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Responsabilidade penal da pessoa jurídica na Lei nº 9.605/98

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4 FUNDAMENTOS DOUTRINÁRIOS SOBRE A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA

4.1 Fundamentos Doutrinários Favoráveis

Antes de qualquer menção doutrinária, cabe-nos salientar que o Brasil prevê, constitucionalmente, a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica, e isso em dois capítulos da Constituição Federal: "Dos princípios gerais da atividade econômica" e "Do meio ambiente". Ressaltamos ainda que tais previsões não são auto aplicáveis e até a presente data foi sancionada somente lei reguladora das atividades de pessoas jurídicas lesivas ao meio ambiente.

Não se discute sobre a importância do meio ambiente ecologicamente equilibrado para manutenção da vida. Devido a esta necessidade, o direito passou a tutelá-lo por meio da tipificação das infrações ambientais que, na maioria das vezes, são praticadas por empresários, em grande parte acobertados pelo significativo poder econômico e também pelo escudo do anonimato que suas empresas lhes proporcionam. Tais infrações, não raras vezes, demonstram-se mais letais do que as provocadas por entes individuais. E, em grande parte, permanecem impunes.

Esta situação sensibilizou a doutrina e a jurisprudência e, atento a isto, o direito, em nível mundial, tem reconhecido não só a utilização do Direito Penal contra condutas lesivas ao meio ambiente, mas a utilização deste ramo para punir pessoas jurídicas. Cabe salientar, a esse respeito, as palavras de Edward Ferreira Filho, promotor de justiça no Estado de São Paulo, sobre a Lei dos crimes ambientais: "... a Lei Federal n. 9.605 de 12.02.1998 (...), veio, na verdade, contemplar e seguir a tendência mundial de estender o instituto da pena criminal aos entes coletivos, já que, cada vez mais, as empresas e pessoas jurídicas em geral estão assumindo papéis mais relevantes na sociedade e, por isso mesmo, ao menos em relação a várias condutas sociais, não podem simplesmente ser consideradas como ente fictício...".

Como defensores da responsabilização criminal dos entes coletivos, cabe citar os renomados juristas Luíz Paulo Sivinskas, Toshio Mukai, Gilberto e Vladimir Passos de Freitas, Sérgio Salomão Shecaira, Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, Fausto Martin de Sanctis, Walter Claudius Rothenburg, Celeste Leitos dos Santos Pereira Gomes, Paulo Affonso Leme Machado, Eládio Lecey, José Afonso da Silva, Pinto Fereira, Édis Milaré, entre outros. Sua tese, em síntese, é que o princípio societas delinquere non potest não é absoluto e que, no direito moderno, deve ser analisada a responsabilidade social, e quanto ao princípio da culpabilidade, este deve ser revisto: "A responsabilidade penal das pessoas jurídicas não pode ser definida a partir do conceito tradicional de culpabilidade. (...) A responsabilidade penal há de ser associada à responsabilidade social da pessoa jurídica, que tem como elementos a capacidade de atribuição e a exigibilidade. (...) A responsabilidade social permite construir um juízo de reprovação sobre a conduta da pessoa jurídica. Não se trata de um fato psicológico, mas de um comportamento institucional."

Salienta-se aqui que com a mencionada responsabilidade social enfatiza-se o compromisso social que cada pessoa, seja jurídica ou física, atualmente possui. Entretanto, tal obrigação está sendo utilizada soberanamente, aniquilando clássicos conceitos da teoria geral do delito, o que, ao nosso ver, merece cautela.

Observa-se, por outro lado, que grande parte dos autores favoráveis a sujeição criminal das pessoas jurídicas omitem a forma de aplicação desta responsabilidade no ordenamento penal vigente. Alguns doutrinadores defendem uma reformulação da teoria geral do delito, no sentido de que esta se concilie com as necessidades de repressão das atividades ilícitas praticadas por pessoas jurídicas.

Quanto à forma correta da imputação, há necessidade de distinguir a responsabilidade pessoal da coletiva, sob o aspecto do benefício almejado: será responsabilizado somente o representante legal, quando este agir em benefício próprio, não visando proveito para a pessoa jurídica. Quando este representante agir visando vantagens para sua empresa, esta, a beneficiada, deve sofrer a imputação. Haverá casos de co-autoria entre a pessoa jurídica e seu representante legal.

Conforme o ensino de Fernando A. N. da Rocha, Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais, o princípio de que a pena não passará da pessoa do condenado não pode ser erigido como óbice à criminalização, uma vez que toda e qualquer pena é dirigida diretamente ao autor da violação à norma protetiva do bem jurídico, mas os seus efeitos são sentidos por terceiros, como é o caso dos familiares de um condenado que sofrem com sua estada na prisão.

Vladimir Passos de Freitas preleciona que a utilização do direito penal é imprescindível para tutelar o meio ambiente: "As sanções administrativas e civis têm se revelado insuficientes para inibir a ação nociva dos predadores (...). As indenizações, muitas vezes, compensam o dano causado, no raciocínio custo/benefício".

Para Abel Costa de Oliveira, "... aplicar-se apenas os Direitos Administrativo ou Civil não é reduzir o curso da degradação ambiental, pois, no campo administrativo, há interferência política, o jogo de interesses, o que quase sempre redunda na impunidade (...). Além do que, na esfera cível, as demandas se estendem, são prolongadas e difíceis, causando sempre a sensação de impunidade, além das sérias dificuldades em se valorar ou quantificar os danos causados, a ausência de técnicos, o custo das perícias, etc. Sem contar as dificuldades para a execução da sentença ou sua liquidação, quase sempre inviáveis, permitindo que tais processos mofem nos escaninhos".

Ainda referente aos argumentos contrários à utilização somente do direito administrativo, há que mencionar a escassez de funcionários nos órgãos ambientais de fiscalização e, em última análise, do próprio sucateamento dos órgãos governamentais. "O IBAMA, por exemplo, realizou, no decorrer do ano de 1994, apenas 105 inquéritos administrativos e sindicâncias, um número que, convenhamos, é irrisório diante da extensão territorial de nosso país e das constantes denúncias de lesões ao meio ambiente diariamente noticiadas...". Entretanto, em que pese a repulsa e indignação geradas pela evidente ineficiência dos órgãos operacionais, seja por motivos de gestão financeira ou operacional, cremos que a falta de fiscalização de uma autarquia não deve ser motivo para transferir tal responsabilidade ao Direito Penal.

Os doutrinadores favoráveis à sujeição criminal do ente coletivo respondem às críticas de ausência de culpa da pessoa jurídica e, conseqüentemente, à impossibilidade de responsabilização penal, sob o argumento de que nas sanções civis e administrativas reprova-se alguém que, também, não tem consciência nem vontade. Shecaira enfatiza: "não seria uma burla de etiquetas permitir a reprovação administrativa e civil por um crime ecológico (por exemplo), mas não uma reprovação penal?". Manifesta-se, ainda, que o procedimento processual penal possui mais garantias (devido processo legal, contraditório e ampla defesa) do que o civil. E conclui citando a doutrina francesa de Roger Merle e André Vitu: "... a pessoa coletiva é perfeitamente capaz de vontade, porquanto nasce e vive do encontro das vontades individuais dos seus membros. A vontade coletiva que anima não é um mito e caracteriza-se, em cada etapa importante de sua vida, pela reunião, pela deliberação e pelo voto da assembléia geral dos seus membros ou dos seus conselhos de administração, de gerência ou de direção. Essa vontade coletiva é capaz de cometer crimes tanto quanto a vontade individual".

Ataides Kist, trazendo ensinamentos do alemão Klaus Tiedmann, ensina que "(…) as dificuldades dogmáticas tradicionais para acolher penalmente a criminalidade das agrupações reside no contido das noções fundamentais da doutrina penal: ação, culpabilidade e capacidade penal. Se a pessoa moral pode concluir um contrato, por exemplo de compra e venda, ela é que é sujeito de obrigações que se originam destes contratos e ela é quem pode violar essas obrigações. Isso quer dizer que a pessoa moral pode atuar de maneira antijurídica".

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Nota-se que as discussões conflitantes pairam, principalmente, sobre um aspecto: a culpabilidade. Dentre os defensores da responsabilização penal dos entes coletivos, há aqueles que superam este problema e outros que, mesmo favoráveis, vislumbram alguma dificuldade para concretizá-la no atual ordenamento jurídico pátrio. Lembra-se que na França, o legislador preocupou-se, em 1992, em editar a chamada Lei de Adaptação, para, em 1994, dar vigência ao atual código penal.

Por isso, pode-se afirmar que o legislador brasileiro, ao adotar a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, adotou o que havia de mais moderno no Direito Penal, europeu, em especial, mas não alterou uma vírgula da parte geral do Código Penal. Desta forma, relegou aos operadores do Direito a tarefa de aplicar esta legislação, em boa medida incompatível com as regras precedimentais vigentes acerca da persecutio criminis.

4.2 Fundamentos Doutrinários Contrários

Analisar-se-á, na seqüência, os fundamentos contrários à responsabilidade penal dos entes coletivos. Observa-se que no Brasil tem prevalecido o fenômeno da criminalização de condutas, seja por influências externas, seja pela evidente incapacidade da ordem jurídica, por meio de outras sanções, manter a ordem social. É nesse contexto que se insere a Lei nº 9.605/98, ou Lei dos crimes ambientais.

Inúmeros argumentos combatem este recente, ao menos no Brasil, Instituto Penal. Há críticas desde a sua natureza jurídica, incompatível com o ordenamento jurídico pátrio, até a forma de execução da pena, passando pela problemática questão do procedimento processual penal aplicável à pessoa jurídica.

É preciso desmistificar em nosso país a concepção de que o Direito Penal irá solucionar, através das inúmeras leis elaboradas de forma fugaz, no calor da divulgação massificada pela mídia de determinado caso concreto, os problemas sociais emergentes, como os ambientais.

O alemão Winfried Hassemer, em conferência proferida na Universidade de Lusíado-Porto, em 25/11/1995, manifestou-se contrariamente à tutela penal do meio ambiente: "o Direito penal, considerando o seu papel no tocante à política ambiental, tem-se revelado amplamente contraproducente". O autor menciona que há um "déficit de execução", pois só os pequenos poluidores sofrem as sanções penais e, normalmente, os casos são complicados demais para a justiça processual criminal.

Na doutrina nacional, destacam-se na oposição à responsabilidade penal das pessoas jurídicas: René Ariel Dotti, Ivan Lira de Carvalho, Tupinambá Pinto de Azevedo, Luiz Vicente Cernicchiaro, Miguel Reale Júnior, Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, Luiz Régis Prado, César Roberto Bitencourt, e dentre outros civilistas Caio Mário de Silva Pereira e Washington de Barros Monteiro.

Os principais argumentos elencados nesse sentido podem ser assim resumidos:

a) Em relação às normas constitucionais que prevêem a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, Luiz Vicente Cernicchiaro, considerando que estas somente desenvolvem sua personalidade jurídica por meio de pessoas físicas, afirma que o legislador constituinte, caso quisesse resolver a polêmica questão, teria sido expresso no capítulo em que definiu os princípios acerca do Direito Penal. Portanto, "(…) a constituição brasileira não afirmou a responsabilidade penal da pessoa jurídica, na esteira das congêneres contemporâneas", somente possibilitando a aplicação das demais sanções jurídicas que lhe são compatíveis.

Em linha de raciocínio semelhante, César Roberto Bitencourt afirma que, como o artigo 173, § 5º da Constituição Federal esclarece que a pessoa jurídica sujeitar-se-á "(…) às punições compatíveis com a sua natureza", a interpretação constitucional não admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Ao contrário, condicionou a sua responsabilidade à aplicação de sanções compatíveis com a sua natureza.

b) Lúcio Ronaldo Pereira Ribeiro, citando René Ariel Dotti, elenca alguns argumentos contrários à responsabilidade das pessoa jurídicas na esfera penal. Segundo Dotti, o princípio da isonomia seria violado porque a partir da identificação da pessoa jurídica como autora responsável, os partícipes, ou seja, os instigadores ou cúmplices, poderiam ser beneficiados com o relaxamento dos trabalhos de investigação. Outro aspecto situa-se nas formas concursais: como na quadrilha os participantes se reúnem com um fim ilícito, questiona-se se seria diferente na sociedade. Discorre também sobre o suposto direito de regresso, nos casos de ressarcimento contra o preposto causador do dano. Ocorre que lhe faltaria legitimidade, pois um réu não pode promover contra o co-réu a ação de reparação de danos oriunda do fato típico, ilícito e culpável que ambos cometeram.

Partindo deste raciocínio, visualiza-se a situação de um sócio que pratica um crime ambiental, em benefício da empresa, contrário à decisão dos outros sócios. Ocorrerá que, além destes também serem punidos monetariamente, estarão impossibilitados de regressar contra o primeiro.

c) Segundo ensinamentos do promotor de justiça Carlos Ernani Constantino, a lei pode causar o bis in idem: "Com o que foi previsto no parágrafo único do art. 3º da nova Lei do Meio Ambiente, ou seja, ‘a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato’, imaginemos a seguinte hipótese: "A", sócio da empresa "X", com poderes de administração, comete um crime doloso ou culposo contra o meio ambiente, sem que os demais sócios, "B", "C" e "D", da mesma pessoa jurídica, saibam o que ele está fazendo... Pelo caput do citado art. 3º, a sociedade, em si, será condenada pela responsabilidade penal objetiva, passando à condenação - ou seja, o caráter aflitivo da pena e as suas conseqüências a todos os sócios: a "A", culpado, e a "B", "C", "D", inocentes (que também participam do fundo comum, do qual sairá o pagamento da multa, ou que terão que envidar, igualmente, esforços para o cumprimento de eventual prestação de serviços à comunidade ou restrição de direitos). Pelo mesmo fato, o sócio administrador "A", culpado, sofrerá também condenação, individualmente; ou seja, acabará pagando duas vezes pelo mesmo delito, como sócio da pessoa jurídica, em função da pena a ela aplicada (pelos reflexos imediatos aos sócios, conforme acima se expôs, da sanção imposta ao ente coletivo) e como pessoa física!"

"Portanto, a responsabilidade penal objetiva das pessoas jurídicas, introduzida pelo art. 3º da nova Lei Ambiental, além de ser inconstitucional, por fazer com que a condenação passe do ente coletivo para as pessoas de seus sócios (culpados e inocentes), cria a terrível heresia jurídica do ‘bis in idem’, ao impor dupla apenação ao sócio culpado."

d) Outra situação delicada cria-se no caso de um menor comerciante devidamente emancipado (16 a 18 anos). Como resolver a questão de se processar a pessoa jurídica, com citação do responsável? É certo que a menoridade penal deve ser respeitada. Mas quem responderá pela empresa? Como punir criminalmente um menor de 18 anos? Com certeza, este não pode ser tratado sob os mesmos critérios de uma pessoa física. Ironicamente, poderia ser uma empresa inimputável e, ainda, regida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente!?

e) Outro caso que gera perplexidade é a da alteração contratual de uma pessoa jurídica que esteja sendo processada criminalmente. Parece pouco razoável a punição do novo proprietário. O mesmo raciocínio pode ser aplicado nos casos de fusão ou cisão societária, em que haverá problemas insuperáveis para a definição acerca de quem deve sofrerá as sanções penais. Idêntico é o problema no caso de um contrato social onde está previsto que a sucessão do de cujus assumirá suas cotas. Serão os sucessores os punidos? E se forem menores? Recairá a pena sobre o tutor? Igualmente, é de antever que nos casos de dissolução da sociedade durante o processo fatalmente haverá impunidade.

Tais indagações urgem esclarecimentos. E sob o ordenamento jurídico pátrio vigente, erige-se dificuldade imensa em encontrar soluções mantendo os direitos individuais até a presente data conquistados, especialmente porque não é admissível, no direito penal moderno, a responsabilidade sem culpa.

f) O artigo 24 da Lei dos Crimes Ambientais prevê como espécie de sanção aplicável à pessoa jurídica sua liquidação forçada. Mutatis mutandi, trata-se da pena de morte para a pessoa jurídica. Entretanto, é mister lembrar que esta é uma das penas proibidas pelo texto constitucional vigente, ressalvada a hipótese de guerra declarada. E, como a Lei dos Crimes Ambientais, em termos práticos, promoveu uma equiparação entre a pessoa jurídica e física (ser sujeito ativo de delitos), não há como adotar uma pena para a pessoa jurídica que, para a pessoa física, é proibida constitucionalmente.

g) Outro problema de vulto diz respeito ao processamento dos crimes praticados por pessoas jurídicas, devendo ser salientado que o processo penal brasileiro foi pensado e estruturado tendo em vista a ‘pessoalidade’ do agente. Em vista disso, deve o réu ser citado pessoalmente; o interrogatório é ato personalíssimo em que o acusado tem a ocasião de expor sua versão sobre os fatos, podendo, eventualmente, confessar; o réu pode ser preso preventivamente; pode o réu recusar a participação em determinadas provas ou atos em vista da proteção da intimidade e do direito de não se auto-incriminar.

Nesse diapasão, Tupinambá Pinto de Azevedo pergunta se assistirá à pessoa jurídica o mesmo direito de não auto-incriminação, garantido à pessoa física, pois a Constituição Federal não assegura à pessoa jurídica o direito de silêncio.

Ainda no âmbito processual, outra situação esdrúxula se verifica relativamente à prisão preventiva, sendo evidente sua impossibilidade. Assim, por maior desordem pública que possa ser criada com uma conduta criminosa em matéria ambiental ou, até mesmo, na eminência de uma dissolução da sociedade, o juiz nada poderá fazer para garantir a ordem pública ou econômica ou para assegurar a aplicação da lei penal.

Conclui-se, portanto, que sob a perspectiva processual a Lei nº 9.506/98 conta com omissões e imperfeições inadmissíveis.

h) Deve ser referido, também, que o direito penal universal consagra o princípio da personalidade das penas. Por isso, quem efetivamente cumprirá as penas impostas às pessoas jurídicas serão seus sócios, com o que estará afrontado este princípio. Nos termos do ensinamento de Carlos Ernani Constantino, "devido à natureza aflitiva da pena e ao fato de a pessoa jurídica, criação abstrata do Direito, não ter psiquismo próprio, não é ela, mas, sim, as pessoas de seus sócios que sentem a aflição e os ônus da sanção penal; assim, o caráter aflitivo e o cumprimento do que ficar estabelecido na reprimenda passará, inegavelmente, às pessoas físicas formadoras da sociedade, sejam elas culpadas ou inocentes quanto ao crime ambiental relacionado à empresa; nesta linha de raciocínio, todos os sócios acabam arcando com a pena aplicada à pessoa jurídica".

Lembra-se que as posições favoráveis à imputabilidade penal dos entes coletivos, no que tange à personalidade da pena, afirmam que a pena não passará da pessoa do condenado, somente se projetando para além os seus efeitos, tal como acontece com a pessoa física. Tal argumento, permissa venia, não pde prevalecer, haja vista haver colossal diferença entre "sofrer os efeitos da pena" e "cumprir a pena". A família do apenado, realmente, sofre os efeitos da pena, especialmente os relacionados ao sustento que ficará prejudicado; entretanto, nenhum familiar do preso irá com ele para o presídio sofrer a sanção penal.

i) Outra questão que prejudica a aplicação de sanções penais às pessoas jurídicas é a incapacidade de arrependimento ou reeducação. Desta forma, os fins da pena não poderiam ser atingidos pela aplicação de uma sanção deste tipo.

j) Há manifestações sobre a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei dos Crimes Ambientais, em que, positivamente, quebra-se o axioma societas delinquere non potest. Conforme ensina Luiz Régis Prado, "(...) em rigor, diante da configuração do ordenamento jurídico brasileiro – em especial do subsistema penal – e dos princípios constitucionais penais (v.g., princípios da personalidade das penas, da culpabilidade, da intervenção mínima), que regem e que são reafirmados pela vigência daquele, fica extremamente difícil não admitir a inconstitucionalidade desse artigo, exemplo claro de responsabilidade penal objetiva."

No mesmo sentido vai a posição de Ernani Constantino: "Analisando-se este dispositivo, conclui-se que a ‘mens’ do legislador infraconstitucional foi, indubitavelmente, a de estabelecer a responsabilidade penal objetiva para as pessoas jurídicas ou morais, pela prática de crimes contra o meio ambiente".

k) Por fim, deve ser estabelecido que no âmbito da culpabilidade, tal qual concebida atualmente, não pode haver responsabilidade sem culpa, sendo esta um particular juízo de censura que vai ao encontro de uma inteligência e de uma vontade próprias.

Partindo-se do pressuposto de que a pessoa jurídica não possui existência corpórea própria, nem atividade psicológica genuinamente sua, erige-se como incontestável o argumento de que ela não tem capacidade de se autodeterminar, nem de praticar, por si mesma, ações ou omissões conscientes ou, ao menos, oriundas de uma parcela remota da consciência, pois esta é atributo exclusivo da pessoa humana; destarte, não pode a pessoa coletiva ser considerada autora, co-autora ou partícipe consciente de um fato criminoso.

Ora, consoante o liceu de Cezar Roberto Bitencourt, "(…) a responsabilidade penal ainda se encontra limitada à responsabilidade subjetiva e individual." E, citando René Ariel Dotti, afirma que "no sistema jurídico positivo brasileiro a responsabilidade penal é atribuída, exclusivamente, às pessoas físicas. Os crimes ou delitos e as contravenções não podem ser praticados pelas pessoas jurídicas, posto que a imputabilidade jurídico-penal é uma qualidade inerente aos seres humanos".

No mesmo sentido manifestam-se Zaffaroni e Pierangeli: "(…) Não se pode falar de uma vontade em sentido psicológico no ato da pessoa jurídica, o que exclui qualquer possibilidade de admitir a existência de uma conduta humana. A pessoa jurídica não pode ser autora de delito, porque não tem capacidade de conduta humana no seu sentido onto-ontológico".

Também seria tarefa penosa analisar a culpabilidade, a personalidade, os motivos e as circunstâncias do crime, que são circunstâncias judiciais com base nas quais o juiz fixa a pena base, quando o delito for "cometido" por uma pessoa jurídica.

Portanto, conclui-se que uma breve leitura dos princípios que informam a teoria geral do crime e toda parte geral do nosso Código Penal evidencia que a sistemática penal é estruturada para tratar de conduta humana, e somente desta. Não obstante a argúcia e razoabilidade de certos argumentos favoráveis à punição penal da empresa, ressaltando-se a necessidade de evitar a impunidade e a própria existência de fundamento legal para tanto, deve ser reconhecido que o Direito Penal, tal qual formulado, não admite que seja punida uma empresa, nem que seja esta exposta à persecução criminal; seria abolir tudo o que foi conquistado e defendido até o presente momento sobre garantias e direitos individuais. Ou seja, embora conveniente, o sistema jurídico-penal brasileiro não a comporta.

4.3. As Sanções Aplicáveis à Pessoa Jurídica Pela Lei dos Crimes Ambientais

Tanto a Constituição Federal como o Código Penal prevêem modalidades de penas aplicáveis à pessoa física. Relativamente à pessoa jurídica, a Lei dos Crimes Ambientais adotou, no artigo 21, a pena de multa, a restritiva de direitos e a prestação de serviços à comunidade. As penas restritivas de direitos, nos termos do artigo 22, foram divididas em: suspensão parcial ou total de atividades, interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade e proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações. Além destas sanções, está prevista, no artigo 24, a liquidação forçada da empresa, nos casos especiais ali elencados.

Uma análise cuidadosa revelará que as penas efetivamente aplicáveis às pessoas jurídicas não têm caráter criminal. Não será a empresa que irá prestar serviços à comunidade, podendo, isso sim, financiar serviços, obras, etc., evidenciando-se sanção de caráter civil. Também no caso da pessoa jurídica que tem suspensas ou interditadas suas atividades, bem como a que for proibida de contratar com poder público, não sofrerá sanção de caráter criminal, mas administrativa. Isso demonstra que na lei em comento houve inadequado uso do Direito Penal, seguindo-se a conseqüência necessária: inocuidade.

Há um outro dado deveras interessante para ser analisado relativamente ao subsistema penal instituído pela Lei dos Crimes Ambientais. Os crimes em espécie estão previstos no capítulo V desta Lei, e nota-se que a pena cominada para todos os tipos é a privativa de liberdade, cumulada, ou não, com multa. Pela impossibilidade material de execução, sobre a pessoa jurídica, da pena privativa de liberdade, deverá o juiz substituí-la por uma pena restritiva de direito, que será a efetivamente executada. A questão que se levanta é a solução a ser adotada quando do descumprimento da pena restritiva imposta. Nos termos do Código Penal, quando o condenado descumpre a pena alternativa, haverá a conversão desta em pena privativa de liberdade, devendo cumprir, desta forma, o restante da pena. Aplicada esta regra na Lei em análise, voltar-se-á à situação originária, revelando-se, mais uma vez, a inadequação da punição criminal do ente coletivo.

4.4 A abrangência da Lei nº 9.605/98 às Pessoas Jurídicas de Direito Público

Há, por fim, intrigante questão que diz com a aplicabilidade da Lei dos crimes Ambientais às pessoas jurídicas de direito público. Ou seja, o Estado, mesmo sendo detentor exclusivo do jus puniendi, pode cometer crimes e cumprir penas? Neste aspecto, pode-se afirmar que há uma postura unânime na doutrina no sentido de não haver compatibilidade em, ao mesmo tempo, punir e ser punido.

Outro aspecto a ressaltar é que o Estado será sempre atingido quando da prática de um crime, na condição de sujeito passivo. Pedro Krebs, citando Walter Coelho, leciona que "(…) além do sujeito passivo em sentido estrito, ou seja, direto, específico ou material, há também que considerar o sujeito passivo em sentido genérico, denominado de sujeito passivo indireto ou formal, e que é o Estado. De fato, o Estado, que visa assegurar a harmonia e estabilidade sociais, imprescindíveis à realização do bem comum, sente-se, também, afetado pelo crime e por isso é, igualmente, sujeito passivo genérico em todas as infrações penais".

Outro dado que impõe a conclusão acima delineada situa-se no campo das penas, pois seria inócua, por exemplo, a pena de multa aplicada à União. Na verdade, não seria sanção penal alguma, mas simples remanejamento de créditos orçamentários.

Não se pode esquecer, também, que, na prática, a responsabilidade penal do Estado resultaria em dupla punição às vítimas, uma vez que, ao se atingir um órgão estatal, todos os cidadãos pertencentes a esse Estado também a suportariam, de maneira direta.

Por fim, o Poder Público não pode ser punido no sentido de ser interditado temporariamente estabelecimento, obra ou atividade, etc., o que é imposto pelo princípio da continuidade do serviço público, mesmo motivo que impede a suspensão de suas atividades. Por fim, esdrúxula se mostraria a imposição da proibição de contratar com o Poder Público, tudo revelando que as penas em tela são voltadas ao ente privado.

Sobre os autores
Maurício Fernandes da Silva

advogado, pós-graduado em Direito Ambiental pela UFPel/IDEP

Dario José Kist

Mestre em Direito, Professor de Direito Penal e Processo Penal, Promotor de Justiça no Estado da Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Maurício Fernandes; KIST, Dario José. Responsabilidade penal da pessoa jurídica na Lei nº 9.605/98. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 66, 1 jun. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4168. Acesso em: 22 nov. 2024.

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