Palavras-chave: Poder Discricionário. Delegado de Polícia Civil. Necessidade. Legalidade. Verdade Real. Isonomia.
Introdução
A temática deste trabalho é discorrer sobre a inescusável necessidade do poder discricionário do Delegado de Polícia Civil no desempenhar de suas funções pré-processuais, em sede de inquérito policial, seja ele por meio de investigações complexas ou por lavraturas de autos de prisões em flagrante delito.
Neste aspecto demonstra-se a independência funcional e investigativa da Autoridade Policial em relação ao Ministério Público, sob a ótica do princípio da isonomia, bem como elucida de forma racional a necessidade do livre convencimento fundamentado das decisões em sede policial pelo presidente da investigação.
Outro ponto fundamental do trabalho é arrazoar sobre a busca da verdade real na investigação policial e no que isso implica para o processo penal, enquanto fase seguinte da investigação criminal por assim dizer.
Todas as teses defendidas são baseadas em doutrinas sólidas e consolidadas no âmbito acadêmico e jurisprudencial, não deixando dúvidas quanto à credibilidade das ideias apresentadas.
Desenvolvimento
A sociedade leiga de uma forma geral e até mesmo setores dentro das carreiras jurídicas tendem a imaginar que o Delegado de Polícia comanda investigações criminais e atua no sentido de simplesmente “prender bandidos”, agindo assim como uma espécie de assessor do órgão acusatório, Ministério Público.
Esse tipo de pensamento equivocado e distorcido se dá por falta de conhecimento técnico-realista ou mesmo por fomento arteiro de alguns, no intuito de menosprezar e apequenar a atividade policial comandada pelos Delegados de Polícia.
Os doutos professores Luiz Flávio Gomes e Fábio Scliar em lição de extrema coerência e precisão dizem que:
“O inquérito policial atende ao princípio da isonomia, na medida em que é presidido por autoridade desvinculada dos eventuais futuros órgãos da acusação e da defesa, com o único compromisso de investigar a verdade sobre o fato e sua autoria.
O Delegado de Polícia não está a serviço do Ministério Público, mas do Estado, como autoridade investida de parcela do múnus público no escopo de esclarecer a existência de fatos ilícitos e sua autoria.” (GOMES, 2008)
Em outras palavras, resta límpido a outorga estatal ao Delegado de Polícia da missão de apurar fatos criminosos, com imparcialidade, vez que não é vinculado nem à defesa, tampouco à acusação e de forma independente, contudo sempre pautado nos ditames legais e constitucionais.
Nesse sentido é a estreita lição do Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Melo, em seu voto no HC 84584/SP “O Delegado de Polícia é o primeiro garantidor da legalidade e da justiça”, ou seja, cumpre ao Delegado a função precípua de exercer as garantias e direitos dos cidadãos, neste aspecto, tanto vítimas como autores de crimes, sempre que investigados ou flagranteados.
Insta ainda salientar que o Delegado de Polícia é o primeiro operador do direito a exercer o controle da legalidade de detenções exercidas pelos milicianos e quaisquer outros agentes da Autoridade Policial, conforme ensinamento do Dr. Julio Osmany Barbin, Juiz de Direito, nos Autos Nº 253/2002 da Corregedoria da Justiça na Comarca de Rio Claro/SP:
“Assim, são agentes da autoridade policial judiciária, que é o Delegado de Polícia, toda a Polícia Militar, desde seu Comandante Geral até o mais novo praça e todo o segmento da organização Polícia Civil, bem assim o I.M.L., I.P.T etc... e nenhuma dessas categorias podendo influenciar os atos da autoridade policial, enquanto “atos de polícia judiciária” sujeitos a avaliação jurídico-subjetiva.”
Por toda essa celeuma, atualmente, muito se discute acerca do poder discricionário que o Delegado de Polícia tem no inquérito policial, fundamentalmente no auto de prisão em flagrante.
Ao debruçar com afinco sobre o assunto e fazer um estudo da realidade dos fatos concomitante com o dever-ser, de Hans Kelsen, trazido pela legislação, pode-se notar que a função do Delegado de Polícia, enquanto Autoridade Policial transcende a mera atividade mecânica de fazer interpretação literal da lei objetiva penal.
Indiscutível é o fato de que o Delegado de Polícia é o primeiro jurista a apreciar questões concretas que envolvem crimes, pois incumbe-lhe, com exclusividade a presidência de inquéritos policiais, que se constitui na fase inicial da persecução criminal.
Esse entendimento vem se consolidando a cada dia, ao passo que em ação penal contra integrantes da facção criminosa intitulada “Primeiro Comando da Capital – PPC”, o advogado de um dos réus aponta que seus clientes foram vítimas de constrangimento ilegal, vez que não foram ouvidos após a prisão.
Em seu magnífico relatório a Desembargadora Denise Bonfim cita excelente trabalho da lavra do Delegado de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul, Fabricio De Santis Conceição que assim leciona:
“...Portanto, não há de se negar o liame histórico e atual - existente entre o Poder Judiciário e a Polícia Judiciária Brasileira, devendo tais prerrogativas funcionais de seus comandantes Juiz de Direito e Delegado de Polícia Judiciária, respectivamente, retornarem à isonomia (v.g., garantias constitucionais, remuneração, prerrogativas de foro, dentre outras), a fim de que o trabalho entre as instituições se perfaça de modo satisfatório e condizente com a atual realidade do País, pois o mesmo sujeito que comete o crime, é investigado, preso e submetido a um processo pré-processual denominado "inquérito policial", é também julgado e tem sua pena fiscalizada por um Juiz igualmente capaz moral e intelectualmente, de mesma formação jurídica da do delegado de polícia. Inclusive não existe no Brasil, com exceção da carreira jurídica de Juiz do Tribunal (administrativo) Marítimo do Rio de Janeiro, nenhuma outra que tanto se assemelhe em atribuições e decisões correlatas às de Juiz de Direito como a do Delegado de Polícia: o primeiro, preside o processo judicial, com oitiva de vítima, testemunhas, réu, despachos e decisões (sentença); o segundo, preside o processo pré-judicial denominado inquérito policial, com a semelhante oitiva de vítimas, testemunhas, suspeito/indiciado, despachos, representações e decisões (de indiciamento, de lavratura de flagrante, de arbitramento de fiança, etc).
Assim, fulcramos nosso entendimento no sentido de que o delegado de polícia judiciária, por expressa disposição legal prevista nos artigos 322 e ss., do Código de Processo Penal Brasileiro, lastreado ainda em normas Supralegais e/ou de natureza Constitucional, v.g., art. 7º, item 5, do Pacto de São José da Costa Rica, exerce atipicamente funções judiciais, de conteúdo substancial e efeitos jurisdicionais, cujo reflexo se dá necessariamente no ‘status libertatis’ da pessoa humana, quando, por exemplo, decide pelo arbitramento de fiança-crime ao suspeito, em prol de seu direito de ser posto em liberdade quando a lei o permitir, aguardando-se o prosseguimento do "processo" judicial/inquérito policial em liberdade, conforme visto acima. Corolário do princípio Constitucional da presunção de inocência.
Assim, não há necessidade de que o detido seja apresentado imediatamente ao juiz, pois, em conformidade com o referido "Pacto", a norma interna já determina primeiramente a apresentação do preso à autoridade competente (delegado que também exerce funções judiciais pelo ordenamento nacional), visto que com o transcorrer do processo, será o detido apresentado ao juiz no momento do interrogatório, o qual deverá ser em prazo razoável, ou seja, sem demora...” (Autos: 0000670-49.2014.8.01.000 – TJ/AC)
Em seu mister constitucional[1], o Delegado atua de forma imparcial em busca da verdade real ou substancial, que nos dizeres Rogério Lauria TUCCI é "a reconstrução atingível de fato relevante e metaprocessual, inquisitivamente perquirida para deslinde da causa penal". (TUCCI, 1986, p.145).
Esse conceito de verdade real é traduzido como “a verdade é a manifestação daquilo que é ou existe tal como é” (CHAUI, 1995, p.167) e assim sendo esta manifestação do que é, deve acontecer de maneira mais fidedigna possível dentro da investigação, através de reproduções científicas dos fatos.
Nesta busca constante da verdade real sobre os fatos que lhe são apresentados, o Delegado de Polícia deve agir de forma ética, honesta, imparcial e acima de tudo com independência funcional, baseando-se em seu livre convencimento jurídico.
E que para essa atuação seja concretizada é imprescindível que o Delegado de Polícia atue consubstanciado ao poder discricionário, que segundo a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello consiste na:
“margem de liberdade conferida pela lei ao administrador a fim de que este cumpra o dever de integrar com sua vontade ou juízo a norma jurídica, diante do caso concreto, segundo critérios subjetivos próprios, a fim de dar satisfação aos objetivos consagrados no sistema legal” (MELLO, 2007, p.414)
Essa liberdade de atuação, dentro dos limites legais, definido como poder discricionário é que faz com que cada atuação do Delegado de Polícia seja ímpar, respeitando a peculiaridade e necessidade de cada caso concreto.
Em contrassenso aceitar a teoria de que sua atuação tem como fim único e exclusivo produzir provas para a parte acusadora (Ministério Público) é o mesmo que dizer que, em um Estado Democrático de Direito uma das partes litigantes sempre terá mais poderio e força que a outra, ferindo de morte o princípio da isonomia, através da igualdade material, tida como igualdade na lei.
Assim também descrita como "igualdade de armas no processo para as partes, ou a par conditio, na exigência de que se assegure às partes equilíbrio de forças; no processo penal, igualdade entre Ministério Público e acusado" (FERRAJOLI, 1995, p.767).
Em assim sendo a verdade real nunca seria o norte das investigações penais, em sede policial, pois em sua atividade, o Delegado de Polícia deveria sempre buscar incriminar as pessoas indicadas pelo órgão acusador, tarefa que incumbe aos membros do parquet.
Uma investigação séria e imparcial busca muito mais que simplesmente apontar a autoria e a materialidade do crime, vez que tem como escopo, como dito, busca da verdade real, com suas nuanças e peculiaridades.
Para se ter uma ideia da atuação do Delegado de Polícia pode-se exemplificar com o que ocorre corriqueiramente e de forma rotineira nas delegacias em todo o país, que se remete ao crime de furto.
O Código Penal é bem claro em seu artigo 155 ao normatizar o crime de furto assim: “Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.”.
A referida norma legal é bem clara ao conceituar o crime de furto, não deixando qualquer brecha para interpretações mais complexas. Assim, sempre que uma pessoa for detida cometendo o crime, deveria, em tese, ser presa e processada nos termos do aludido artigo penal.
Acontece que se assim o fosse, qualquer pessoa poderia desempenhar a função, tanto de Delegado de Polícia, como de Promotor de Justiça e até mesmo Juiz de Direito. Mas a realidade se mostra sempre insculpida de pormenores de extrema relevância e que norteiam o deslinde da problemática.
Seguindo com a temática proposta, o Delegado de Polícia ao fazer uso do poder discricionário, poderia deixar flagrantear a pessoa que lhe foi apresentada, para, por exemplo, investigar uma organização criminosa que comete diversos furtos em uma região, ou, sendo o caso, analisar o crime sob a ótica do princípio da insignificância penal, dentre outras inúmeras possibilidades, como o furto culposo, não previsto no ordenamento jurídico, e diariamente apresentado nas delegacias de todo país.
Este é somente um dos inúmeros exemplos que se pode ter da necessidade do poder discricionário na atuação do Delegado de Polícia, enquanto operador do direito, que age de forma imparcial na busca da verdade real no âmbito do Direito Penal.
O Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo tem uma decisão de grande relevância neste sentido:
“A determinação da lavratura do auto de prisão em flagrante pelo Delegado de Polícia não se constitui em um ato automático, a ser por ele praticado diante da simples notícia do ilícito penal pelo condutor. Em face do sistema processual vigente, o Delegado de Polícia tem o poder de decidir da oportunidade ou não de lavrar o flagrante”.
Em suma o que resta demonstrado é que sem o poder discricionário a atuação do Delegado de Polícia rebaixa-se a mero confeccionador de peças inquisitoriais com fito de prender por simplesmente prender.
Conclusão
Após discorrer e fundamentar as ideias pertinentes ao assunto proposto conclui-se que a atividade policial, especificamente a atuação do Delegado de Polícia, enquanto dirigente da polícia judiciária e presidente do inquérito policial, é de extrema necessidade e sempre pauta-se na busca da verdade real.
Somente com a atuação independente e legal da Autoridade Policial é que se constrói uma investigação com base nos princípios fundamentais de igualdade e justiça, pois respeita-se os direitos dos investigados ao mesmo tempo em que não se vincula à parte acusadora, que tem íntimo interesse na condenação.
Assim sendo, resta cristalino que amiúde tem-se o equivocado pensamento de que o Delegado de Polícia busca “prender bandidos” ao passo que a realidade se mostra ao contrário, pois o incessante trabalho se concretiza com a reprodução, dos acontecimentos. Com isso, tem-se um julgamento posterior, criterioso e corroborado com investigação séria e sem interesse pessoal de quem investiga.
REFERÊNCIAS
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007.
BRASIL. Constituição, 1988.
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
CONCEIÇÃO, Fabrício De Santis. Fiança: atribuição do delegado de polícia sob
o prisma da 'função judicial'. Disponível em http://www.delegados.com.br/images/21mai14-acordao-hc-tjac-fabricio-santis-fianca-judicial.pdf. Acessado em 6 ago. 2015.
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: teoria del garantismo penal. Tradução de Perfecto Andrés Ibánez. Madrid: Trotta, 1995.
GOMES, Luiz Flávio e SCLIAR, Fábio. Investigação preliminar, polícia judiciária e autonomia. Disponível em https://www3.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20081020154145672. Acessado em 2 ago. 2015.
RT 679/351 – Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo.
STF - HC 84.584 – SP, Ministro Celso de Mello. DJ Nr. 67 de 10/04/2015.
TUCCI, Rogerio Lauria. Princípios e regras orientadoras do Novo Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1986.
Nota
I[1] CF.Art. 114, § 4º “Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.”