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Necessidade dos filtros para a realização da Justiça

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Agenda 25/08/2015 às 19:55

Para que haja a efetiva realização da justiça no âmbito do direito penal, é necessário que o cidadão passe, no curso da persecução criminal, por diversos filtros, objetivando apurar devidamente o suposto fato criminoso, preservando direitos e garantias.

1. O Estado como expressão da vontade popular

O ser humano é um ser coletivo. Desde os tempos primitivos o homem sempre buscou viver em grupos, inicialmente de maneira nômade, depois estabelecendo raízes, fixando território.

Todavia, em razão dos problemas e conflitos decorrentes da vida em comunidade, houve a necessidade de estabelecer um poder, uma liderança, líder esse que seria o responsável pela condução e manutenção da ordem dos que formavam o grupo.

Daí passa a surgir a ideia de Estado:  uma ficção formada pela população, território e governo, no qual os membros de uma determinada prole cediam parte de suas liberdades e privilégios para um ente, o Estado, que seria responsável por geri-las e proporcionar a paz social através de um governante. Essa é a base da Teoria do Pacto Social, de Jean Jaques Rousseau, em que o Estado tem origem através de um acordo entre os entes que os formam, e o seu poder é legitimado no comum consentimento dos seus participantes.

Com a evolução do Estado, este apesar de ser uno, passa a se repartir em poderes, que tem como função existencial a proteção do cidadão, evitando que o tirano se aposse daquilo que é coletivo, res pública, criando um sistema de controle, em que cada poder é independente, mas deve agir em harmonia com os demais, evitando que um usurpe o que não é função sua.

Nessa sentido é a Teoria da Separação dos Poderes elaborada por Charles Montesquieu, em que o Estado, apesar de uma unidade, se triparte em três poderes: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, cada um limitado mutualmente.

Dessa forma, em apertada síntese, percebe-se a criação e evolução do Estado: saí de um patamar formado uma coletividade pautada em interesses particulares, passa pela liderança realizada por um único soberano (estado Absolutista), até chegar ao Estado Democrático de Direito, juridicamente constituído e fundamentado na Lei, a qual legitima e restringe suas ações tendo como foco a proteção do cidadão através da preservação dos seus direitos fundamentais.


2. Da necessidade de imparcialidade dos órgãos como garantia de direitos

Após uma breve exposição acerca da formação do Estado e da demonstração da necessidade de desconcentração de poder, fica claro que com objetivo de sempre garantir o respeito aos direitos do cidadão, é corolário a ideia de que não deve haver agrupamento de atribuições nas mãos de um único ente/órgão, mas sim o exercício destas sempre com sujeição ao controle, evitando subjetividades.

Assim surge a ideia de imparcialidade, princípio orientador de toda a atividade pública, que informa que no desempenho desta atividade o gestor não deve sobrepor aos interesses coletivos intenções particulares. Em uma outra visão, tal princípio é visto que no momento que um agente público pratica um ato no exercício da função, esta é na verdade imputado ao Estado, conforme a Teoria do Órgão.

Nesse sentido vê-se que para um funcionamento perfeito do Estado, devem existir meios que garantam o regular funcionamento de seus entes e órgãos, prevendo prerrogativas para o exercício das funções estatais, devendo, todavia, em contrapartida, existir meios de controle a fim de evitar o desvio de finalidade.


3. A investigação criminal e a existência de filtros garantidores de direitos

No direito e processo penal, em especial na persecução, após o cometimento de uma infração penal, a ideia de imparcialidade deve ser ainda mais firme, tendo em vista a natureza destes ramos do direito, que tem como foco a restrição mais incisiva dos direitos do cidadão.

Conforme explicita o princípio da intervenção mínima combinado com o princípio da subsidiariedade, o direito penal apenas deve intervir quando necessário para a proteção dos bens jurídicos mais sensíveis da vida em sociedade, de forma que outro ramo do direito seja suficiente para fornecer a segurança necessária.

Nesses termos, a fim de fornecer guarida a tais bens jurídicos, se faz necessária a aplicação de sanções mais graves, conforme dito acima.

Dessa forma, se por um lado o Estado ao aplicar o direito penal às condutas mais perigosas deve se valer de medidas mais enérgicas, o cidadão, presumidamente inocente, conforme estabelece a Constituição Federal no seu artigo 5º, LVII, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos no seu artigo XI, também necessita de meios efetivos para combater eventual abuso estatal.

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Tais meios para alcançarem um grau de efetividade satisfatório, devem ser fornecidos ao cidadão por meio de instrumentos que o permitam defender sua pretensão em juízo, através da garantia de um defensor, de um processo célere, órgãos imparciais e uma sentença justa.

Todavia, tais garantias devem ser também providas pelo Estado em momento anterior, ao se fornecer uma justa causa para a deflagração de um processo.

Em resumo: para que o cidadão possa ser submetido à uma punição pelo Estado em razão da suposta prática de um ilícito penal, devem ser estabelecidos filtros durante a persecução criminal, desde os trabalhos de polícia preventiva até o desenvolver do processo, que vão servir para melhor esclarecer os fatos na busca da verossimilhança, autoria e materialidade, evitando a prática de injustiças.

3.1 O primeiro filtro: a polícia preventiva

A polícia ostensiva ou administrativa, é instituição de policiamento responsável pela realização preponderantemente do trabalho de prevenção em relação ao cometimento de infrações penais, e excepcionalmente de repressão.

Tal policiamento tem como fundamento jurídico de sua atividade o exercício do poder de polícia administrativo, conceituado segundo Maria Sylvia Zanella de Pietro como “a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público”(PIETRO, 2015, p. 124).

Segundo ainda a doutrinadora, diante da abrangência desse poder, existe a “divisão da polícia administrativa em vários ramos: polícia de segurança, das florestas, das águas, de trânsito, sanitária etc” ”(PIETRO, 2015, p. 124).

Institucionalmente, a Constituição Federal informa que essa atribuição preventiva é desenvolvida em regra pelas polícias rodoviárias e ferroviárias federais e ainda pela Polícia Militar.

Esta última, em especial, sendo uma das responsáveis pela Segurança Pública nos termos do art. 144 da Constituição Federal, tem, como exposto anteriormente, função eminentemente preventiva, de acordo com os parágrafos 5º e 6º do mesmo artigo, conforme se observa:

Art. 144

(...)

§ 5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.

§ 6º As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.

Dessa forma, diante de sua função constitucional, cabe a polícia militar exercer papel intimidatório a criminalidade. Ressalta-se que o termo intimidatório não se refere ao cometimento de abusos, e sim como a presença do Estado nas ruas realizando trabalho educativo e preventivo coibindo as possíveis ações criminosas com a simples presença fardada.

Esse é o primeiro filtro relacionado à apreciação de uma determinada conduta supostamente afastada do direito: a polícia militar, através do poder de polícia administrativo a ela conferido, tem o poder de restringir em favor do interesse público direitos e liberdade individuais visando prevenir a prática de atos lesivos ao interesse público.

Todavia, malgrado a função eminentemente preventiva, a polícia militar, até mesmo por sua função constitucional de preservação da ordem pública, ao se deparar com a ocorrência de uma infração penal não pode permanecer inerte, devendo pois agir com o fito de diluir o conflito, reprimindo-o tão logo ele aconteça no desenvolver da atividade de policiamento, encaminhando, em regra (exceção são os crimes militares), os envolvidos à presença da autoridade ou órgão responsável pela valoração jurídica, agora em um segundo momento, da conduta praticada.

3.2 Polícia Judiciária e investigativa: o segundo filtro

Passada a análise das funções da polícia administrativa responsável pela atividade preventiva, é necessária a análise do órgão da persecução criminal responsável pela análise jurídica mais profunda a respeito de uma conduta supostamente ilícita e ainda por desenvolver como atividade-fim os trabalhos de investigação dos delitos, a saber, a polícia judiciária e investigativa.

Trata-se de polícia repressiva e criminal por excelência, que passa a desempenhar suas funções após a realização de um fato tido como uma infração penal – crime ou contravenção – e tem como atividade o fornecimento de dados que possam embasar uma denúncia ou queixa-crime e ainda de provimentos judiciais cautelares através da coleta de provas e elementos de informações.

Todavia, bem mais que estas funções relacionadas ao descobrimento da autoria e materialidade delitiva que compões a justa causa penal, a polícia repressiva, como órgão imparcial e garantidor de direitos, tem como foco a investigação possibilitando o aparecimento de uma verossimilhança entre os fatos e aquilo que verdadeiramente ocorreu, o que a doutrina padronizou em chamar de busca da “verdade real.”

Essa espécie de polícia, como órgão da segurança pública, é prevista no artigo 144 da Constituição Federal, que da análise dos incisos I e IV, combinados com os parágrafos 1º e 4º, percebe-se que é exercida pela polícia federal e polícia civil.

Tais instituições são estruturadas em carreiras e dirigidas pelo Delegado de Polícia, autoridade aprovada em concurso público para tal mister, cuja atividade possui natureza jurídica conforme a Lei 12.830/2013, requisito necessário para uma correta e justa análise de um provável ilícito penal.

Usualmente as polícias investigativas judiciárias são tratadas como sinônimas, inclusive pelo próprio Supremo Tribunal Federal que na súmula vinculante nº 14 se refere somente à polícia judiciária. Entretanto, a doutrina costuma dar conceitos diferentes a cada uma das expressões, pois apesar de exercerem ações repressivas em relação a ocorrência de crimes e contravenções, desenvolvem por meios diferentes, os quais sejam o exercício de atividades junto ao poder judiciário e ainda através da coleta e produção de provas e elementos de informações, sendo esta última a atividade investigativa.

Nesse sentido, leciona o professor Renato Brasileiro:

Como se percebe, a própria Constituição Federal estabelece uma distinção entre as funções de polícia judiciária e as funções de polícia investigativa. Destarte, por funções de polícia investigativa devem ser compreendidas as atribuições ligadas à colheita de elementos informativos quanto à autoria e materialidade das infrações penais. A expressão polícia judiciária está relacionada às atribuições de auxiliar o Poder Judiciário, cumprindo as ordens judiciárias relativas à execução de mandados de prisão, busca e apreensão, condução coercitiva de testemunhas, etc . Por se tratar de norma hierarquicamente superior, deve, então, a Constituição Federal, prevalecer sobre o teor do Código de Processo Penal (art. 4°, caput ).

Percebe-se assim, que apesar da existência das duas nomenclaturas, fica claro que tais atividades, investigativa e de polícia judiciária, devem ser preponderantemente exercidas pelas polícias civis e federal, conforme citado novamente pelo professor Renato Brasileiro:

Independentemente dessa discussão, é  certo dizer que as atividades investigatórias devem ser exercidas precipuamente por autoridades policiais, sendo vedada a participação de agentes estranhos à autoridade policial , sob pena de violação do art. 14 4, § 1° , IV, da CF /1988, da Lei n° 9.883/ 1999, e dos arts . 4° e 157  e parágrafos do CPP . Por isso, os Tribunais vêm considerando que a execução de atos típicos de polícia investigativa como monitoramento eletrônico e telemático, bem como ação controla d a, por agentes de órgão de inteligência (v .g., ABIN) sem autorização judicial, acarreta a ilicitude da provas assim obtidas .

A ressalva fica no que tange aos crimes militares, que quando ocorrerem deverão ficar a cargo da polícia militar, órgão que tem como função a polícia preventiva, mas que nessa situação, e somente nesta, fica autorizado constitucionalmente a investigar, nos termos do parágrafo 4º do art. 144 da Constituição Federal.

O instrumento utilizado pela polícia judiciária para formalizar a realização dos seus trabalhos é o Inquérito Policial e a sua variante, o Termo Circunstanciado de Ocorrência no caso de infrações de menor potencial ofensivo. Apesar de terem caráter inquisitivo, estes constituem importantes instrumentos para a garantia dos direitos do cidadão, uma vez que são presididos pelo Delegado de Polícia, autoridade com formação jurídica e imparcial, tendo como foco a descoberta da verdade dos fatos, evitando que um inocente suporte o peso de um processo criminal, ou que um criminoso fique impune.

Insta ressaltar que apesar das críticas recebidas, não há dúvidas da importância do Inquérito Policial, hoje grande responsável por subsidiar o início das ações penais, sendo o instrumento mais abrangente para a investigação das infrações penais ocorridas em todo o seio social, sem poder de escolha, em consonância com o princípio da obrigatoriedade.

3.3 O terceiro filtro da persecução criminal: o Ministério Público e o poder Judiciário

Por fim, após os trabalhos realizados pela polícia preventiva e da repressão criminal feita pela polícia judiciária, nos quais o fato tido como criminoso passa por dois estágios de valoração, sendo um deles através de análise jurídica feita pelo Delegado de Polícia, após a obtenção da justa causa penal fica a cargo do Ministério Público, nas ações penais públicas, o oferecimento da denúncia, caso se convença da presença de que o fato constitui um crime ou contravenção, ou ainda do pedido de arquivamento, se entender o contrário.

Ao poder judiciário é dado o poder de também exprimir juízo de valor acerca do fato, pois caso esteja convencido da presença de elementos que indiquem a autoria e a materialidade delitiva por parte do investigado, receberá a denúncia. Entretanto, não estando convencido dos argumentos inseridos na denúncia ou queixa crime, poderá deixar de receber os pleitos, rejeitando-os conforme dispõe o art. 395 do Código de Processo Penal.

Outrossim, ressalta-se que em caso de pedido de arquivamento realizado pelo Ministério Público, pode a autoridade judiciária encaminhar os autos ao Procurador Geral, que poderá, a depender da situação, oferecer a denúncia, designar um outro promotor para oferta-la, sendo que este atuará como uma extensão do procurador (longa manus), requisitar diligências à polícia judiciária ou concordar com o pedido de arquivamento.

Ressalta-se que ao investigado é garantida o contraditório e a ampla defesa, sendo que esta no procedimento do júri amplia-se na plenitude de defesa – pois ao ser julgado por seus pares, entende-se que os argumentos superam a seara jurídica – através principalmente do advogado ou defensor público.

Por fim, em poucas linhas e não querendo esgotar o tão profundo tema, respeitados todos os filtros pelo qual passou o cidadão que supostamente praticou uma infração penal, preservando os direitos e garantias do acusado e os diferentes ritos processuais penais, é proferida uma sentença, a qual pelo menos em um primeiro momento encerra toda a persecução.

É importante esclarecer que o presente artigo, por ter como foco a discussão acerca do respeito dos filtros que o cidadão que supostamente cometeu um delito deve passar para que hajam elementos suficientes para uma condenação ou absolvição justa, não tocou nos temas da transação penal, suspensão condicional do processo, colaboração premiada e outros, seguindo aquilo que seria o desenvolver completo do procedimento criminal.

Sobre o autor
Thiago Sales e Silva

Formado em Bacharelado em Direito pela Universidade Estadual do Piauí e Delegado de Polícia Civil no estado do Piauí.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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