspende a exigibilidade do crédito tributário se for integral e em dinheiro".
(8) "Por ser a coisa emprestada fungível e, em regra, consumível, no mútuo haverá transferência de domínio do bem emprestado (RT, 495:222), mediante simples tradição. Por isso o mutuário poderá usá-lo como quiser, ..." (Destaque nosso. Código Civil Anotado. Maria Helena Diniz. 1995. Pág. 774. Editora Saraiva)
"4º) Translatividade de domínio do bem emprestado (RT 495:222), que, por ser fungível, e, em regra, consumível, possibilita a transferência de sua propriedade ao mutuário com a simples tradição. Logo, o mutuário poderá usá-lo como quiser. Poderá consumi-lo, abandoná-lo, aliená-lo, dá-lo em sub-mútuo, sem autorização do mutuante etc. " (Destaque nosso. Curso de Direito Civil Brasileiro. Maria Helena Diniz. 3º Volume. Pág. 226. 1995. Editora Saraiva).
"E – Translatício do domínio, porque opera para o mutuário a transferência da propriedade da coisa emprestada." (Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil. Volume III. Pág. 305. 1975. Forense).
Quando vigente, para regular a espécie, o Decreto-Lei nº 1.737/79 este autorizava, em seu art. 5º, a aquisição de Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional com os valores resultantes dos depósitos. Por outro lado, o art. 10 da Lei nº 4.595/64 atribui competência para o Banco Central do Brasil determinar o recolhimento de até 100% (cem por cento) do total dos depósitos à vista ao chamado "compulsório bancário".
(9) "Precatório: Natureza Administrativa. Não cabe recurso extraordinário contra decisão proferida no processamento de precatórios já que esta tem natureza administrativa e não jurisdicional. Com base nesse entendimento, a Turma não conheceu de recurso extraordinário interposto pelo Estado do Ceará contra decisão do TRT da 7ª Região que determinou o seqüestro de valores em conta corrente para saldar débitos trabalhistas. Precedente citado: RE (AgRg) 215.290-SP (DJU de 6.11.98). RE 229.786-CE, rel. Min. Néri da Silveira, 14.12.98." (2ª Turma. Informativo STF nº 136).
(10) "Art. 32. Os depósitos judiciais em dinheiro serão obrigatoriamente feitos:
(...)
§2º. Após o trânsito em julgado da decisão, o depósito, monetariamente atualizado, será devolvido ao depositante ou entregue à Fazenda Pública, mediante ordem do juízo competente."
(11) "O depósito judicial destinado a suspender a exigibilidade do crédito tributário somente poderá ser levantado, ou convertido em renda, após o trânsito em julgado de sentença." (Súmula nº 18 do TRF da 4ª Região).
(12) "Os depósitos só podem ser levantados pela parte após o trânsito em julgado da sentença a ela favorável e a União só pode converter os depósitos em renda após transitar em julgado a sentença que lhe favorecer." (Recurso Especial nº 169.365-SP. 1ª Turma. Relator Ministro GARCIA VIEIRA. Maioria. Julgado em 20.08.98).
"O depósito visando suspender a exigibilidade do crédito tributário, não pode ser levantado enquanto não definitivamente julgada a lide." (Recurso Especial nº 179.007-SP. 2ª Turma. Relator Ministro HÉLIO MOSIMANN. Unânime. Julgado em 15.09.98).
"8. Consoante farta jurisprudência desta Corte, é vedado ao contribuinte o levantamento do depósito efetuado para suspender a exigibilidade do crédito tributário antes do trânsito em julgado da sentença. Inteligência do art. 32, §2º, da Lei nº 6.830/90. Precedentes." (Recurso Especial nº 184.611-MG. 1ª Turma. Relator Ministro JOSÉ DELGADO. Unânime. Julgado em 15.09.98).
(13) Art. 19 da "MP do CADIN", art. 77 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, e Decreto nº 2.346, de 10 de outubro de 1997.
(14) Despacho do Procurador-Geral da Fazenda Nacional publicado no Diário Oficial da União de 22 de setembro de 1998.
(15) RE nº 146.733-SP. Pleno. Relator Ministro MOREIRA ALVES, RE nº 138.284-CE. Pleno. Relator Ministro CARLOS VELLOSO, entre outros.
(16) "Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada." (Destaque nosso)
(17) "O depósito não é obrigatório, isto é, não constitui condição para que o sujeito passivo possa impugnar a exigência." (Curso de Direito Tributário. Hugo de Brito Machado. 7ª Edição. Pág. 126. Malheiros Editores)
"Nos dias de hoje o depósito obrigatório tornou-se facultativo. Embora extinta a garantia de instância administrativa, nada impede que o contribuinte, espontaneamente, faça o depósito do valor do débito (CTN, art. 151, II)." (Compêndio de Direito Tributário. Bernardo Ribeiro de Moraes. 2ª Edição. 1994. Pág. 413. Forense)
"Caso o contribuinte pretenda questionar a exigência de um tributo, sem submeter-se à regra do solve et repete ou à inadimplência, à vista do não cumprimento da obrigação tributária, a legislação faculta-lhe depositar o total devido com suspensão da exigibilidade do crédito tributário." (Parecer PGFN/CRJ/Nº 2.070/97. Procuradora da Fazenda Nacional Maria Walquíria Rodrigues de Sousa. Diário Oficial da União de 12 de dezembro de 1997. Seção I. Pág. 29.560)
(18) "É direito do contribuinte, em ação cautelar, fazer o depósito integral da quantia em dinheiro para suspender a exigibilidade do crédito tributário." (Súmula nº 2 do TRF da 3ª Região)
"O depósito previsto no art. 151, II, CTN é um direito do contribuinte, só dependente de sua vontade e meios; o juiz nem pode ordenar o depósito, nem pode indeferi-lo." (REsp nº 107.450-MG. Relator Ministro ARI PARGENDLER. Diário da Justiça de 3 de fevereiro de 1997. Pág. 705).
(19) "A discussão judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública só é admissível em execução, na forma desta Lei, salvo as hipóteses de mandado de segurança, ação de repetição do indébito ou ação anulatória do ato declarativo da dívida, esta precedida do depósito preparatório do valor do débito, monetariamente corrigido e acrescido dos juros e multa de mora e demais encargos."
(20) "O dispositivo legal em foco, no decorrer da vigência da Lei nº 6.830/80, teve sua aplicação literal afastada, quer pela doutrina especializada, quer pela jurisprudência de nossos Tribunais, em favor de interpretação que lhe assegurasse harmonia com a garantia constitucional de amplo acesso aso órgãos jurisdicionais" (Execução Fiscal. Doutrina e Jurisprudência. Maria Helena Rau de Souza. 1998. Págs. 510/511. Editora Saraiva)
Súmula nº 247 do Tribunal Federal de Recursos: "Não constitui pressuposto da ação anulatória do débito fiscal o depósito de que cuida o art. 38 da Lei nº 6.830, de 1980."
(21) Art. 97 do CTN. "Somente a lei pode estabelecer:
(...)
III – a definição do fato gerador da obrigação tributária principal, (...)"
Art. 113, §1º do CTN: "A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente."
Art. 114 do CTN: "Fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência."