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O acesso à ordem jurídica justa e a Lei nº 13.146/15

Agenda 31/07/2015 às 15:35

Trata-se do Estatuto da Pessoa com Deficiência, em razão do desafio do Brasil em harmonizar seu arcabouço legal e adequar suas políticas públicas com a definição de deficiência consagrada pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas Com Deficiência.

No dia 06 de julho do corrente ano foi publicada a Lei nº 13.146/15, com período de vacatio legis de 180 (cento e oitenta) dias.

Trata-se do Estatuto da Pessoa com Deficiência, em razão do desafio do Brasil em harmonizar seu arcabouço legal e adequar suas políticas públicas com a definição de deficiência consagrada pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas Com Deficiência[1].

Por um dado instante a doutrina de José Augusto Delgado foi concretizada, por afiançar que “as leis devem ser mais claras e concentrarem, em um só diploma, todo o regulamento da situação ou das situações de fato por ela alcançada. Além de facilitar sua compreensão, permitirá a sua interpretação sistêmica, tudo a favorecer o ser a quem ela se destina – o cidadão”[2][3].

Afinal, a norma como um todo, ao menos em caráter geral passa a se revestir num só diploma.

Além dos aspectos relacionados ao ajuste formal da terminologia utilizada, a referida regra revê a conceituação de deficiência e incapacidade, bem como na adoção de nova metodologia de avaliação da deficiência[4] e do grau de incapacidade para a vida independente e para o trabalho, utilizadas como parâmetros na concessão de benefícios vinculados aos programas e às ações afirmativas existentes.

No entanto, mister enfatizar que a lei não muda a realidade dos fatos, mas de forma inovadora, no seu art. 3º, IV, alínea ‘e’, extrai-se que um dos seus objetivos inclusivo é o de quebrar barreiras atitudinais[5].

Isso implica dizer que o Administrador Público não poderá descumpri-la, mas efetivá-la sem juízo de discricionariedade, pena de se contradizer, calhando de forma imediata numa espécie de mora qualificada com ares de improbidade[6][7] e no indesejado comportamento cognominado de venire contra factum proprium[8].

Não a cumprindo, permitirá sem maiores digressões o agir judicial para implementação de tal política pública, mormente por se tratar de um compromisso interno e internacional.

Como meio fiscalizatório a proposta prevê a criação da Comissão Nacional de Monitoramento dos Direitos da Pessoa com Deficiência, afora esperar a atuação de outros agentes públicos qualificados ( v.g da Defensoria Pública e Ministério Público – Lei nº 7.853/89 – art. 3º ), tendo como atribuição específica o monitoramento da implementação de tais direitos reconhecidos.

O impacto de tal legislação, como afiançado, abrange setores de todos os serviços públicos prestados pelo Estado, com destaque ao conceito de incapacidade civil e acesso à justiça[9].

Com foco conjugado nestes dois pontos, infere-se que o acesso à justiça restou influenciado por conta de que “a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa” (art. 6º) e que “a pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas” (art. 84).

De outro lado, o art. 3º do Código Civil que dispõem sobre os absolutamente incapazes, acabou tendo todos os seus incisos revogados mantendo-se, como única hipótese de incapacidade absoluta, a do menor impúbere.

E ainda neste contexto a novel lei estatui que a curatela ficou restrita a atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial (art. 85, caput), passando a ser uma medida extraordinária.

Desta forma, vê-se que art. 8º, da Lei nº 9.099/05 restou derrogado, permitindo, assim, ao portador de deficiência manejar por si só ação judicial perante os Juizados Especiais, desde que, é óbvio, sua limitação não lhe impeça de comunicar-se.

Caso o Magistrado perceba que o incapaz, dentro da sua limitação possa estar em condição de vulnerabilidade não suprida ou estado de colidência com o seu curador poderá, como de fato deverá para garantir a devida paridade processual, abrir vista à Defensoria Pública para que intervenha[10] na condição de Curador Especial Processual.

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Tal exegese, longe de mera conjectura institucional, exsurge ex-vi-legis do art. 9º, do atual do CPC (art. 72, parágrafo único do NCPC) e Lei Complementar Federal nº 80/94, art. 4º, inciso XVI.

Agora, numa primeira análise, nos parece que nos casos de colidência de interesses entre a pessoa com deficiência e o tomadores de decisão apoiada, ficará a cargo preferencial do Ministério Público sob a perspectiva de custos legis agir, por força do art. 1783-A, §6º, do Código Civil, não se excluindo, no entanto, o possível agir da Defensoria Pública por se tratar de atribuição concorrente e disjuntiva, bastando-se ver o art. 79, §3º.

Trata-se, pois, de um passo importante e pouca vez visto de efetivação dos princípios da dignidade da pessoa humana e igualdade.

O conceito, portanto, de incapacidade civil e acesso à justiça se apresentam alterados e é óbvio, num sentido positivo.

Outro aspecto interessante é a não necessidade compulsória da interdição para fins de obtenção de benefícios previdenciários e assistenciais perante o Instituto Nacional do Seguro Social.

A certeza de tal afirmação decorrente da alteração do art. 101, da Lei no 8.213/91, que sofreu a inclusão do presente preceptivo:

  “Art. 110-A.  No ato de requerimento de benefícios operacionalizados pelo INSS, não será exigida apresentação de termo de curatela de titular ou de beneficiário com deficiência, observados os procedimentos a serem estabelecidos em regulamento.”

Trata-se de significativa mudança, por se averiguar, na prática, por parte da referida autarquia, a absurda exigência da decretação da interdição como condicionante a concessão de benefícios.

Longe de uma mera formalidade, constitui tal ato em manifesta violação dos direitos humanos, por não observar as necessidades elementares de cada caso.

Tal situação é tão grave que em 2.005, Ana Bock, Presidente do Conselho Federal de Psicologia afirmou ao correlacionar Benefício de Prestação Continuada e Interdição em Seminário perante a Câmara dos Deputados o seguinte, verbis:

“A busca, pelos psicólogos, da reinserção social dos usuários dos serviços de saúde mental, resgatando uma condição cidadã para essas pessoas, começou a se chocar com a condição, que muitos buscavam e possuíam, de interditados judiciais, sobretudo a partir do recebimento do benefício previsto na Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS. Uma população muito pobre e portadora de transtorno mental tem feito um percurso que tem, na interdição judicial, a condição para que receba o Benefício de Prestação Continuada previsto na LOAS. Tomamos consciência dessa situação e, como categoria profissional que tem feito de seu trabalho na área da saúde e também sua militância em favor de uma reforma psiquiátrica no Brasil, indignamo-nos. Sem dúvida, a interdição judicial, a qual responde à falta de condição laboral dessas pessoas, vem sendo banalizada, e muitos dos usuários têm ficado com sua condição de cidadania restrita, pois ela atinge sua condição pessoal de gestão de sua própria vida, impedindo a conquista de direitos e reduzindo sua dignidade social. ( Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Comissão de Direitos Humanos e Minorias. A banalização da interdição judicial no Brasil : relatórios. – Brasília : Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2007 – Pág. 13 ).

Desta forma, vê-se que à este tipo de grupo vulnerável específico, sanou-se uma grave violação.

Outrossim, alterando por completo o processo de interdição, a lei exige a análise do Curatelado por equipe multiprofissional ( art. 1.771, do Código Civil – vacatio legis especifica de 02 anos – vide art.124), justamente para que se possa verificar de maneira mais profunda e completa as potencialidades do alcançado, cujas preferências serão levadas em consideração ( parágrafo único, do art. 1.772, do Código Civil).

O instrumento também deverá ser revisto pelo tempo a ser definido, assim como deverá ser explicitado na sentença os limites da interdição, ou seja, aqueles direitos sobre os quais o mandato do curador será exercido, evitando interdições mecânicas e totais.

De forma inovadora também, previu a chamada “Da Tomada de Decisão Apoiada”, a partir do art. 1783-A, do Código Civil, segundo a qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 02 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.

Para tanto, tal pleito somente poderá ocorrer judicialmente, mediante requerimento da pessoa a ser apoiada, com indicação expressa das pessoas aptas a prestarem o apoio, o que exigirá intervenção de equipe multidisciplinar e oitiva do Ministério e todos os envolvidos – requerente e pessoas que prestarão apoio.

Frisa a lei que a decisão tomada por pessoa apoiada terá validade e efeitos sobre terceiros, sem restrições, desde que esteja inserida nos limites do apoio acordado, mas caso haja situação pontual e negocial possa trazer risco ou prejuízo relevante, havendo divergência de opiniões entre a pessoa apoiada e um dos apoiadores, deverá o juiz, ouvido o Ministério Público, decidir sobre a questão.

Destaque-se que tal medida de apoio em nada se relaciona com a curatela-mandato do art. 1.780, do Código Civil, que agora restou revogada expressamente.

Portanto, num primeiro momento, conclui-se sob crivo específico, que o novel diploma ampliou o conceito de acesso à justiça sob o crivo extrajudicial ao criar um órgão sensorial e judicial, ao permitir o uso do Juizado Especial pelos deficientes, instigando, ainda, o diálogo das fontes com critério da norma mais favorável, atuação multidisciplinar técnica, individual e coletiva entre todos os atuantes na temática.

De outro lado, reduzindo o conceito de incapacidade civil, permitirá a obtenção de benefícios previdenciários sem a necessidade de interdição, cuja ocorrência será extraordinária (interdição) e sujeita a minucioso processo, cujo protagonista será o acionado, bastando-se ver a possibilidade deste requerer de forma incidental ou inicial, a aplicação da medida cognomidada de tomada de decisão apoiada.

Conclui-se, pois, que se o legislador positivou, aguarda-se que o Executivo cumpra e observe tais normas e que o Judiciário, nada obstante efetivar tais direitos mediante provocação, não crie obstáculos ao acesso pela via do Juizado Especial, sem se olvidar daqueles que atuam em sede preventiva e judicial, sejam Advogados, Defensores Públicos e Promotores de Justiça que deverão se nortear sabendo, repita-se: do protagonismo adotado como sendo do acionado, o qual deverá estar sujeito a um processo com atendimento interdisciplinar muito além do atualmente proporcionado, visando garantir a avaliação específica exigida pela lei.


Notas

[1] Art. 1o É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.  Parágrafo único.  Esta Lei tem como base a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificados pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo no186, de 9 de julho de 2008, em conformidade com o procedimento previsto no § 3o do art. 5o da Constituição da República Federativa do Brasil, em vigor para o Brasil, no plano jurídico externo, desde 31 de agosto de 2008, e promulgados pelo Decreto no 6.949, de 25 de agosto de 2009, data de início de sua vigência no plano interno.

[2] DELGADO, José Augusto. Acesso à Justiça – Um direito da cidadania. Informativo Jurídico da Biblioteca Oscar Saraiva, Brasília, v. 9, n. 1, p. 26, jan./jun. 1.997

[3] Art. 121.  Os direitos, os prazos e as obrigações previstos nesta Lei não excluem os já estabelecidos em outras legislações, inclusive em pactos, tratados, convenções e declarações internacionais aprovados e promulgados pelo Congresso Nacional, e devem ser aplicados em conformidade com as demais normas internas e acordos internacionais vinculantes sobre a matéria. Parágrafo único.  Prevalecerá a norma mais benéfica à pessoa com deficiência.

[4] Art. 2o  Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.  § 1o  A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará: (Vigência)

Art. 124.  O § 1o do art. 2o desta Lei deverá entrar em vigor em até 2 (dois) anos, contados da entrada em vigor desta Lei;

[5]  “ A luta das pessoas com deficiência não se restringe apenas às esferas de Poder, é preciso muito mais: combater o preconceito e motivar a conscientização não apenas do Poder Público, mas de toda a População” ( Cláudia Maximino. Presidente da Associação Brasileira de Portadores de Síndrome da Talidomida )

[6] http://www.anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=9399;

[7] Art. 11, II, da Lei nº 8.429/92;

[8] [...] a vedação de comportamento contraditório obsta que alguém possa contradizer o seu próprio comportamento, após ter produzido, em outra pessoa, uma determinada expectativa. É, pois, a proibição da inesperada mudança de comportamento (vedação da incoerência), contradizendo uma conduta anterior adotada pela mesma pessoa, frustando as expectativas de terceiros. Enfim, é a consagração de que ninguém pode se opor a fato a que ele próprio deu causa. De acordo com Judith Martins-Costa, o venire se insere na ‘teoria dos atos próprios’, segundo a qual se entende que a ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com a sua anterior conduta interpretada objetivamente. (CRISTIANO CHAVES DE FARIA e NELSON ROSENVALD, Direito Civil Teoria Geral, 4ª edição, 2006, Ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro, p. 483).

[9] “Habitualmente, a expressão “acesso à justiça” é utilizada como a possibilidade de acesso ao órgão judicial. O conceito, entretanto, vem evoluindo e se ampliando, incorporando aspectos de justiça social, expressando, desta forma, a ‘possibilidade de viver em uma ordem social que garanta a cada pessoa um mínimo necessário a sua dignidade” ( in, Temas de direitos humanos/Flávia Piovesan  - 3ª Ed. – São Paulo: Saraiva, 2.009. pág. 313)

[10] se o caso de atuação institucional devidamente apurada, pena de ingerência institucional;

Sobre o autor
Roger Feichas

Atualmente é Defensor Público no Estado de Minas Gerais. Pós Graduado em Direito Público. Autor do Livro Mandado de Segurança - da teoria à prática - em co-autoria com Sérgio Henrique Salvador. Editora LTR - 2014<br>

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