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Precisamos falar sobre uma teoria geral do processo penal

Agenda 19/11/2015 às 14:40

Demonstra-se como conceitos puramente civilistas da famosa teoria geral do processo (TGP) contaminam indesejadamente o processo penal.

É inegável que o processo civil possui, se comparado ao processo penal, patentes superioridades dogmática e científica. Em verdade, durante muito tempo, o processo penal foi considerado, tão somente, uma extensão exígua do direito penal material. Nos dias atuais, pode-se afirmar que houve evolução em termos de uma autonomia dogmático-epistemológica, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido.

Ocorre que, diferentemente da relação entre o Direito Civil e o Processo Civil, o Direito Penal não funciona sem o Processo Penal. Este é instrumento de racionalização do poder penal. Como bem asseverou Carnelutti, crime e pena são como cara e coroa da mesma moeda, assim como o direito penal e o processo penal. Para a efetivação do primeiro, com a aplicação da sanctio iuris, necessário o deslinde de um devido processo penal legal, enquanto procedimento em contraditório, como estatuiu Fazzalari. Direito Penal e Processo Penal estão unidos, inequivocamente, pelo princípio da necessidade, ilustrado pelo brocardo nulla poena sine iudicio.

Mas estaríamos, de fato, presenciando um avanço desmedido do que Bettiol chamou de "Pancivilismo"? A resposta é, em tese, simples. E a academia tem sua parcela de culpa nisso. A famosa disciplina da Teoria Geral do Processo (TGP), ministrada em toda e qualquer faculdade de direito brasileira, tem sido conduzida por civilistas e processualistas civis, que nada sabem de processo penal, de garantismo penal, de presunção de inocência, de processo enquanto situação jurídica em Goldschmidt, sem qualquer distribuição entre as partes acerca do ônus probatório - esse que é um dos graves problemas do processo penal brasileiro -, de teoria da prova e da ação no processo penal; enfim, nada.

É solar, portanto, que a teoria geral do processo, que é, em verdade, a teoria geral do processo civil, não se aplica - pelo menos não deveria - ao processo penal. Na prática, entretanto, o que acontece é o contrário. São inúmeras as contaminações civilistas no processo penal, bem como patéticas as tentativas de importação de conceitos e caracteres eminentemente processuais civis para o processo penal. Quais as consequências? Simples: o manejo de um processo penal autocrático e inquisitório, insensível e alheio ao sistema de garantias previsto na Constituição da República.

Como bem esposou Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, "Teoria Geral do Processo é engodo; Teoria Geral é a do Processo Civil e, a partir dela, as demais". Da mesma forma tem entendido Aury Lopes Jr:

Pensam tudo desde o lugar do processo civil, com um olhar viciado, que conduz a um engessamento do processo penal nas estruturas do processo civil. Todo um erro de pensar, que podem ser aplicadas e transmitidas ao processo penal as categorias do processo civil, como se fossem as roupas da irmã mais velha, cujas mangas se dobram pra caber na irmã preterida. É a velha falta de respeito, a que se referia Goldschmidt, às categorias jurídicas próprias do processo penal.

Dessa forma, no momento em que são relegadas ao segundo plano as características e elementos próprios do processo penal, abrindo espaço para caracteres ínsitos ao processo civil, estaremos lidando, inexoravelmente, com um processo misto (?), que não nos certifica, sobremaneira, acerca de um contraditório substancial e da hipossuficiência do acusado em face da pretensão acusatória do órgão proponente da ação penal e da possibilidade condicionada de condenação e punição pelo juiz. Um processo, portanto, com fortes tendências inquisitórias.

Como aduzido, em termos pragmáticos, são inúmeras as contaminações processuais civis no processo penal. Faço questão de abordar algumas delas, que julgo de maiores relevo e incidência. A primeira diz respeito às condições da ação no processo penal. É de sabença elementar que, no processo civil, as condições da ação são três: a legitimidade ad causam, o interesse de agir, bipartido em utilidade e necessidade, e a possibilidade jurídica do pedido.

Apenas uma dessas condições possui aplicabilidade no processo penal, que é a da legitimidade. Não podemos falar, aqui, em interesse de agir, justamente pelo fato de que o direito penal e o processo penal estão unidos e associados por força do princípio da necessidade. Neste contexto civilista, sempre haverá necessidade e, portanto, interesse de agir. É equivocada a ideia do interesse de agir. Também deve ser rechaçada a famigerada possibilidade jurídica do pedido porque, em processo penal, o pedido será sempre o mesmo, o de condenação. Afrânio Silva Jardim, em posição contrária, aduz que a teoria geral do processo possui aplicabilidade no processo penal e, no tocante ao pedido, afirma que nem sempre será o de condenação.

 O grande processualista carioca cita as ações autônomas de impugnação para ilustrar os exemplos, entretanto, filiamo-nos à corrente capitaneada por Aury Lopes Jr, que afirma:

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Quanto à possibilidade jurídica do pedido, cumpre, inicialmente, descara que o próprio LIEBMAN, na terceira edição de "Manuale di Diritto Processuale Civile" aglutina possibilidade jurídica do pedido com o interesse de agir, reconhecendo a fragilidade da separação. Como conceber que um pedido é juridicamente impossível de ser exercido e, ao mesmo tempo, proveniente de uma parte legítima e que tenha um interesse juridicamente tutelável? Ou ainda, como poderá uma parte legítima ter um interesse juridicamente tutelável, mas que não possa ser postulado? São questões que só podem ser respondidas de forma positiva através de mirabolantes exemplos que jamais extrapolam o campo teórico onírico de alguns. Assim, frágil a categorização, mesmo no processo civil e, principalmente, no processo penal.

Daí partimos para as demais condições da ação penal, que nada têm a ver com o processo civil e que refletem a necessidade de um juízo de admissibilidade responsável e técnico das peças acusatórias submetidas à apreciação do Judiciário. O primeiro é o "fumus commissi delicti", enquanto comprovação da materialidade delitiva e reunião de indícios suficientes de autoria. Trata-se da probabilidade de ocorrência de um delito, da fumaça da prática de um fato típico, antijurídico e culpável, sem qualquer incidência de causas excludentes de qualquer desses elementos.

Ultrapassando a legitimidade e a presença do fumus commissi delicti, deve o magistrado atentar para a punibilidade concreta do fato. Isto é, se não houve a prescrição, decadência, renúncia, perempção, enfim, algo que impeça e que funcione como óbice à pretensão acusatória. Neste diapasão, presente uma causa extintiva da punibilidade, deve o magistrado rejeitar a peça acusatória ou absolver sumariamente o réu após a apresentação da resposta à acusação, com fulcro no art. 397, IV, do CPP.

Por fim, a última condição da ação penal é a justa causa, insculpida no art. 395, inciso III, do CPP, definida brevemente como lastro probatório mínimo, mas suficientemente firme, indicativo da autoria e da materialidade da infração penal, justificando a deflagração de um processo penal, com toda a sua carga estigmatizante. A justa causa funciona como verdadira "condição de garantia contra o uso abusivo do direito de acusar", impondo à acusação o ônus de reunião de elementos probatórios que justifiquem a admissão da acusação e o custo e as penas processuais em termos de estigmatização daquele que figurará como réu.

Seguindo. No processo penal, não existe a ideia de que "a prova da alegação incumbe a quem alega". Isso é processo civil puro. Para o que nos interessa, não há a distribuição de cargas probatórias entre as partes, como aduzia Bülow. A carga é, única e exclusivamente, da acusação.

Poder geral de cautela? Jamais. O processo penal é estruturado sob o princípio da legalidade e o seu corolário, o da taxatividade. Não há espaço para poderes gerais, porquanto todo e qualquer poder do juiz criminal encontra-se adstrito e estritamente vinculado aos limites e formas legais. Não há que se falar em medidas cautelares inominadas ou atípicas, ínsitas ao processo civil, de acordo com o art. 798 do CPC.

 E quando o juiz decreta prisão cautelar invocando fumus boni iuris e periculum in mora? Mais um exemplo de uma transmissão inoportuna de categorias do processo civil. Ao decretar uma prisão cautelar, o juiz deve se ater ao fumus commissi delicti e ao periculum libertatis. O "fumus boni iuris" representa a fumaça do bom direito, contudo, o delito representa a negação do direito, da ordem jurídica estabelecida, numa perspectiva hegeliana. Logo, incabível e inviável a utilização do "fumus boni iuris". O mesmo entendimento se aplica ao "periculum in mora", definido como risco causado pelo atraso para a prolação de uma sentença condenatória. Todavia, em processo penal, o tempo não é o fator determinante e, no que tange às prisões cautelares, a liberdade do acusado que pode representar um risco à higidez processual, seja pela destruição de provas ou pela possibilidade de fuga, razão pela qual, em face da instrumentalidade dessas medidas cautelares pessoais, ao se decretar uma prisão cautelar, deve o magistrado observar o perigo que a liberdade do agente representa à boa conservação do processo.

Ademais, como sabemos, no processo civil, vigora, a toda evidência, o princípio da instrumentalidade das formas. Acontece que aqui, no processo penal, formalidade é garantia e, portanto, qualquer atropelo ou violação à forma dá ensejo, inexoravelmente, à nulidade absoluta. Trata-se de um pecado grave o esquecimento de que as formalidades compõem todo um sistema de garantias tutelado pela Constituição da República e pela Convenção Americana de Direitos Humanos. São garantias do acusado em face do poder punitivo estatal. E o papel do juiz, num sistema acusatório e democrático, é o de "garantidor dessas garantias", de responsável pela concretização dos direitos fundamentais.

Concluindo, é imperioso que tratemos da nulidade relativa. Ora, justamente pelo fato de a forma e a formalidade funcionarem como verdadeiras garantias, o princípio do pas de nullité sans grief não possui qualquer aplicabilidade no processo penal. As "meras irregularidades" configuram, sim, nulidades absolutas, sob pena de estamos compactuando com um processo inquisitório e autoritário em essência. Flexibilizar a forma é abrir a porta para os três predadores do processo: a política, a moral e a economia, como aduz Lenio Streck.

Há inúmeros outros fatores e caracteres do processo civil que têm sido utilizados de maneiras irresponsável e equivocada, mas os que foram aqui expostos já são suficientes para que seja iniciado um debate sobre esse tema de grande importância para a comunidade jurídica.

Portanto, é urgente que nos afastemos da teoria geral do processo civil para que possamos manejar e conduzir processos penais com suas categorias próprias, em conformidade com a Constituição da República e com a Convenção Americana de Direitos Humanos, sem darmos espaço para discursos autoritários e inquisitórios, de modo a efetivar e aperfeiçoar o sistema de garantias.

Sobre o autor
João Pedro Guerra

Advogado Criminalista; Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal; apoiador filiado ao LEAP-Brasil (Law Enforcement Against Prohibition - Agentes da Lei Contra a Proibição); Membro da União dos Advogados Criminalistas (UNACRIM); Membro do Instituto dos Advogados de Pernambuco (IAP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUERRA, João Pedro. Precisamos falar sobre uma teoria geral do processo penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4523, 19 nov. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/43130. Acesso em: 17 nov. 2024.

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