Sumário:1.O advento da informática - 2. Incursões jurídicas - 3. A Resolução da ONU - 4. A duplicata virtual
1. O advento da informática
Surge, no mundo mais moderno, nova situação conflitante a desafiar o Direito Cambiário, em vista do desenvolvimento eletrônico e dos meios de comunicação. Importante fator das mudanças no direito foi ainda a ascensão do computador, da informática e das pesquisas operacionais. Como ficará o Direito Cambiário ante os progressos eletrônicos nas comunicações humanas? Como nosso direito poderá ambientar-se às novas situações perante esses sistemas revolucionários? É o que procuraremos ver na análise de nossa moderna legislação.
Ao examinar nossa legislação cambiária observamos que o Direito Cambiário repousa principalmente na Lei Cambiária, como é chamada a Convenção de Genebra de 1930. O ano de 1930 pertence à primeira metade do século XX e ao final deste século completou 70 anos. Estamos falando hoje no ano de 2015 do século XXI, completando nossa Lei Cambiária 85 anos de vida. Nesses 85 anos muita água passou por debaixo da ponte: tivemos novo Código Civil e desapareceu o Código Comercial de 1850. Passamos por quatro constituições e a maioria das leis foi substituída por outras. O direito adquiriu novas facetas e novas interpretações. Nossa Lei Cambiária ficou superada no tempo e no espaço e hoje não consegue impor suas normas e seus princípios; exige nova revisão, que não se apresenta como fácil. Muitos países que a subscreveram não mais existem e outros surgiram depois dela. Essa tarefa caberia hoje à ONU – Organização das Nações Unidas
Voltemos então à nossa Lei Cambiária, que é a Convenção de Genebra, ou LUG – Lei Uniforme de Genebra, que continua em vigor; ela foi transformada em lei brasileira pelo Decreto 57.663/1966, cuja ementa diz:
“Promulga as Convenções para a adoção de uma Lei Uniforme em matéria de letras de câmbio e notas promissórias.”
Naquela época, vale dizer, em 1930 só havia praticamente dois títulos de crédito: a letra de câmbio e a nota promissória. Por isso a LUG foi considerada a Lei Cambiária e passou a valer para os demais títulos de crédito criados posteriormente. Hoje, porém, muitos outros títulos de crédito foram criados sem que a LUG os tivesse previsto e ela não se refere mais a eles; esses títulos podem adquirir caracteres próprios, diferentes dos letra de câmbio e à nota promissória, o que está de acordo com a sua ementa. Não atinge os títulos de crédito criados após ela, ou seja, após 1930. A situação ficaria esclarecida assim, mas, haverá situações novas criadas para os títulos originários: letra de câmbio de nota promissória.
Tratando-se especificamente da letra de câmbio e da nota promissória a situação não se encontra em ponto pacífico. A prática tem revelado que esses títulos estão-se afastando da LUG de forma tranquila, sem causar atropelos, mormente na área internacional. Para se ter uma idéia, bastaria relatar um fato ocorrido há mais de 20 anos: um banco de São Paulo sacou uma letra de câmbio contra uma empresa das Ilhas Cayman e esta aceitou o saque por comunicação eletrônica; em seguida o banco sacador endossa essa letra de câmbio a um banco em Paris, tudo eletronicamente; em Paris houve o aval de outra empresa, e a letra acabou sendo paga. Destarte, houve o saque, o aceite, o endosso e o aval, encerrando essa letra de câmbio seu “iter” com o pagamento. Não houve o pedaço de papel e nem assinaturas. Nos critérios da LUG isso seria uma aberração. E não é um fato isolado, mas uma prática costumeira.
Pelo princípio da cartularidade o título de crédito é uma cártula, vale dizer, um pedaço de papel. Diz a LUG que a declaração cambiária se faz pela assinatura do próprio punho, mas a letra de câmbio que acabamos de apontar não teve qualquer assinatura dos participantes e nem era feita num pedaço de papel, isto é, numa cártula. Vemos, desta forma, que os caracteres do título de crédito preconizados pela LUG estão rompidos, sem alteração dos efeitos jurídicos na “nova disciplina”, que já se projeta na legislação.
2. Incursões legislativas
De maneira quase silenciosa ocorreram certas incursões de normas perturbadoras da rigidez cambiária na legislação brasileira. O mais frisante preceito neste sentido pode ser considerado o artigo 889 do novo Código Civil, de 2002, que transcrevemos:
Deve o título de crédito conter a data da emissão, a indicação precisa dos direitos que confere, e a assinatura do emitente.
§ 1º ..............
§ 2º ..............
§ 3º - O título poderá ser emitido a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste artigo.
Ao apontar três formalidades, diz esse artigo que o título de crédito é formal, mas o parágrafo terceiro abre uma brecha com a ressalva da admissão de um título de crédito caracterizado por dados eletrônicos. Aliás, não é uma brecha, mas um rombo. Permite a existência de dados oriundos de qualquer equipamento eletrônico. Com base nesse dispositivo, milhares de títulos de crédito são emitidos diariamente, como as duplicatas, chamadas virtuais, das quais falaremos amiúde. Acontece muito nas grandes empresas e nos estabelecimentos bancários que as aceitam. É uma forma de racionalizar o trabalho e economizar tempo e esforço; não há necessidade de ficar um “assinador” o dia inteiro assinando títulos que podem ser emitidos com um carimbo mecânico.
O uso de documentos gerados digitalmente é admitido no próprio Código Civil, no artigo 225, embora sem se referir a títulos de crédito:
As reproduções fotográficas, cinematográficas, os registros fonográficos e, em geral, quaisquer outras reproduções mecânicas ou eletrônicas de fatos ou de coisas fazem prova plena destes, se a parte, contra quem forem exibidos, não lhes impugnar a exatidão.
Ao liberar os títulos de crédito emitidos digitalmente em certas áreas do direito, nossa legislação estende essa liberalidade, por analogia, ao Direito Cambiário. É o que fez a Lei 11.419/2006, ao adotar a informatização dos processos judiciais, nas áreas civil, penal e trabalhista, bem como aos juizados. O Poder Judiciário vem-se informatizando, com a adoção do computador e vários sistemas computacionais. Como exemplo, podemos citar as pesquisas de processos pela Internet, dispensando consulta em cartório.
Segundo a Lei 11.419/2006 o meio eletrônico significa qualquer forma de armazenamento ou tráfego de documentos e arquivos digitais; transcrição eletrônica é toda forma de comunicação à distância com a utilização de redes de comunicação, preferencialmente a rede mundial de computadores. Considera assinatura eletrônica a assinatura digital emitida por autoridade certificadora credenciada pelos órgãos respectivos.
Os processos judiciais tradicionalmente começam com base nos papéis, com documentos escritos. Há o depoimento pessoal, que é sempre tomado a termo, transformado em documento escrito. O processo termina por uma sentença escrita. No título de crédito, o crédito é materializado na cártula e quem paga deve exigir sua apresentação. Assim também ocorre em juízo: quem cobra um título de crédito tem que apresentá-lo à Justiça. Não serve fotocópia, pública forma e nem mesmo escritura pública, que, aliás, não é permitida. Como poderia o crédito materializar-se numa cártula que nem sequer existe?
É o mais sutil dos problemas referentes ao título de crédito eletrônico: como desmaterializar o crédito, afrontando um princípio básico do Direito Cambiário, que é a cartularidade! Aliás, o Direito Cambiário é também chamado de Direito Cartular. Que amparo legal terá um juiz para considerar o crédito sem o documento em que estiver incorporado! Uma solução possível, por exemplo, seria um acordo escrito entre as partes, com o devedor autorizando o credor para formular um crédito eletrônico, com caracteres magnéticos e registro na contabilidade do credor. Haverá então o embasamento legal pelas leis já referidas e a concordância do credor com elas, tirando-lhe os meios de defesa em contrário. A formação do título de crédito eletrônico é plenamente viável, sob o ponto de vista legal e é aceito pela coletividade. Essa solução, porém, irá esbarrar nas características dos títulos de crédito de que só vale o que está escrito no título, não se admitindo documentos à parte.
Ressalte-se o artigo 11 da Lei 11.419/2006, mormente o seu caput:
Art. 11. Os documentos produzidos eletronicamente e juntados aos processos eletrônicos com garantia da origem e de seu signatário, na forma estabelecida nesta Lei, serão considerados originais para todos os efeitos legais.
§ 1o Os extratos digitais e os documentos digitalizados e juntados aos autos pelos órgãos da Justiça e seus auxiliares, pelo Ministério Público e seus auxiliares, pelas procuradorias, pelas autoridades policiais, pelas repartições públicas em geral e por advogados públicos e privados têm a mesma força probante dos originais, ressalvada a alegação motivada e fundamentada de adulteração antes ou durante o processo de digitalização.
§ 2o A argüição de falsidade do documento original será processada eletronicamente na forma da lei processual em vigor.
§ 3o Os originais dos documentos digitalizados, mencionados no § 2o deste artigo, deverão ser preservados pelo seu detentor até o trânsito em julgado da sentença ou, quando admitida, até o final do prazo para interposição de ação rescisória.
§ 4o (VETADO)
§ 5o Os documentos cuja digitalização seja tecnicamente inviável devido ao grande volume ou por motivo de ilegibilidade deverão ser apresentados ao cartório ou secretaria no prazo de 10 (dez) dias contados do envio de petição eletrônica comunicando o fato, os quais serão devolvidos à parte após o trânsito em julgado.
§ 6o Os documentos digitalizados juntados em processo eletrônico somente estarão disponíveis para acesso por meio da rede externa para suas respectivas partes processuais e para o Ministério Público, respeitado o disposto em lei para as situações de sigilo e de segredo de justiça.
Se o Poder Judiciário aceita e adota a documentação digital, dando-lhe plena validade e eficácia teria força para desconsiderá-lo no Direito Cambiário?
Essas disposições foram ratificadas pela Lei 9.800/99, com artigos bem incisivos. Vejamos o que diz:
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o É permitida às partes a utilização de sistema de transmissão de dados e imagens tipo fac-símile ou outro similar, para a prática de atos processuais que dependam de petição escrita.
Art. 2o A utilização de sistema de transmissão de dados e imagens não prejudica o cumprimento dos prazos, devendo os originais ser entregues em juízo, necessariamente, até cinco dias da data de seu término.
Parágrafo único. Nos atos não sujeitos a prazo, os originais deverão ser entregues, necessariamente, até cinco dias da data da recepção do material.
Art. 3o Os juízes poderão praticar atos de sua competência à vista de transmissões efetuadas na forma desta Lei, sem prejuízo do disposto no artigo anterior.
Art. 4o Quem fizer uso de sistema de transmissão torna-se responsável pela qualidade e fidelidade do material transmitido, e por sua entrega ao órgão judiciário.
Parágrafo único. Sem prejuízo de outras sanções, o usuário do sistema será considerado litigante de má-fé se não houver perfeita concordância entre o original remetido pelo fac-símile e o original entregue em juízo.
Art. 5o O disposto nesta Lei não obriga a que os órgãos judiciários disponham de equipamentos para recepção.
3. A Resolução da ONU
Estamos examinando um problema brasileiro, que não deve ser apenas nosso, mas um fenômeno universal. O Direito Empresarial se internacionaliza cada vez mais em decorrência da globalização das atividades econômicas e empresariais. Nessa tendência da economia moderna, temos que ressaltar a atuação de um órgão da ONU, denominado UNCITRAL – United Nations Conference on Trade Law, havendo também a sigla em português: CNUDCI – Conferência das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional. Esse órgão tem vários objetivos e um deles é a uniformização das leis dos diversos países, procurando harmonizar o regramento jurídico. Visa, dessa forma, a facilitar e desenvolver as transações econômicas internacionais, com o aperfeiçoamento da legislação empresarial. Visa ainda a remover ou reduzir os entraves que dificultam o comércio internacional. O Brasil é parte ativa desse órgão.
Uma das contribuições da UNCITRAL é a divulgação de uma lei modelo de certas práticas nas atividades econômicas internacionais. Uma delas, de primordial importância foi a apresentação de lei modelo sobre arbitragem e outros métodos alternativos de solução de conflitos. Com base esse sistema de solução de litígios, e mantendo a uniformidade e harmonia na legislação dos países. Nessa orientação, a UNCITRAL elaborou a Lei Modelo sobre Assinatura Eletrônica. Foi a Resolução 51/162 da Assembléia Geral da ONU, em 1966, chamada de LEI MODELO SOBRE COMÉRCIO ELETRÔNICO.
Diz a UNCITRAL que sua missão é a de fomentar a harmonização e a unificação progressivas do direito comercial internacional e de ter presente, a esse respeito, o interesse de todos os povos, em particular o dos países em desenvolvimento, no progresso amplo do comércio internacional. Observa que um número crescente de transações comerciais internacionais se realiza por meio do intercâmbio eletrônico de dados e por outros meios de comunicação, habitualmente conhecidos como "comércio eletrônico", nos que se utilizam métodos de comunicação e armazenamento de informações, substitutivos dos que utilizam papel.
Considera a elaboração de uma lei modelo que facilite o uso do comércio eletrônico seja aceitável para Estados que tenham sistemas jurídicos, sociais e econômicos distintos poderia contribuir de maneira significativa ao estabelecimento de relações econômicas internacionais harmoniosas. Estima que a aprovação da Lei Modelo sobre Comércio Eletrônico ajudará de maneira significativa todos os Estados a fortalecer a legislação que rege o uso de métodos de comunicação e armazenamento de informações, substitutivos dos que utilizam papel e a preparar tal legislação nos casos em que dela careçam.
Recomenda que todos os Estados considerem de maneira favorável a Lei Modelo quando promulguem ou revisem suas leis, tendo em conta a necessidade de promover a uniformidade do direito aplicável aos métodos de comunicação e armazenamento de informações, ou seja, métodos substitutivos dos que utilizam papel. Recomenda também que não se meçam esforços para velar para que a Lei Modelo e o Guia sejam amplamente conhecidas e estejam à disposição de todos. Esta Lei aplica-se a qualquer tipo de informação na forma de mensagem de dados usada no contexto de atividades comerciais.
Entende-se por "mensagem eletrônica" a informação gerada, enviada, recebida ou arquivada eletronicamente, por meio óptico ou por meios similares incluindo, entre outros, "intercâmbio eletrônico de dados" (EDI), correio eletrônico, telegrama, telex e fax.
Entende-se por "intercâmbio eletrônico de dados" (EDI) a transferência eletrônica de computador para computador de informações estruturadas de acordo com um padrão estabelecido para tal fim.
Não se negarão efeitos jurídicos, validade ou eficácia à informação apenas porque esteja na forma de mensagem eletrônica. Não se negarão efeitos jurídicos, validade, ou eficácia à informação pela simples razão de que não esteja contida na própria mensagem de dados destinada a gerar tais efeitos jurídicos, mas que a ela meramente se faça remissão naquela mensagem de dados.
Em procedimentos judiciais, administrativos ou arbitrais não se aplicará nenhuma norma jurídica que seja óbice à admissibilidade de mensagens eletrônicas como meio de prova pelo simples fato de serem mensagens eletrônicas; ou pela simples razão de não haverem sido apresentadas em sua forma original, sempre que tais mensagens sejam a melhor prova que se possa razoavelmente esperar da pessoa que as apresente.
Toda informação apresentada sob a forma de mensagem eletrônica gozará da devida força probante. Na avaliação da força probante de uma mensagem eletrônica, dar-se-á atenção à confiabilidade da forma em que a mensagem haja sido gerada, armazenada e transmitida, a confiabilidade da forma em que se haja conservado a integridade da informação, a forma pela qual haja se haja identificado o remetente e a qualquer outro fator pertinente.
Salvo disposição em contrário das partes, na formação de um contrato, a oferta e sua aceitação podem ser expressas por mensagens eletrônicas. Não se negará validade ou eficácia a um contrato pela simples razão de que se utilizaram mensagens eletrônicas para a sua formação. Nas relações entre o remetente e o destinatário de uma mensagem eletrônica, não se negará validade ou eficácia a uma declaração de vontade ou outra declaração pela simples razão de que a declaração tenha sido feita por uma mensagem eletrônica.
4. A duplicata virtual
4.1. Conceito de duplicata virtual
A duplicata transformou-se no mais comum e dinâmico título de crédito aplicado nas operações empresariais, mais do que o cheque, que está desaparecendo ao ser substituído pelo cartão magnético. A emissão, aos milhões, desse título de crédito, abarrota a burocracia bancária, causando atropelos e dificuldades, exigindo grande contingente de pessoas na execução de serviços e diminuindo a eficiência do trabalho. Esta situação afronta a racionalização do trabalho e o dinamismo próprio das atividades empresariais. É tônica da atual vida empresarial a busca da eficiência e da simplificação do trabalho, como também a produtividade dos investimentos e a segurança no retorno deles.
Impressionado com o aumento constante de gastos, o mundo bancário procurou racionalizar o trabalho com soluções criativas. O pagamento da duplicata era um nó na garganta bancária por ser um título de trato dificultoso; quem quisesse pagá-lo precisava localizá-lo, já que nem sempre o tinha em mãos. As formas de pagamento evoluíram mais ainda, encontrando-se fórmulas para se pagar por telefone, sem precisar deslocar pessoas, sem o uso de cheque, sem transportar dinheiro, sem assinaturas, sem precisar recibo no próprio título e sem precisar confeccioná-lo, pois o recibo é emitido por uma máquina computadorizada. Hoje o devedor faz seus pagamentos sem precisar levantar-se de sua cadeira.
Repetimos que a Lei Cambiária não foi criada para a duplicata; essa lei surgiu bem antes que a duplicata fosse criada. Além do mais, a duplicata é um título de crédito afastado das características dos demais títulos de crédito. Tullio Ascarelli, o notável jurista italiano, verdadeiro criador do moderno Direito Empresarial, discípulo de Cesare Vivante, o criador do moderno Direito Comercial, tinha especial predileção pelo Direito Cambiário. Ascarelli elegeu a abstração como a mais sutil e mais importante característica do título de crédito. Pela abstração, o título de crédito é abstrato porque existe por si, isolado, sem qualquer ligação com outro documento e outras relações jurídicas, inclusive com sua causa; só vale o que nele está contido. Não é o que acontece com a duplicata: ela não é um título abstrato, porquanto está ligado a outro documento, que é a fatura. Aliás, este título é assim denominado porque é a “fatura duplicada”, “duplicata da fatura”
Por sua vez, a fatura é ligada a um contrato de compra e venda. Em outras palavras, não pode haver duplicata sem fatura e não pode haver fatura sem a venda de alguma coisa. Por conseguinte, a duplicata é um título causal, ou seja, tem uma causa da qual não pode juridicamente se separar.
Se a duplicata afastou-se da abstração, também lhe falta a cartularidade. Assim sendo, haveria de surgir uma duplicata sem cártula, sem o pedaço de papel: esta é a duplicata virtual, conhecida também por duplicata magnética, escritural, eletrônica, cambial-extrato, e várias outras designações. Adotaremos, porém, a mais comum, que é duplicata virtual. É um título imaterial, sem cártula, portanto desmaterializado, gerado pelo computador da empresa emissora.
4.2. A origem francesa
A duplicata é criação nossa; somente existe no Brasil, mas a duplicata virtual parece ter sido importada da França, que criou a lettre de change relevé. Na verdade a duplicata é uma versão da letra de câmbio, tanto que tem as mesmas figuras intervenientes: sacador, sacado, favorecido, avalista e endossante; tem também as mesmas declarações cambiárias: saque, aceite, aval e endosso. A França desconhece a duplicata, mas inspirou outros países, como o Brasil, com a lettre de change relevé. Esse título é uma letra de câmbio normal, porém emitido eletronicamente, desmaterializado. Uma lei de 1973 o permitiu e ele se vulgarizou em todo o país e alastrou-se pelo mundo. A duplicata virtual é a reprodução quase igual da lettre de change relevé, que é um título escritural, emitido de forma eletrônica.
4.3. Supedâneo legal da duplicata virtual
Nossa legislação é silente quanto à duplicata virtual, nada falando sobre ela. Entretanto, se não a autoriza, também não a proíbe; se nada fala, não aprova nem desaprova. A Lei da Duplicata (Lei 57.663/66) não faz referência a ela, o que parece lógico, pois, naquela época, os meios eletrônicos de comunicação estavam em situação embrionária. A lei abre brecha, todavia, para a criação da duplicata virtual, graças às disposições já citadas, mormente o artigo 889, § 3º do Código Civil.
Houve, a princípio algumas resistências ao embasamento legal no novo tipo de duplicata, uma vez que as inovações trazem incertezas. As atividades práticas das empresas foram forçando a Justiça a pronunciar-se sobre o tema, aguçando a curiosidade e estimulando a adoção do novo título ante as inúmeras vantagens e aos resultados práticos que ele ia proporcionando. Hoje, não há mais dúvida quanto à validade jurídica da duplicata virtual: ela conta com previsão legal. Se assim não fosse, a duplicata virtual não teria se alastrado tanto e deixado à parte a duplicata clássica. Poucas empresas seguem hoje o sistema antigo, que só lhes traz desvantagens. E o pronunciamento judicial não deixa mais dúvidas, como veremos adiante:
4.4. Forma de elaboração da duplicata virtual
O novo sistema surgiu para facilitar a vida empresarial e simplificar o trabalho; por isso tornou-se prático. A empresa emissora da DV faz o saque por um registro no computador, sem extrair documentos escritos. Os dados da duplicata computadorizada são enviados de forma magnética a um banco que irá cobrá-la ao devedor (o sacado). O banco elabora um boleto e o envia ao devedor que paga com ele em qualquer agência do banco. Pode também pagar pela Internet. Interessante notar que não há o aceite da duplicata, mas o devedor poderá aceitá-la por uma simples mensagem magnética (E-mail), critério bem diverso do aceite cambiário.
Sendo paga a DV pelo boleto, está formalizada a operação. Não havendo pagamento poderá haver o protesto do título, o que acarretará problemas, mas já superados pela criatividade empresarial: o banco remete ao Cartório de Protesto por meio magnético os dados da DV, já que o Cartório também está integrado na rede magnética. Tudo isso parece complicado, mas o sistema tem funcionado a contento e a DV está hoje triunfante.
DECISÕES JURISPRUDENCIAIS - Duplicata Virtual
STJ - RECURSO ESPECIAL REsp. 1024691 PR 2008/0015183-5 (STJ)
Data de publicação: 12/04/2011
Ementa: EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. DUPLICATA VIRTUAL. PROTESTO POR INDICAÇÃO. BOLETO BANCÁRIO ACOMPANHADO DO COMPROVANTE DE RECEBIMENTODAS MERCADORIAS. DESNECESSIDADE DE EXIBIÇÃO JUDICIAL DO TÍTULO DE CRÉDITO ORIGINAL.
As duplicatas virtuais - emitidas e recebidas por meio magnético ou de gravação eletrônica - podem ser protestadas por mera indicação, de modo que a exibição do título não é imprescindível para o ajuizamento da execução judicial.
“Lei 9.492 /97. 2. Os boletos de cobrança bancária vinculados ao título virtual, devidamente acompanhados dos instrumentos de protesto por indicação e dos comprovantes de entrega da mercadoria ou da prestação dos serviços, suprem a ausência física do título cambiário eletrônico e constituem, em princípio, títulos executivos extrajudiciais.”
3. Recurso especial a que se nega provimento.
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TJ-MG - Apelação Cível AC 10694120056635001 MG (TJ-MG)
Data de publicação: 14/11/2013
Ementa: AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL - DUPLICATAS VIRTUAIS - REQUISITOS LEGAIS - RECURSO PROVIDO. –
As duplicatas são documentos indispensáveis à propositura da ação. No caso ora em apreço, tais documentos estão representados por duplicatas virtuais, as quais preenchem os requisitos da lei de regência. - Recurso provido.
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TJ-SP - Agravo de Instrumento AI 20470486720138260000 SP 2047048-67.2013.8.26.0000 (TJ-SP)
Data de publicação: 20/12/2013
Ementa: EXECUÇÃO DE TITULO EXTRAJUDICIAL. COBRANÇA EXERCIDA COM LASTRO EM DUPLICATAS VIRTUAIS. POSSIBILIDADE. DECISÃO REFORMADA.
A duplicata virtual, embora não seja um título materializado, deve ser reconhecida como título executivo, desde que a ação seja instruída com o comprovante da entrega da mercadoria e com o instrumento do protesto. Precedentes jurisprudenciais. Agravo provido.
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STJ - AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL AgRg no AREsp 27041 GO 2011/0086516-6 (STJ)
Data de publicação: 26/05/2014
Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. FUNDAMENTO INATACADO. SÚMULA N. 283 DO STF. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 514 E 515 DO CPC . DEFICIÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. SÚMULA N. 284 DO STF. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE TÍTULO C/C INDENIZATÓRIA. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA.
DUPLICATA VIRTUAL. PROTESTO POR INDICAÇÃO DE BOLETO BANCÁRIO DEVIDAMENTE ACOMPANHADO DAS NOTAS FISCAIS E DO COMPROVANTE DE ENTREGA DA MERCADORIA. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. DANO MORAL. PEDIDO PREJUDICADO. RECONVENÇÃO PARA COBRANÇA DA DÍVIDA.
É possível o protesto por indicação de boleto bancário devidamente acompanhado da comprovação da realização do negócio jurídico e da entrega das mercadorias, em substituição à duplicata emitida eletronicamente. O reconhecimento da legalidade do protesto torna prejudicado o pedido indenizatório de dano moral. É possível, no bojo de ação que visa a impedir o protesto de título, a reconvenção pelo credor para a cobrança da dívida. Agravo regimental a que se nega provimento.
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TJ-SP - Apelação APL 02267930320118260100 SP 0226793-03.2011.8.26.0100 (TJ-SP)
Data de publicação: 06/03/2014
Ementa: *CONTRATO. CORRETAGEM. ALEGAÇÃO DE DESEQUILÍBRIO CONTRATUAL. DUPLICATA VIRTUAL. FALTA DE ACEITE.
A Lei 9.492 /97, art. 8º , § ún. e o art. 889 , § 3º , do Código Civil tornaram possível a emissão e indicação a protesto de duplicata "virtual" em substituição da cambial física. Não sendo negada a prestação de serviços, despiciendo o aceite da duplicata "virtual" para a sua indicação a protesto por falta de pagamento. .........................
TJ-RS - Apelação Cível AC 70051587343 RS (TJ-RS)
Data de publicação: 27/11/2012
Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO DE EXECUÇÃO EXTINTA. DUPLICATAS VIRTUAIS.
A execução de duplicata virtual deve ser embasada não apenas pelo instrumento de protesto por indicação, mas, também, pelo comprovante de entrega e recebimento das mercadorias. Sentença de extinção mantida. APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70051587343, Décima Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ana Beatriz Iser. Julgado em 14/11/2012)
.......................
TJ-RS - Apelação Cível AC 70056208820 RS (TJ-RS)
Data de publicação: 13/12/2013
Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. EMBARGOS À EXECUÇÃO. NOTA FISCAL ELETRÔNICA E DUPLICATA VIRTUAL. COMPROVAÇÃO DE ENTREGA.
Na esteira da jurisprudência deste Tribunal e do Superior Tribunal de Justiça, viável o protesto, ainda que o título tenha sido emitido na forma de duplicata virtual; cabe ao credor, por outro lado, aparelhar a demanda executiva com documentos hábeis a demonstrar o vínculo negocial subjacente (notas fiscais e protesto). No caso, no entanto, mesmo que superada a questão, o comprovante de entrega da mercadoria não se presta ao seu fim, pois não está identificado o recebedor, o que era de mister. Apelo desprovido. (Apelação Cível Nº 70056208820, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado em 12/12/2013)
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TJ-SP - Apelação APL 00094173420128260526 SP 0009417-34.2012.8.26.0526 (TJ-SP)
Data de publicação: 12/11/2013
Ementa: *EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL. DUPLICATA VIRTUAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INCLUSÃO DO EX-SÓCIO MINORITÁRIO NO PÓLO PASSIVO DA EXECUÇÃO.
Possibilidade da emissão e da indicação a protesto de duplicata "virtual" em substituição da cambial física. Lei 9.492 /97, art. 8º , § ún. e art. 889 , § 3º , do Código Civil . 2. A duplicata "virtual", acompanhada da respectiva fatura.
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TJ-SP - Apelação APL 00030901220098260160 SP 0003090-12.2009.8.26.0160 (TJ-SP)
Data de publicação: 04/04/2013
Ementa: * EMBARGOS À EXECUÇÃO DUPLICATAS VIRTUAIS - PROTESTO POR INDICAÇÃO –
Havendo comprovação da entrega das mercadorias e dos demais requisitos para saque de duplicatas, não há impedimento para que o credor o realize. Ademais, é admitido para efetivação do protesto de duplicata por indicação, o boleto bancário - A alegação de excesso de cobrança de título executivo extrajudicial, consubstanciado em duplicata, por incidência de juros abusivos, exige comprovação idônea do alegado por parte do devedor, a teor do que dispõe o art. 333, II , CPC Incidência de juros que foi corretamente aplicada - Apelo desprovido*
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TJ-SP - Embargos Infringentes EI 00009063420098260047 SP 0000906-34.2009.8.26.0047 (TJ-SP)
Data de publicação: 26/04/2013
Ementa: EMBARGOS INFRINGENTES APELAÇÃO EMBARGOS À EXECUÇÃO. DUPLICATAS VIRTUAIS.
Ao teor do que dispõe o artigo 15 , § 2º , da Lei nº 5.474 de 18 de julho de 1.968, é plenamente admissível a propositura da ação de execução amparada em duplicatas, desde que haja a comprovação da entrega das mercadorias e os respectivos protestos por falta de pagamento, sendo totalmente dispensável a comprovação da remessa das cambiais para aceite.
Na hipótese das duplicatas serem virtuais, basta o credor promover os respectivos protestos por indicação e comprovar a entrega das mercadorias ou da prestação dos serviços, para suprir a ausência física das cambiais.