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O sistema constitucional de segurança pública:

crítica ao ciclo completo de polícia pela polícia ostensiva

Agenda 02/10/2015 às 07:12

Quando se pensa em um sistema que deseje outorgar atribuição investigativa (investigação de civis) a polícias ostensivas, destinadas precipuamente a prevenir crimes, subverte-se a estruturada pensada pelo legislador constituinte.

O sistema constitucional de segurança pública contempla a especialização dos órgãos e a repartição de funções. Analisando detidamente o desejo da Carta Magna de 1988, nota-se, sem maior esforço, que se optou por dividir a atuação estatal em dois momentos distintos: a prevenção e a repressão às infrações penais.

Fazem parte da polícia preventiva, voltada a coibir a prática de crimes pela sua presença ostensiva, suas viaturas caracterizadas, seus homens e mulheres fardados, suas rondas e pontos de bloqueio, as polícias militares dos Estados, a polícia ferroviária federal e a polícia rodoviária federal.

Caso a infração penal seja materializada, entra em cena a polícia repressiva (ou judiciária), com o objetivo de elucidar a prática supostamente delitiva e, caso constada a ocorrência de infração penal, coligir elementos probantes capazes de propiciar a deflagração de processo penal em face do autor do fato. Aqui temos as polícias civis dos Estados e a polícia federal.

A decisão foi sábia e consagrou o sistema de separação de atribuições, do patrulhamento ostensivo à execução da pena (se incluirmos a atribuição do MP para promover a ação penal pública, a competência do Judiciário para julgar os processos e a atribuição do sistema prisional para executar as penas impostas pelos juízes).

Se o sistema é bom, por que é contestado? Quais as causas de sua aparente falência?  Em primeiro lugar, é preciso partir de uma premissa muito importante: a redução da criminalidade não é alcançada apenas com suposta atuação eficaz das polícias. O estudo, ainda que superficial, da criminologia nos mostra que o crime é um fenômeno complexo, com diversas causas e que a atuação das forças policiais é apenas uma das tantas armas que o estado pode lançar mão para que o índice de criminalidade se situe em patamar aceitável. É preciso investir em planejamento urbano, iluminação pública, educação, saúde, transporte público, criação de postos de trabalho, saneamento básico, dentre outras áreas importantes, para que a população se sinta tocada pela mão do estado de outras formas (que não só pela ação persecutória). O aparelho policial  não pode ser o único a ser responsabilizado por eventual incremento da violência nos centros urbanos (nem os outros integrantes do chamado controle social formal – MP, Judiciário e sistema prisional).

Feito esse intróito, foquemos nossa análise na atuação das polícias (esquecendo os outros órgãos que fazem parte do controle social formal, do controle social informal e as ações estatais em outras esferas).

A pergunta feita acima foi: se o sistema desenhado na Lex Legum é bom, por que é contestado? A resposta é simplória: porque ele não é materializado como imaginou o constituinte originário.

Quando se pensou numa polícia ostensiva, apta a dar ao cidadão sensação de segurança pela sua presença e a desestimular a prática delitiva, foi imaginada a atuação de um efetivo suficiente para permitir o patrulhamento ostensivo em áreas consideradas críticas (comércio, portas de banco, locais onde a mancha criminal é mais intensa, dentre outros locais), que esse efetivo fosse bem treinado e tivesse noções acerca dos direitos fundamentais dos cidadãos (direitos humanos), que houvesse equipamentos adequados (letal, menos letal, de controle de distúrbio civil, etc), salários dignos para os que devotam sua vida à proteção da população (com o fito de evitar o “bico” e a corrupção), a atuação forte e isenta das corregedorias e dos órgãos de controle externo (de forma a coibir os desvios).

Quando se pensou numa polícia judiciária, imaginou-se uma polícia que tivesse efetivo suficiente para responder às investigações de sua alçada, na presidência das investigações feitas por profissional versado em ciências jurídicas, apto a proteger os direitos dos cidadãos no curso das apurações criminais, na preparação técnica dos seus integrantes (formação voltada ao respeito dos direitos individuais e à profícua coleta de provas da prática delitiva), perícia equipada e bem treinada (a prova pericial é importante arma para elucidação de crimes), delegacias confortáveis para receber vítimas e acomodar policiais, salário atrativo, equipamentos adequados (equipamentos discretos, viaturas, armas, etc), corregedoria e órgãos de controle externo atuantes.

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Esse sistema, caso materializado corretamente (pelo menos no campo do dever ser) permitiria que: percebida uma infração que deixa vestígios, por exemplo, a cena fosse bem isolada (nos termos do artigo 6º, I, do CPP); a perícia fosse efetivada de maneira profícua (com o fito de cumprir o artigo 158 do CPP, evitar a utilização do artigo 167 e a funesta consequência descrita no artigo 564, III, b, ambos do CPP);  policiais bem treinados fossem a campo entrevistar pessoas, colher imagens de câmeras, e coligir elementos outros que auxiliassem a autoridade policial a elucidar o fato; que eventuais situações flagranciais fossem solucionadas rapidamente, para que a polícia ostensiva voltasse rapidamente às ruas, dentre outros aspectos.

Como o sistema finda não sendo materializado da forma que deveria, é evidente que ele enfrenta problemas. Eventual ineficiência decorrente da falta de investimento efetivo dá espaço ao aparecimento de soluções mirabolantes. É o caso do ciclo completo de polícia, tal como apresentado, para as polícias ostensivas, hoje muito discutido como alternativa para melhoria da resposta dada pelo estado à população (ciclo completo, em rápidas linhas, significa uma mesma instituição policial cuidar da ocorrência desde a fase preventiva/ostensiva até a apuratória/repressiva).

Apenas para retomar e complementar a idéia do sistema pensado pelo constituinte de 1988, é preciso que se diga que nosso sistema processual penal outorgou ao delegado de polícia, corretamente diga-se de passagem, a presidência da polícia investigativa e dos apuratórios que nela tramitam. É sua tarefa cuidar de sopesar tipos penais, decidir acerca da utilização de técnicas investigativas, representar prisões cautelares, buscas, tudo na forma preceituada na Carta Magna e na legislação de regência.

Esse profissional, o delegado de polícia, finda sendo importante garantidor dos direitos humanos do cidadão, já que é apto a interpretar a legislação e decidir, no calor dos acontecimentos, acerca da existência ou não de situações flagranciais, tipificação de condutas, tipicidade ou atipicidade material (que pode redundar em liberar o equivocadamente detido), existência ou não de causas excludentes de ilicitude (que também pode redundar na libertação prematura do detido), arbitramento de fiança, etc. Essa escolha tem razão de ser: o delegado de polícia funciona no Brasil como a “autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais”, descrita no Pacto de San Jose da Costa Rica (artigo 7º, item 5).

Quando se pensa em um sistema que deseje outorgar atribuição investigativa (investigação de civis) a polícias ostensivas, destinadas precipuamente a prevenir crimes, subverte-se essa estruturada pensada pelo legislador constituinte. Possibilita-se que a conduta de um cidadão brasileiro seja avaliada por profissional não versado em direito e que não prestou concurso para o cargo de delegado de polícia (servidor público que possui atribuição para primeiro enfrentar essa tipificação em nome do estado).

Não se diga que isso poderia ser materializado apenas em situações mais simplórias (infrações de menor potencial ofensivo, por exemplo). A título de exemplo, uma lesão leve causada por um golpe de faca pode ser tipificada como lesão corporal de natureza leve (infração de menor potencial ofensivo) ou tentativa de homicídio, a depender do dolo do agente. Será que tal análise pode ser feita no meio da rua? No capô de uma viatura? Por meio do preenchimento de um formulário? Definitivamente não! É preciso que não se perca de vista que o termo circunstanciado tem natureza jurídica de procedimento investigativo (criado pela Lei 9.099/95 como substitutivo do inquérito policial, e por isso presidido por delegado de polícia no âmbito da polícia judiciária). Apesar de simplificado, envolve tipificação de delitos.

Outro exemplo: um cidadão que é surpreendido portando um ou dois cigarros de maconha deve ser considerado usuário (caso em que deverá ser lavrado termo circunstanciado) ou traficante (situação que imporá a prisão em flagrante do indivíduo)? A resposta depende da análise da situação concreta e reclama análise de elementos probantes, entrevistas preliminares e estudo do Direito. Não pode ser escolha feita na rua, por profissional não habilitado a esse mister.

Como se lidará com fatos materialmente atípicos no ciclo completo? Quem for surpreendido subtraindo uma fruta de um hipermercado será preso? Como será a materialização desse procedimento? Em um quartel? Quem analisará a possibilidade do princípio da insignificância? Da tipicidade conglobante? Essa pessoa permanecerá encarcerada até que o juiz analise os fatos?

Adotando o pensamento simplista que gravita em torno da proposta de ciclo completo (o efetivo da polícia judiciária é insuficiente e não há delegados em todas as cidades) a outras searas, chegaríamos a soluções igualmente teratológicas em face da nossa Constituição Federal: como não há juízes em todas as comarcas, criemos a figura do juiz ad hoc; como não há promotores em todas as comarcas, criemos promotores ad hoc. E assim seguiria a sina da subversão da ordem constitucional em busca da solução mais simplória.

A própria polícia ostensiva findará fragilizada caso tal proposta seja materializada de afogadilho. Como não há qualquer previsão de melhoria da estrutura dos órgãos e isso significa aumento de atribuições, é inexorável que a resposta não será adequada.

Do quanto expendido, tem-se que os objetivos deste ensaio são:

A saída? Não é simplória e exige esforço hercúleo: investimentos pesados para incrementar o efetivo, melhorar a preparação, os equipamentos, os prédios e o salário das forças policiais. Depois de tais ações, reforçar controles externos e internos, para evitar desvios. Pronto. Solucionado estaria o problema das polícias no Brasil.

Anote-se que a solução acima desenhada não é suficiente, porque não trata dos outros atores do controle social formal (de nada adianta um aparato policial satisfatório sem que o MP, o Judiciário e o sistema prisional acompanhem dita evolução).

Ainda que se incremente todo o sistema de controle formal, o estado chegaria na metade da solução (considerando o objetivo central de diminuir a criminalidade). Como dito supra, segurança não se faz só com forças policiais. Se não houver foco na educação, na saúde, no estímulo à geração de empregos, no lazer, no saneamento básico, dentre outros pontos, não avençaremos de maneira efetiva no combate à violência. 

Sobre o autor
Márcio Alberto Gomes Silva

Delegado de Polícia Federal, Professor do CERS, do Supremo TV, do Gran Cursos On Line, do CICLO, da Escola Nacional dos Delegados de Polícia Federal, da Faculdade Pio X, Mestrando em Direito Público pela UFS, Especialista em Ciências Criminais pela UNAMA/UVB, Especialista em Inteligência Policial pela ESP/ANP/PF, autor dos livros Inquérito Policial – Uma análise jurídica e prática da fase pré-processual, Prática Penal para Delegado de Polícia e Organizações Criminosas – Uma análise jurídica e pragmática da Lei 12.850/13.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Márcio Alberto Gomes. O sistema constitucional de segurança pública:: crítica ao ciclo completo de polícia pela polícia ostensiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4475, 2 out. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/43289. Acesso em: 5 nov. 2024.

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