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A perda da propriedade urbana pelo abandono aliado ao não pagamento dos tributos e o papel dos Municípios

Agenda 14/09/2015 às 19:11

Este trabalho tratou do abandono da propriedade urbana quanto ao não pagamento dos tributos (artigo 1276, §2º do Código Civil) a partir da função social da propriedade e promoveu uma reflexão sobre o posicionamento esperado dos Municípios.

 

 

1. Considerações Iniciais

O tema geral da presente pesquisa abrangeu a propriedade e os seus aspectos fundamentais que são estudados no ramo do direito civil, didaticamente denominado direito das coisas, que “segundo a clássica definição de Clóvis Beviláqua é o complexo de normas reguladoras das relações jurídicas referentes às coisas suscetíveis de apropriação pelo homem” (GONÇALVES, 2011, p. 19).

A propriedade é o direito real mais importante e consiste no poder direto e imediato do titular sobre o bem.

O tema específico da pesquisa envolveu a perda da propriedade pelo abandono que é um “ato unilateral pelo qual o titular abre mão de seus direitos sobre a coisa” (GONÇALVES, 2011, p.331), aliado ao não pagamento dos tributos a ela inerentes, bem como sua finalidade social e o papel que o Município desempenha nesse contexto.

Essa modalidade de perda da propriedade está prevista no artigo 1276, §2º do Código Civil.

Indagamos se seria justo manter um bem sob a titularidade de um indivíduo que o abandonou, que não o quer mais em seu patrimônio, que não dá ao imóvel a devida função social, enquanto vivemos num país em que a população almeja um lugar digno para viver.

A Constituição Federal consagrou a propriedade como um direito fundamental ao discipliná-lo em seu artigo 5º, inciso XXII. Contudo, o acesso à propriedade é um direito fundamental em seu sentido estrito, mas o direito de propriedade é um instituto de direito fundamental que constitucionaliza o direito subjetivo de propriedade (VASCONCELOS, 2008, p. 14).

Em consequência disso, o nosso Código Civil reserva o Título III do Livro III para dispor sobre o assunto.

A problematização desse tema residiu nas seguintes discussões: será que é inconstitucional o artigo 1276, §2º do Código Civil, no que tange à criação de uma modalidade de perda da propriedade sem indenização? Há alguma incompatibilidade entre o princípio constitucional da função social, que norteia esse dispositivo, em relação a outros como os do devido processo legal, razoabilidade, e o da vedação de tributo com efeito de confisco? Qual a posição esperada pelos Municípios nesse contexto?

 

2. Direitos reais e a propriedade

A propriedade é estudada na parte dos direitos das coisas, sendo considerada o centro dos direitos reais, posto que, dela decorre todos os demais elencados no artigo 1225 do Código Civil: superfície, servidões, usufruto, uso, habitação, o direito do promitente comprador do imóvel, penhor, hipoteca, anticrese, a concessão de uso especial para fins de moradia e a concessão de direito real de uso.

Ela é, portanto, um direito real “por excelência” (GONÇALVES, 2011, p. 228).

O direito real tem por objetivo regular as relações jurídicas relativas às coisas suscetíveis de apropriação pelo homem.

 Assim, difere-se do direito pessoal que se revela em uma relação jurídica, baseada numa obrigação em que o sujeito ativo pode exigir do sujeito passivo certa prestação.

A propriedade é o direito real que mais sofreu interferências históricas e políticas, ou seja, seu conceito e objetivos alteram-se no tempo e no espaço (VENOSA, 2005, p 22).

Sabemos o quanto é difícil fazer uma conceituação exata de seu significado, importância e abrangência devido a sua complexidade e a sua trajetória social.

Assim, Marco Aurélio Bezerra de Melo a conceitua como sendo “um direito subjetivo, absoluto, elástico, perpétuo, complexo e limitado, pelo qual uma pessoa submete determinado bem à sua vontade” (MELO, 2007 apud VASCONCELOS, 2008, p. 100).

A conceituação da propriedade também passa pelos poderes conferidos ao seu titular, que estão expressos no Código Civil em seu artigo 1228: “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha” (BRASIL, 2010). Esses poderes se constituem em faculdades e não em deveres do proprietário.

Nesse ínterim, a propriedade possui três principais caracteres, quais sejam: exclusividade, plenitude e perpetuidade.

Dessa forma, o bem imóvel é exclusivo, pois o titular pode afastar do bem quem quer que injustamente dele se utilize, já que a propriedade admite apenas um titular (vale lembrar que mesmo no caso de condomínio cada um tem exclusividade de sua cota parte); é pleno ou ilimitado, pois reúne todos os poderes inerentes à propriedade: usar, gozar, dispor ou reivindicar e é perpetuo, pois, se o titular não quiser dispor da coisa ou enquanto ela não desaparecer de sua titularidade por quaisquer dos meios de perda, é um bem para vida toda; assim como não se extingue o poder pelo não uso, como tem entendido a doutrina.

 

2.1. Evolução do direito à propriedade 

Há muitas teorias sobre o surgimento da propriedade, portanto, é dificultoso precisar o momento e o modo com que ela apareceu e ganhou tanta importância.

Sabemos que, na antiguidade, a propriedade móvel era a que se destacava. A terra e o solo pertenciam ao coletivo. Esse cenário sofreu transformações políticas e sociais e a terra acabou ganhando espaço. Quem detinha a propriedade imóvel, detinha o poder.

É certo que a propriedade, no nosso ordenamento jurídico, tem sua origem histórica no direito romano em que foi marcada pelo aspecto individualista. Aliás, durante a Revolução Francesa, essa característica foi determinante e fortemente adotado na criação do Código de Napoleão, como se nota no seu artigo 544: “a propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas do modo mais absoluto, desde que não se faça uso proibido pela lei ou regulamentos” (VENOSA, 2005, p.175).

Gradativamente, através das transformações sociais, principalmente com a Revolução Industrial a partir do século XIX, essa concepção egoística foi-se alterando, fazendo surgir o que hoje chamamos de função social da propriedade, ou seja, a imposição do interesse do bem comum sobre o individual.

Verificamos, portanto, que houve uma evolução de um modelo absoluto para um modelo de direito subjetivo fundamental composto de poderes e deveres a serem observados pelo titular do direito de propriedade (VASCONCELOS, 2008, p. 7).

 

2.2 A função social da propriedade

A Constituição Federal, decisivamente, transformou esse direito absoluto da propriedade num direito limitado pela busca do fim social. Nesse sentido, dispõe a Constituição Federal em seu artigo 5º, XXIII: “a propriedade atenderá a sua função social” (BRASIL, 2010).

O artigo 5º, inciso XXII da Constituição Federal ao dispor que “é garantido o direito de propriedade”, percebemos que o legislador quis fixar fortemente o direito à propriedade privada. Porém, ao lançar mão do artigo 5º, inciso XXIII abre espaço para a intervenção estatal na propriedade privada ao estabelecer que a propriedade “atenderá a sua função social” (PEREIRA, 2003, p. 15).

Nessa esteira, preconiza o parágrafo único do artigo 2035 do Código Civil: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos” (BRASIL, 2010).

A função social da propriedade é uma limitação constitucional a esse instituto, e configura-se um preceito de ordem pública. Assim, o exercício da propriedade não poderá se distanciar do cumprimento da função social em qualquer hipótese.

Isso ocorre, pois nosso atual conceito de propriedade sofre limitações de toda ordem, como notamos no artigo 1228, §1º do Código Civil:

§1º. O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas (BRASIL, 2010).

Nesse contexto, a “função social faz parte dos deveres inerentes à propriedade, constituindo um de seus elementos internos” (VASCONCELOS, 2008, p. 145).

Vale lembrar, entretanto, que a função social está presente em todo ordenamento, e assim deve ser para que esteja em consonância com nossa Lei Maior e para que tenhamos um ordenamento equilibrado e o mais justo possível.

De acordo com o artigo 1231 do Código Civil que dispõe que “a propriedade presume-se plena e exclusiva, até prova em contrário”, é importante notar que o direito do proprietário continua sendo inteiramente preservado, entretanto, esse proprietário só será protegido pelo Estado se tornar sua propriedade operativa, isto é, se der a ela uma função social (VENOSA, 2005, p. 181).

Assim, a função social é condição para o bom uso da propriedade e para que o seu exercício seja pleno, pois, se assim não for, pode o Estado intervir e dar à propriedade a sua finalidade social, isto é, uma boa utilização. Como exemplo dessa intervenção, temos o artigo 243 da própria Constituição Federal que dispõe:

Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei (BRASIL, 2010).

Já no artigo 170, incisos II e III, da Constituição Federal, temos que a propriedade privada e a sua função social são princípios reguladores da atividade econômica e que através deles busca-se a justiça social.

Assim, a função social não visa apenas a preponderância do interesse da coletividade sobre o particular, ela pretende algo maior, a justiça social; o equilíbrio entre esses dois interesses. E não se pode alcançar a justiça dando importância ao interesse de um indivíduo apenas, da mesma forma que não se faz justiça frente a um direito absoluto que barra todos os demais.

O conceito de justiça social é de difícil determinação, principalmente no tocante à propriedade. Por essa razão, a Constituição Federal procurou estabelecer a existência de uma função social da propriedade e o que ela busca, mas deixou para o Município, por intermédio de seu plano diretor o modo de exercê-la. (PEREIRA, 2003, p. 23).

Há doutrinadores que buscam o conceito de função social a partir “de uma análise do exercício concreto do direito de propriedade e a sua correspondência com as imposições feitas pelo ordenamento - obrigações, encargos, limitações, restrições, estímulos – para a satisfação das necessidades sociais” (VASCONCELOS, 2008, p. 149).

Nesse sentido, encontramos um conceito da função social da propriedade urbana que diz que esta estará cumprida “quando o exercício dos direitos a ela inerente se submete aos interesses coletivos” (PEREIRA, 2003, p. 23).

Mas como saber se a propriedade está cumprindo seu papel social? A resposta a essa indagação encontra seu norte na própria Constituição Federal em seu artigo 182, §2º. Esse artigo é regulado pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10257/01).

A referida lei estabelece em seu artigo 1º “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo” (BRASIL, 2010).

Em seu artigo 2º, a lei determina diretrizes gerais para o desenvolvimento da função social da cidade e da propriedade urbana, entre elas:

[...] VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:

     a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos;

[...]XI – recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos (BRASIL, 2010).

Além das diretrizes desse dispositivo, de acordo com o artigo 39 da citada lei, a propriedade cumpre sua função social quando atende as exigências de ordenação da cidade no plano diretor, quando assegura qualidade de vida ao cidadão, promove a justiça social e o desenvolvimento da atividade econômica.

 

2.3. Modos de aquisição e perda da propriedade

A propriedade pode ser adquirida por diversas formas. Por meio de uma leitura geral do nosso Código Civil, podemos perceber quais são essas modalidades, já que ele não traz um rol como fazia o Código antigo.

Assim, o bem imóvel pode ser adquirido pela usucapião, registro do título, acessão e pela herança.

É necessária a existência de 3 pressupostos para se adquirir uma propriedade: pessoa capaz, coisa suscetível e um modo de aquisição.

Pode-se adquirir um bem de forma originária e derivada. Será originária quando não possui qualquer vínculo com o titular anterior, ou seja, não há transmissão de um sujeito para o outro; será derivada quando a aquisição decorrer de uma relação jurídica anterior entre o antigo e o novo proprietário.

No que tange à perda da propriedade, nosso Código Civil, em seu artigo 1275, mantém as mesmas modalidades de perda do Código de 1916. Essas modalidades são aplicáveis tanto para a propriedade imóvel quanto móvel.

A perda se dá das seguintes formas: alienação, renúncia, abandono, perecimento da coisa e desapropriação.

Essas hipóteses de perda do bem podem ser divididas, segundo a doutrina, em atos voluntários que abrangem a alienação, renúncia e o abandono; e em atos involuntários que envolvem o perecimento da coisa e a desapropriação.

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Nesse diapasão, como já comentado anteriormente, a propriedade possui como elemento constitutivo básico a perpetuidade, assim, de acordo com o que ensina Venosa, a regra geral da perda da coisa é a de “deixar de existir sob a vontade do titular ou de seus sucessores unicamente por causa de morte” (VENOSA, 2005, p. 272). Então, a perda por ato involuntário possui caráter excepcional.

Há, ainda, outras situações em que a perda do bem também pode ser verificada, como por exemplo, a usucapião e a acessão que embora constituam modos de aquisição do bem por um indivíduo, não deixam de significar a perda da propriedade de outra pessoa, (como se fosse dois lados de uma mesma moeda), e a dissolução do casamento.

 

3. DO ABANDONO

3.1. Conceito

O abandono é uma modalidade de perda da propriedade que se dá por um ato voluntário e unilateral do titular que abre mão de seus direitos sobre a coisa de forma tácita (GONÇALVES, 2011, p. 331).

Por ser uma forma tácita de perda, deve-se verificar a intenção abdicativa do titular, isto é, de não mais querer para si a coisa.

É válido perceber, que o não uso da propriedade não constitui abandono. É necessário, portanto, haver a intenção, o animus do titular de não mais ter a titularidade para si.

Em consequência, não possuindo titular, qualquer pessoa pode tomar a posse do bem ou, então, ele poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município, do Distrito ou da União (se for bem rural).

O abandono se aplica tanto aos bens imóveis urbanos ou rurais quanto para os bens móveis.

A figura do abandono é admitida por nosso ordenamento, pois o Código Civil dispõe que o titular do bem tem a faculdade de usar, gozar, dispor ou reivindicar. Sendo faculdade ele também pode não exercer nenhum desses poderes.

O que se exige, como já dissemos antes, é que ao exercer quaisquer desses poderes o proprietário deve atender ao fim social.

Se o titular de um imóvel tem a faculdade de usá-lo e simplesmente não o faz, não tem porque falarmos em abandono. O uso do bem é um poder e não um dever.

Também não há dispositivo que obrigue o proprietário a ficar com um bem que ele não quer mais, ao contrário, ele possui o poder de disposição do bem. Essa disposição pode ocorrer de várias formas tais como a compra e venda, doação, dação, renúncia e o abandono que está expressamente previsto no Código Civil em seu artigo 1275, inciso III.

 

3.2. Do momento da perda e da Caracterização do abandono

 

Há uma divergência quanto ao momento em que essa perda da propriedade se verifica.

Para uns, o titular tem a propriedade até o instante da arrecadação, podendo também reivindicá-la quando quiser. Já para outros doutrinadores, a perda se dá com a verificação do abandono (FARIAS, ROSENVALD, 2006, p. 329-330).

Como já dissemos, o Código Civil elencou o abandono no rol das modalidades de perda da propriedade, portanto, o momento em que essa perda se verifica é com o efetivo abandono independentemente de o imóvel ter sido ou não arrecadado.

E como saber se o imóvel foi abandonado ou se há apenas negligência do titular?

Vimos que o abandono é um ato voluntário e tácito.

Nessa esteira, é imprescindível avaliar se existe voluntariedade, isto é, se há vontade do proprietário de não ter mais o domínio do imóvel para si.

O abandono é também um ato tácito, o que significa que a vontade de abandonar está em seu psíquico.

Para que o bem abandonado seja incorporado ao erário, deve-se averiguar a real intenção do proprietário de não mais querer aquele bem em seu patrimônio.

Essa constatação é feita a partir do comportamento do titular do bem (abandono não se presume). Devemos avaliar atos externos que revelam a vontade de abandonar.

É muito difícil definir os atos ou omissões do titular que caracterizariam a intenção de abandonar. É preciso analisar, no caso concreto, todos os elementos que evidenciam a vontade.

Por isso, é possível estabelecermos alguns parâmetros que nos possibilitam identificar se um bem está ou não abandonado. Basicamente, entendemos que essa vontade se revela pela ausência do exercício de qualquer um dos poderes do proprietário (usar, gozar, dispor e reivindicar), aliada à ausência de posse do proprietário ou de qualquer outro indivíduo bem como a inadimplência de todos os tributos referentes ao imóvel urbano (art. 1276, §2º), conforme desenvolveremos adiante.

Em suma, devemos observar, cumulativamente, se o imóvel cumpre com a sua função social de forma ampla, abrangendo o aspecto econômico (pagamento dos tributos), social (preservação do interesse coletivo) e ambiental (pois imóveis abandonados acumulam lixo incomodando toda a vizinhança).

Contudo, ressalta-se que é pacífico na doutrina que a simples não utilização do bem ou a mera negligência por período mais ou menos longo, por si só, não evidenciam o abandono.

Assim, evidenciada a perda da propriedade, desencadearão as consequências jurídicas da arrecadação, conforme será demonstrado adiante.

 

3.4. Do bem vago e sua arrecadação

Embora o proprietário tenha, ainda, o registro no cartório de imóveis, a propriedade pode ser perdida pelo abandono que é constatado pelos atos externos do proprietário de não mais querer o bem para si.

A partir dessa perda, o imóvel não possui um dono e se não há ocupação desse imóvel, ainda que por um terceiro, é viável declarar o bem vago.

Então, decorrido o prazo de três anos começa outra fase que é o procedimento de arrecadação desse bem vago que se tornará um bem de propriedade pública.

Portanto, a arrecadação visa apenas incorporar o imóvel ao erário uma vez que a perda propriamente dita já ocorreu com o abandono. Isso ocorre para que seja dado ao bem abandonado uma função social.

A respectiva municipalidade pode, por meio de uma Ação de Arrecadação de bens vagos movida perante a Justiça Estadual, buscar a declaração dessa arrecadação. Esse fato pode ser visualizado no acórdão proferido na apelação nº 0005732-37.2009.8.26.0457 pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (SÃO PAULO, 2011, p.2).

Isso é possível porque, o nosso ordenamento jurídico não admite a existência de um imóvel sem dono, ou seja, não admite a ideia de existir uma propriedade que não atenda o princípio constitucional da função social (PEREIRA, 2011, p. 200).

Da mesma forma que um indivíduo pode ter o bem para si com a usucapião por meio de certo lapso temporal, uma posse mansa, pacífica e ininterrupta e uma sentença judicial declaratória, pode o Estado arrecadar um bem que o próprio titular abandonou e que ninguém mais obteve a posse.

Isso ocorre, pois a propriedade deve cumprir com seu papel social e se nem o titular, nem qualquer outro indivíduo cumpre, o Estado deve fazê-lo.

Portanto, essa arrecadação é perfeitamente constitucional, mas devemos tomar cuidado com o modo de exercê-la. Conforme o enunciado 242 do Conselho da Justiça Federal, a aplicação desse dispositivo dependerá do devido processo legal, para que o titular do bem possa demonstrar a cessação dos seus atos da posse (ENUNCIADOS..., 2011, p.14).

Então, depois de decorrido o procedimento adequado o bem passará para o Município juntamente com o registro no cartório de imóveis.

3.5. Da ausência de indenização

 

Há uma discussão sobre essa perda da propriedade para o Poder Público sem qualquer indenização, tendo em vista que a Constituição Federal não previu dessa maneira.

Quem defende essa corrente entende que a única previsão constitucional é a desapropriação de um bem pela Administração Pública em atenção ao interesse público, que independe da vontade do titular; cabendo a este, apenas, a justa indenização. Então, sendo o Código Civil uma legislação infraconstitucional, não poderia inovar nesse sentido.

Entretanto, devemos observar que a desapropriação e o abandono são duas modalidades distintas de perda da propriedade.

 Na desapropriação, o particular é compelido a transmitir a propriedade ao Poder Público, pois se constitui em um ato administrativo e involuntário (FARIAS, ROSENVALD, 2006, p. 333). Todavia, já que o particular não queria se desfazer do imóvel, mas em razão do interesse público foi obrigado a fazê-lo, deve haver uma indenização para que o titular seja compensado pela perda de sua propriedade.

Já o abandono constitui-se em um ato voluntário e tácito do proprietário de abdicar do bem, de não querê-lo mais para si. Assim, qualquer indivíduo poderia dele obter a posse e, inclusive, adquirir a propriedade pela usucapião. Como isso não ocorreu, o Poder Público tem a faculdade de arrecadar o bem declarado vago, como se fosse aquele particular que obteve a posse.

Esse raciocínio pode ser adquirido pela leitura do artigo 1276 do Código Civil: “O imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado” (BRASIL, 2010).

Ademais, se a perda da propriedade ocorreu com o abandono significa que o proprietário não é mais o titular devido a sua vontade. Por que ao arrecadar o bem declarado vago, o Município deveria indenizar um indivíduo que não é mais o proprietário?

Não há sentido para essa indenização, pois, também, configuraria enriquecimento ilícito.

 

4. O art. 1276, §2º do Código Civil

 

Esse dispositivo é muito pouco utilizado, provavelmente, pela insegurança que temos em aplicá-lo e, também, pela sua complexidade.

Porém, precisamos avaliar a importância jurídica e social de sua aplicação, bem como analisar os pontos em discussão.

 

4.1. Da expressão “presunção absoluta”

 

No que tange ao abandono, o Novo Código Civil trouxe uma polêmica inovação em seu artigo 1276, §2º:

Art. 1276. O imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições.

§ 2o Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a que se refere este artigo, quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais (BRASIL, 2010).

A grande polêmica do artigo 1276, §2º do Código Civil recai na expressão “presunção absoluta”.

Devemos, porém, dar ao dispositivo a melhor interpretação possível para que não haja conflito. Assim, entendemos que não se deve interpretar literal e isoladamente tal expressão.

Acreditamos que o legislador utilizou erroneamente a expressão “presunção absoluta” pelo fato de ela não admitir prova em contrário, o que acabaria cerceando o princípio do contraditório e da ampla defesa do proprietário que não poderia provar que não teve a intenção de abandonar o bem.

O abandono é um ato tácito e voluntário, por isso não há declaração expressa da vontade de fazê-lo. É preciso, então, se constatar e não presumir a intenção do proprietário de não ter mais a coisa para si.

O abandono não pode ser presumido, pois além de ser um ato voluntário, é um ato de disposição de direitos que gera a diminuição patrimonial de um indivíduo. Dessa forma, havendo dúvida quanto a sua ocorrência, a perda do bem nessa modalidade deve ser desconsiderada conforme entendimento do Tribunal de Justiça de Santa Catarina na apelação nº 2010.077981-4 (SANTA CATARINA, 2011, s/p.).

Entendemos que os princípios constitucionais devem ser aplicados de forma harmônica, ou seja, um não pode suprimir ou se sobrepor ao outro, por isso acreditamos na unidade da interpretação da Constituição Federal.

Assim para conciliar os princípios da função social, do contraditório e da ampla defesa e garantir a eficácia do dispositivo é preciso empregar uma interpretação sistemática e não meramente literal.

Por isso, entendemos que esse dispositivo deve ser realizado com base na constatação da intenção abdicativa por meio da conjugação de requisitos caracterizadores do abandono, o que daria ao proprietário o direito de se defender amplamente.

A cessação dos atos de posse e a insatisfação dos ônus fiscais presentes no artigo 1276, §2º do Código Civil seriam requisitos caracterizadores do abandono (conforme demonstrado), entretanto, seria possível ao proprietário demonstrar que não tem vontade de se desfazer do bem.

De acordo com esse entendimento temos o Enunciado 242 da III Jornada de Direito Civil: “A aplicação do art. 1276 depende do devido processo legal, em que seja assegurado ao interessado demonstrar a não- cessação da posse” (ENUNCIADOS..., 2011, p. 14).

 

4.2. Da inadimplência dos tributos e da cessação da posse

 

É importante observar que o §2º do referido dispositivo não se limita a caracterizar o abandono apenas pelo não pagamento dos tributos, ele expressamente dispõe “cessados os atos de posse” (BRASIL, 2010).

Da mesma maneira que o simples não uso do bem não configura o abandono, a mera inadimplência de um, de alguns ou de todos os tributos referentes ao imóvel, isoladamente, também não.

Assim, é preciso avaliar a conduta do titular sob dois aspectos: o do inadimplemento e o da cessação dos atos de posse.

Sobre atos da posse compreende-se o exercício de qualquer daqueles poderes inerentes à propriedade.

Se o indivíduo tem a titularidade de um bem, mas não exerce qualquer ato de posse que demonstre a sua intenção de tê-lo para si e juntamente com isso, também, não satisfaz os ônus fiscais, entendemos que está caracterizado o abandono.

Isso porque, não faz sentido que o proprietário continue pagando os impostos de um bem que ele não quer mais.

É importante notar que ao mencionar os atos de posse, o legislador também envolveu qualquer indivíduo além do proprietário, pois a propriedade poderia ser adquirida pela usucapião.

Então, se há a dívida fiscal, mas o titular do bem ou um terceiro exercem os atos da posse, a função social da propriedade não estaria totalmente descumprida, sendo inviável falar na arrecadação do bem pelo Município, já que não se trata de bem vago (sem dono).

Aliás, existindo atos de posse do proprietário e inadimplemento dos tributos, o Estado recorrerá aos meios de cobrança e execução legalmente previstos para saldar a dívida fiscal.

Para que haja o abandono, não basta existir a dívida dos tributos. É preciso, também, que não haja atos de posse sendo praticados, pois “o interesse do Poder Público sobre o bem só pode se manifestar na inexistência do exercício de posse direta por quem quer que seja”, conforme o entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo na apelação nº 0005732-37.2009.8.26.0457 da Comarca de Pirassununga (SÃO PAULO, 2011, p.3).

Com a leitura do artigo 1276, §2º do Código Civil, entendemos que um imóvel é considerado abandonado quando houver a coexistência entre esses dois fatores: dívida fiscal e cessação dos atos de posse.

A crítica desse dispositivo recai, como já exposto, na expressão “presunção absoluta”, pois o abandono é um ato de vontade e, assim, deve ser constatado e não presumido.

Concluímos que, além desse binômio que acabamos de citar, é preciso averiguar, no caso concreto, outros elementos que evidenciam a vontade abdicativa do proprietário, conforme explicaremos a seguir.

Não se pode olvidar, contudo, que havendo dúvida, no caso concreto, quanto à constatação da intenção abdicativa do proprietário, deve-se manter a propriedade. Isso porque, o abandono consiste em norma restritiva de direitos e como tal deve ser interpretada restritivamente, privilegiando o princípio da segurança jurídica.

 

4.4. Do efeito de confisco

Outra grande crítica a esse dispositivo diz respeito ao efeito de confisco nele presente.

O confisco significa a perda gratuita da propriedade para o Estado em razão da inadimplência dos ônus ficais referentes ao imóvel.

Porém, entendemos que essa interpretação não merece prosperar e, dessa forma, não poderíamos falar em efeito confiscatório desse artigo.

Nesse sentido, o Enunciado 243 da III Jornada de Direito Civil: “A presunção de que trata o § 2º do art. 1276 não pode ser interpretada de modo a contrariar a norma-princípio do art. 150, IV, da Constituição da República” (ENUNCIADOS..., 2011, p. 14).

A propriedade foi perdida pelo abandono e não pela arrecadação do bem (FARIAS, ROSENVALD, 2006, p. 330). O proprietário não será tirado do bem, ao contrário, foi ele próprio que o abandonou.

Se o indivíduo continua exercendo os atos de posse, se ele cumpre com a função social, mas não cumpre com os ônus fiscais, o bem não será arrecadado. Pois, a municipalidade não busca arrecadar o bem para saldar a dívida; para isso existem outros meios de execução assegurados pelo ordenamento. Ela apenas pode arrecadar um bem vago que foi abandonado.

Nesse sentido, destaca o Tribunal de Justiça de Santa Catarina na apelação 2010.077981-4, que é “evidente a incompatibilidade entre estes dois comportamentos: abandonar a propriedade e continuar pagando os tributos sobre ela incidentes; esta última atitude logicamente exclui a primeira” (SANTA CATARINA, 2011, s/p.).

Ora, se nosso ordenamento admite a figura do abandono, o que fazer com o bem se o proprietário não o quer mais e ninguém detém a posse? É por esse motivo que o Estado arrecada o chamado bem vago.

O Estado não está punindo o proprietário tirando o seu bem, mas como consequência do abandono que tornou o bem vago, isto é, sem dono, o Município o arrecada para dar a ele uma finalidade.

Dessa maneira, afirma Marco Aurélio Bezerra de Melo que não é interesse do Estado arrecadar imóveis abandonados, já que para isso há a previsão da desapropriação. O objetivo da lei é não deixar bens abandonados, pois isso é totalmente desinteressante para a sociedade (MELO, 2002 apud FARIAS, ROSENVALD, 2006, p. 330).

Então, a não satisfação dos impostos aliada a outros elementos presentes no caso concreto caracterizam a perda da propriedade pelo abandono.

Nesse diapasão, entendemos que o §2º do artigo 1276 do Código Civil não caracteriza um confisco, mas simplesmente confere uma forma de dar ao bem a função social ditada pela Constituição Federal.

O Estado apenas estaria dando ao imóvel abandonado, que o titular não quis mais para si, uma função social. Pois, como sabemos, não é possível haver um imóvel sem dono e que consequentemente não cumpre com seu fim social.

Portanto, o fundamento desse artigo é, claramente, o princípio constitucional da função social da propriedade.

Assim, entendemos que essa função social deve ser compreendida de forma ampla, envolvendo tudo o que diz respeito à propriedade. Nesse caso, um importante fator levado em conta é o econômico.

O legislador quis que a não satisfação dos ônus fiscais também fosse levada em conta ao se analisar se determinado bem foi ou não abandonado.

Por isso, não concordamos com a tese de que tal dispositivo teria efeito de confisco, porque não basta para a caracterização do abandono a dívida fiscal.

Sabemos que o abandono não se presume, ele deve ser constatado. Porém, sabemos, também, da dificuldade de verificar a sua ocorrência. Por isso, o legislador, na tentativa de nos orientar e viabilizar a aplicação do dispositivo criou o §2º do artigo 1276 do Código Civil, mas acabou ocasionando grandes dúvidas.

Portanto, o que realmente questionamos é a forma de realizar essa arrecadação, ou seja, a ausência de um procedimento eficaz e que esteja de acordo com o ordenamento jurídico.

 

4.5. Da constitucionalidade do dispositivo

Muito se discute sobre a constitucionalidade desse dispositivo.

Diversos autores entendem que ele é contrário aos preceitos constitucionais, como exemplo, há a opinião de Cristiano Chaves de Farias:

O §2º do art. 1276 do Código Civil é arbitrário e martiriza frontalmente garantias individuais prevista na Constituição da República, ao se preocupar exacerbadamente com a ordem tributária, em detrimento da pessoa humana e do titular de bens, além de não considerar o eventual cumprimento da função social da propriedade (FARIAS, 2011, p. 23).

Sabemos que todo o ordenamento deve estar em consonância com a Constituição Federal.

A Constituição Federal dispõe sobre muitos e diferentes interesses que combinados, muitas vezes, resultam em conflitos. Por isso, é necessário encontrar uma melhor interpretação dos dispositivos para que tenhamos um ordenamento equilibrado.

Por essa razão, atualmente, muito se tem falado da visão civil-constitucionalista; o que se busca é uma unidade na interpretação a fim de garantir um ordenamento seguro. Isso ocorre, pois a Constituição Federal sendo uma Lei Maior não pode conceber normas em conflito.

Assim, devemos interpretar com razoabilidade sempre que houver valores em disputa para que um não suprima totalmente o outro. Por isso, dizemos que não existe um direito absoluto; nenhum valor pode ser sobreposto a outro, não podemos aplicá-lo com toda sua força.

Quando, no caso concreto, ocorrer esse aparente conflito, devemos ponderar qual direito deve prevalecer. É necessário interpretar com razoabilidade para que não se incorra em arbitrariedades (FARIAS, ROSENVALD, 2006, p. 331).

Assim, o artigo 1276, §2º tem como base o princípio constitucional da função social da propriedade que, não foge à regra, também deve ser harmonizado com todos os outros valores constitucionais.

Dessa forma, a norma civil citada deve ser ajustada aos princípios constitucionais, daí falar-se em visão civil-constitucional.

O princípio da função social da propriedade é uma restrição ao direito de propriedade. Assim, um bem só será protegido pelo ordenamento se o proprietário der a ele a devida finalidade social.

Nesse sentido, esse princípio impõe uma boa utilização da propriedade, restringindo a forma de exercer aqueles poderes à ela inerentes (usar, gozar, dispor e reivindicar).

Há uma grande discussão de que o princípio da função social da propriedade, no artigo 1276, §2º do Código Civil é empregado em desacordo com os seguintes princípios:

a)               O devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal);

b)               O contraditório (artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal);

c)               A vedação de tributo com efeito de confisco (artigo 150, inciso IV, da Constituição Federal);

d)              A razoabilidade;

e)               Somente a Constituição Federal pode estabelecer perda da propriedade sem indenização.

Assim, não podemos nos bastar a uma leitura rápida do dispositivo. É preciso interpretá-lo, buscando a real intenção da norma e adequá-la ao ordenamento.

O abandono de um bem, seja ele móvel ou imóvel, é uma realidade, embora seja difícil a caracterização da vontade do titular em fazê-lo. Ele constitui modalidade de perda da propriedade e existe em nosso ordenamento desde o antigo código.

Não entendemos que seja inconstitucional arrecadar um bem abandonado, isto é, sem dono.

Na verdade, inconstitucional seria arrecadar um bem que cumpre com sua função social, sobre o qual há atos de posse sendo praticados, cujos tributos são pagos, pois aqui não temos um imóvel abandonado.

Portanto, com toda essa interpretação empregada acreditamos que esse instituto seja constitucional.

O que se pode questionar é se na fase de constatação da vontade e posterior arrecadação estão presentes os princípios constitucionais.

Por isso, entendemos ser necessário uma formalização do procedimento para que seja eficaz e que dê segurança jurídica.

 

4.6. O papel dos Municípios

 

O artigo 1276, §2º do Código Civil tem pouquíssima aplicação pelos Municípios, mas não é tão raro encontrarmos imóveis abandonados que não estão atendendo sua função social.

Nesse contexto, esse dispositivo é um importante instrumento que, se bem utilizado, pode trazer benefícios aos Municípios. Entretanto, é preciso muita cautela e preparo para colocá-lo em prática.

O imóvel urbano arrecadado poderá ser usado para habitação ou para prestação de serviços importantes para a coletividade atendendo o interesse público.

Para tanto, entendemos necessário para uma boa aplicação desse dispositivo que o Município, primeiramente, se prepare para isso. É recomendável que o poder municipal regulamente a forma de aplicação, fixando, por exemplo, alguns critérios de averiguação do abandono (OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES, 2011, p. 63).

Depois, seria também de grande valia que o Município promovesse um levantamento dos imóveis que, aparentemente, estejam abandonados pelo proprietário ou que não estejam sob a posse de ninguém por meio da fiscalização ou por informações dadas por vizinhos, por exemplo. Em seguida, o Município deveria averiguar se os tributos de cada imóvel estão sendo ou não satisfeitos (OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES, 2011, p. 63).

Assim, ao caracterizar o abandono de um bem, conforme os elementos explicados anteriormente, tendo em vista os critérios legais, constitucionais e aos princípios gerais de direito, atendendo a um procedimento administrativo adequado ao ordenamento jurídico que respeite o contraditório e a ampla defesa, o Município poderá arrecadar para si esse bem.

Embora de rara aplicação, é possível encontrarmos Municípios que colocam em prática tal dispositivo ou que ao menos possuem regulamentação nesse sentido.

Temos como exemplo, o Município de Camaquã, no estado do Rio Grande do Sul que possui uma regulamentação em sua lei nº 785/2005 sobre o procedimento de arrecadação.

Seguindo este exemplo, recentemente, o Município de Araraquara também regulamentou a questão do abandono de imóveis e seu procedimento de arrecadação criando a lei nº 7733 aos 24 de maio de 2012, que analisaremos abaixo.

O Presidente da Câmara Municipal de Araraquara, Aluísio Braz, afirmou que a lei foi criada devido à reivindicação da população que estava incomodada com os problemas decorrentes dos imóveis abandonados como a presença de usuários de drogas nesses locais (JUSBRASIL, 2012, s/p.).

A referida lei estabeleceu em seu artigo 2º os requisitos autorizadores da arrecadação: estar o imóvel abandonado, não ter o proprietário a intenção de conservá-lo em seu patrimônio, não estar na posse de outrem e, cessados os atos de posse, existir inadimplência de IPTU.

O Município, também, promoverá uma fiscalização para constatar as condições do bem.

O procedimento de arrecadação será feito em um processo administrativo iniciado de ofício ou mediante denúncia.

Em seguida, o prefeito fará um decreto sobre a encampação e a arrecadação do imóvel que ficará sob a guarda e posse do Município. Esse decreto será publicado, garantindo a ampla defesa e o contraditório.

Então, decorrido três anos, se o proprietário não manifestar de forma expressa a intenção de manter o bem em seu patrimônio, este passará à propriedade do Município e, com as medidas judiciais cabíveis, será feita a regularização perante o cartório.

Portanto, é necessário que os Municípios posicionem-se criando um procedimento que viabilize a aplicação do instituto do abandono, como fez Araraquara, pois eles teriam um importantíssimo papel no cumprimento da finalidade social das propriedades.

 

Conclusão

Diante todo o exposto, passa-se a uma sintética conclusão dos resultados obtidos com este estudo.

O núcleo de toda a discussão é o estudo do abandono como modalidade de perda da propriedade no tocante ao não pagamento dos tributos à luz do princípio da função social da propriedade.

O abandono se dá por um ato unilateral, voluntário e tácito do proprietário. É preciso verificar a intenção abdicativa por meio de um conjunto de elementos externos que evidenciam que a função social da propriedade está totalmente descumprida.

Entende-se que a função social da propriedade garante o exercício pleno do bem e deve ser empregada de forma ampla, abrangendo sua função econômica, ambiental e social.

Assim, ao se deparar com uma propriedade que não cumpre com seu fim social em nenhum quesito, é mister a análise conjunta dos fatores existentes no caso concreto, seja pelo não exercício dos poderes do proprietário ou inexistência de posse de outrem, seja pela falta de cuidado com o bem prejudicando o meio ambiente da vizinhança, ou, economicamente, pelo não pagamento dos seus tributos.

Quando, por esses elementos, for constatada a vontade de abandonar e não havendo a ocupação de um terceiro, surge para o Município o interesse em declarar esse bem vago, pois ele não possui um titular e após o lapso temporal de três anos inicia-se a fase da arrecadação.  Isso porque, o ordenamento jurídico não aceita a existência de imóvel sem titular.

Nessa esteira, não há que se falar em indenização quando essa arrecadação ocorre, porque o bem já não possuía dono e geraria enriquecimento ilícito por parte do antigo titular.

Foi enfrentada a impropriedade da expressão “presunção absoluta” empregada pelo legislador. Isso porque não há falar em presunção, pois o abandono é um ato de vontade e de disposição de direito que acarreta a diminuição do patrimônio, o que enseja interpretação restritiva. Assim, o abandono deve ser constatado e não presumido.

Além disso, a presunção absoluta não comporta prova em contrário e a aplicação desse dispositivo depende do devido processo legal, com ampla defesa e contraditório, para que esteja em conformidade com o que preconiza a Constituição Federal.

Acredita-se que o legislador quis que a questão econômica referente à inadimplência dos ônus fiscais do imóvel fosse levada em conta ao constatarmos a vontade em abandonar um imóvel, pois é incompatível esperar que o proprietário pague os tributos de um bem que ele abandonou.

A questão econômica não é o único fator a ser analisado, já que a lei dispõe acerca da cessação dos atos de posse.

O dispositivo em comento não tem efeito confiscatório, pois o proprietário não perde o bem devido à dívida, como punição. Ao contrário, o bem já estava perdido pelo abandono que se evidencia pela soma dessa dívida com o descumprimento da função social em todos os seus pontos. Essa dívida será cobrada por outro procedimento. Se há a dívida fiscal, mas há no mínimo a posse de um terceiro, é inviável declarar esse bem vago e passá-lo para a propriedade pública. O Estado não tem o interesse puro de arrecadar imóveis.

Dessa forma, resta ao aplicador do direito verificar se estão presentes os requisitos que revelam a vontade do titular em abandonar o seu imóvel. Isso porque o abandono em si já ocorreu e a perda já se verificou. Essa constatação serve, tão somente, para que a sociedade aplique as consequências desse ato de disposição voluntária.

Não seria justo manter um bem sob a titularidade de um indivíduo que o abandonou, que não o quer mais em seu patrimônio, que não dá ao imóvel a devida função social, enquanto vivemos num país em que a população almeja um lugar digno para viver.

Assim, hoje, não se pode distanciar a propriedade imobiliária da necessidade humana. Uma está intimamente ligada à outra. O direito não pode estudar esse instituto em apartado da realidade social. 

Acredita-se, portanto, que o abandono pelo não pagamento dos tributos é constitucional, mas é preciso que se faça uma interpretação adequada, consoante a realizada no presente estudo.

Para que esse instituto seja mais aplicado, é necessário que os legisladores de cada município regularizem o procedimento de arrecadação com base no devido processo legal.

Assim, os municípios teriam um importante instrumento para fazer valer o princípio da função social da propriedade em face de imóveis abandonados que nada contribuem para a sociedade.

 

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Sobre a autora
Nayara Moreno Perea

Bacharela em Direito - Centro Universitário de Araraquara/ UNIARA (2012), tendo ficado em primeiro lugar na classificação dos alunos em Direito Constitucional em 2009 e obtido nota dez em monografia de conclusão. Pós-graduada em Direito Civil pela Universidade Anhanguera/ UNIDERP (2014), tendo obtido nota dez em monografia de conclusão. <br>

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Monografia apresentada à banca examinadora do Curso de Direito como exigência parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Araraquara – UNIARA

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