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Ainda sobre obrigação e crédito tributário:

resposta a Tácio Lacerda Gama

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Agenda 20/10/2003 às 00:00

6. A norma individual e concreta que documenta o "pagamento".

Voltemos agora ao problema do ato de cumprimento. Para Tácio Lacerda Gama, todo ato de cumprimento de normas jurídicas é, também ele, uma norma jurídica. Em suas palavras: "... Quando se efetua um pagamento, quando se realiza uma compensação, ou mesmo quando alguém se beneficia de uma anistia, aquele documento que atesta a extinção do vínculo obrigacional passa a integrar o sistema do direito positivo" [49]. Se alguém vai a uma loja, compra um par de sandálias e não recebe nenhum documento provando que pagou o preço avençado, o pagamento realizado não seria um ato de cumprimento da obrigação. Se uma pessoa, diante do sinal vermelho no trânsito, pára o seu veículo, também a observância da norma geral e abstrata (Código de Trânsito), que determina parar diante do semáforo vermelho, não seria fato juridicamente relevante. O mesmo se diga de inúmeros atos da vida social, cujo sentido é apenas compreendido se os observarmos como cumprimento de normas jurídicas postas pelo ordenamento. Em todas essas situações, estaríamos diante de fatos sociais, porque não foram eles relatados em linguagem escrita e documental por uma autoridade competente.

Assevera Tácio Gama que "... O direito não se contenta com meras condutas, por isso exige linguagem adequada para criar e extinguir relações. Fosse diferente, qual seria a necessidade de manter uma escrituração fiscal? Para que seria exigida a conservação dos comprovantes de pagamento por um dado período de tempo?" [50]. As perguntas, mais uma vez, tomam a parte pelo todo. O fato de muitos fatos jurídicos necessitarem de documentação, não implica que todos os fatos jurídicos também necessitem. A premissa não conduz à conclusão, senão por indução: transforma o particular e contigente em geral e necessário. É inegável que o direito, para prestigiar o valor segurança, exige formalidade de muitos dos atos subordinados à normatividade, embora nem sempre a cartularidade seja constitutiva do ato jurídico. Se a propriedade de bens imóveis apenas pode existir mediante a escritura pública do negócio jurídico de compra e venda, o mesmo não ocorre com a aquisição de bens móveis de certo valor. E os exemplos poderiam ser multiplicados aos milhares.

Todavia, vamos nos manter, apenas por método, dentro do sistema de referência da teoria carvalhiana, concentrando-nos sobre os exemplos e as argumentações desenvolvidas por Tácio Lacerda Gama. Segundo ele, defendendo a posição de Paulo de Barros Carvalho, não há qualquer dúvida sobre a natureza normativa do comprovante de pagamento, sendo ele irrelevante para o direito se não houver relato em linguagem competente. Para demonstrar a sua natureza normativa, Tácio Gama arrisca uma formalização lógica da norma individual e concreta do pagamento, assim averbada: "... Com a norma de pagamento, não há mudança da estrutura lógica, mas das suas variáveis. Vejamos: D[F à Rj (Sa. Sp)], deve ser (D), diante do pagamento efetuado da quantia X (F), se instaure a relação jurídica (Rj), entre aquele que efetuou o pagamento (Sa) e aquele que o recebeu (Sp), tendo como objeto a permissão de não pagar a quantia X" [51]. A que ponto chega o logicismo...

Ora, a formalização empregada apenas adorna a construção normativa, que pode ser simplificada assim: "diante do pagamento da quantia X é permitido ao devedor não pagar a quantia X". Dizer que a norma que relata o pagamento teria como conseqüente a permissão de não pagar o que já foi pago é uma absurdidade lógica, um contra-sentido deôntico. Permite-se que não se pague o que já foi pago e que, até mesmo por estar pago (fato relatado no antecedente da norma), não reivindicaria a permissão de não pagar (conseqüente). Na verdade, o fato jurídico do pagamento tem por efeito a extinção da obrigação que existia, e não a concessão de uma permissão para não fazer o que já foi feito. Nada obstante isso, assere Tácio Gama: "...O significado jurídico do recibo de pagamento é permitir que o contribuinte não pague mais, pois o pagamento previsto pela obrigação tributária já foi cumprido" [52]. Ora, o recibo de pagamento apenas atesta, certifica, que houve pagamento do valor devido, razão pela qual restou extinta, pelo pagamento (não pelo recibo), a obrigação. Não se dá uma permissão de não pagar, porque após o pagamento não há mais o que pagar. Permissão para não pagar ocorreria se, havendo o débito, fosse conferido ao devedor o direito de não cumprir a obrigação que possuía para com o credor. Caso típico da remissão, por exemplo (art.172 do CTN): havia a obrigação não paga e o credor concedeu o perdão, permitindo o não-pagamento e, com isso, liberando o devedor da dívida que havia. O pagamento, por evidente, nunca poderia gerar um efeito símile, por impossibilidade deôntica: o dever-ser requer sempre o poder-ser, a possibilidade de atendimento. Como atender à permissão de não pagar uma obrigação, partindo justamente da inexistência mesma da obrigação já paga? Logicamente, uma obrigação já paga é uma não-obrigação, o que reduziria a norma do pagamento à permissão de não pagar a não-obrigação [53].

Uma coisa é o pagamento, fato jurídico extintivo da obrigação; outra, o ato jurídico stricto sensu de quitação. O pagamento pode ser provado por recibo, sem que expresse ele quitação. Se o contribuinte vai ao banco de posse do Darf e paga o valor nele especificado, a autenticação do banco prova o depósito do dinheiro, porém não é documento de quitação. A quitação supõe declaração de conhecimento explícita do credor, afirmando que recebeu o pagamento e liberando o devedor [54]. Mas a declaração não precisa ser escrita: pode ser rádio-difundida, oral perante testemunhas, gravada em vídeo etc. A nota fiscal pode provar o pagamento, como o recibo do caixa de um supermercado, mas são eles simples meios de prova, nada mais. E são inúmeros os fatos relevantes para o direito, os negócios jurídicos, em que a formalização do pagamento não apenas não é necessária, como lhes é estranho o ato de quitação. Pontes de Miranda disse-o bem: "O devedor tem de cumprir a prestação. Não é acertado dizer-se (e é o que se encontra em muitos tratados) que o devedor só é obrigado a adimplir contra a outorga de quitação. O que em verdade se passa é que o devedor, que tem de solver a dívida, tem direito à quitação e desse direito lhe nasce o direito de retenção da prestação. Pode dar-se que os usos do tráfico pré-excluam tal exigibilidade, ou por ser de importe mínimo a prestação, ou porque se trate de negócio jurídico à vista, ou de prestação de serviço imediatamente anterior ou imediatamente posterior ao pagamento. Tal o que se passa com o comércio de retalho, ordinariamente, e com os bondes, ônibus e lotações" [55]. Apenas uma visão reducionista do direito pode afastar do mundo jurídico esse conjunto infinito de fatos que se subsumem a inúmeras normas jurídicas, as quais regram toda a convivência dos homens em sociedade.

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Pergunta-se, então: para que serve a prova da conduta? A prova do ato jurídico, como já demonstrado, serve para proteger o interessado em caso de litígio, ou seja, quando as pretensões de validade passam a ser questionadas, ingressando no plano do discurso, para usarmos a teoria da Habermas. Nem sempre, todavia, a prova é documental, podendo ser testemunhal ou pericial. Há provas inclusive indiretas. Poder-se-ia refutar, apenas para manter-se firme na tese, que a prova testemunhal só ingressaria para o direito através do seu relato pela ata de audiência judicial, reduzida a escrito. Porém, nem esse argumento – apesar de sua manifesta impropriedade – salvaria a teoria carvalhiana: é que dificilmente se poderia afirmar que um depoimento testemunhal seria uma norma individual e concreta.

Seria possível um, apenas um, impedimento técnico para chamar o recibo de pagamento de norma jurídica individual e concreta? Mostramos não apenas um, mas vários equívocos nessa afirmação. O recibo de pagamento é meio de prova do fato jurídico do pagamento, não sendo sequer um termo de quitação. Por ele, prova-se o ato extintivo da obrigação, cuja eficácia é prefigurada na norma geral e abstrata, como aquela do art. 156, inciso I, do CTN. Volto a perguntar: olhando para a autenticação mecânica de uma máquina do banco, qual a norma individual e concreta que ela prescreve? Naquele texto, não há mensagem deôntica alguma. E a que se tenta sacar dele, nos leva àquela norma da permissão de não pagar a não-obrigação (obrigação já paga).


7. Normas individuais e concretas nos "deveres instrumentais".

Na crítica que formulei à teoria carvalhiana, busquei demonstrar os limites da afirmação da necessidade, sempre, de uma norma individual e concreta para a aplicação da norma geral e abstrata. Uma das estratégias utilizadas foi a demonstração de que os deveres instrumentais (obrigações acessórias), no direito tributário, não nasciam de uma norma individual e concreta, como incisivamente requer o realismo lingüístico [56]. Bastaria pensar no dever de se submeter à fiscalização do fisco: qual a norma individual e concreta que o faria nascer? Se todo "fato-relação" é conseqüente de uma norma individual e concreta, então todo dever instrumental do contribuinte deveria ser proveniente de uma delas. Tácio Lacerda Gama, nada obstante, não responde a objeção feita. Prefere afirmar que as normas jurídicas "... oscilam, por isso, na prescrição do dever ou do seu descumprimento para estabelecer o conteúdo das normas individuais e concretas". E arremata, logo em seguida: "... Diante das normas jurídicas que determinem o dever de manter à disposição do agente fiscal os livros contábeis, por exemplo, somente a norma que prescreve a sanção pelo descumprimento será positivada. Nestes casos, a conduta lícita não ingressa no sistema do direito positivo" [57].

Licitude e ilicitude são conceitos do mundo jurídico. Uma conduta apenas pode ser reputada lícita ou ilícita se for adjetivada por uma norma jurídica anterior. A afirmação de que uma conduta lícita não ingressa no sistema do direito positivo é insustentável: é supor um fato que seja lícito sem ser jurídico. Se existe um dever de dar publicidade dos livros contábeis ao fisco, é de se perguntar de qual norma individual e concreta ele provém. Se não existir essa norma individual, como se poderia, no seio da teoria carvalhiana, falar em efeitos jurídicos, ou seja, em dever a ser observado? Tácio Gama, como Paulo de Barros Carvalho, deslocaram a resposta para o cumprimento ou descumprimento do dever instrumental, negando-se a explicar de onde ele provém. Afinal, para cumprir ou descumprir um dever é preciso que ele exista. A questão que se põe, a secas, é: de onde vem esse dever instrumental? Respondo eu: da incidência da norma geral e abstrata sobre o seu suporte fáctico, no plano do pensamento. Para o realismo lingüístico refutar essa minha afirmação, haveria de demonstrar a existência de uma norma individual e concreta. Debalde, ela não existe. Essa a razão pela qual, assevera Tácio Gama: "...Porém, quando for possível cumprir a conduta lícita de diversas formas, como no dever de disponibilizar a escrituração fiscal, ensina Paulo de Barros Carvalho, apenas na hipótese de descumprimento, existirão conseqüências jurídicas, demandando, por isso, a edição de normas individuais e concretas" [58]. Ora, a conduta lícita é a observância do dever; sendo lícita, como não seria jurídica? E o dever mesmo, nasce de que norma individual e concreta? Até mesmo a licitude, na teoria carvalhiana, é mutilada das entranhas do direito, passando a ser conceito sociológico, psicológico ou ético, não se sabe. Ensina Tácio Lacerda Gama: "... Se as condutas lícitas são juridicamente irrelevantes (sic), pelo fato de somente a conduta ilícita interessar ao direito, é descabido falar em fatos jurídicos ou em relações nesses casos. Haveria, no máximo, subsunção psicológica e uma imputação de deveres morais, mas não a incidência normativa no em sentido técnico estabelecido acima. Sem a norma individual e concreta não há incidência, pois não há subsunção, tampouco imputação em linguagem do direito positivo. Por isso, é equivocado falar que, em alguns deveres instrumentais, há fato jurídico sem linguagem. Nestes casos, o que há é uma certa incompreensão das estratégias normativas utilizadas para regrar as condutas sociais. Nada mais" [59]. Como o dever de dar publicidade aos livros contábeis não está prescrito por uma norma individual e concreta, seria ele, para a teoria carvalhiana, um dever de natureza moral, decorrente da subsunção psicológica da norma jurídica. Agora, restariam algumas perguntas relevantes: sendo moral esse dever instrumental, como o seu descumprimento poderia ser reputado juridicamente ilícito? Do descumprimento de deveres morais nascem sanções jurídicas?

As palavras falam por si sós. São públicas e partilhadas. Compete ao leitor fazer um juízo de valor sobre a possibilidade lógica da existência de "fatos lícitos sem relevo para o direito", "incidência psicológica da norma", "deveres instrumentais de natureza moral, porque não relatados em linguagem competente" e quejandos.


8. Sujeitos competentes para editar normas individuais e concretas.

Façamos aqui um simples teste empírico, bem comezinho. Pegue, o caro leitor, uma nota fiscal qualquer. Passe os olhos sobre o texto nela expresso, indicando a empresa, o número de série da nota, a discriminação dos bens vendidos, seu preço e o total a ser pago. Imagine que a nota discrimine também o valor do tributo a ser entregue aos cofres públicos. O conteúdo da nota fiscal documenta uma operação de venda, que realiza o suporte fáctico de uma norma jurídica tributária. Observando esse documento, pergunta-se: o dever do comerciante emitir a nota fiscal está prescrito nela mesma ou é decorrente de uma norma jurídica anterior? Poderia a nota fiscal prescrever o dever do empresário emiti-la? Sendo ainda mais preciso: poderia o empresário ter o dever instrumental de expedir uma nota fiscal, sendo que este dever seria previsto na própria nota fiscal que ele expediu?

Para Tácio Lacerda Gama, a nota fiscal ou escrituração em livro próprio "... São relatos em linguagem competente que documentam o seguinte: dado o fato de ter sido realizada uma operação mercantil tributada (Fj), deve ser a obrigação de expedir este documento do sujeito Sp para com o sujeito Sa. Com isso, comprova-se o cumprimento de um dever instrumental, embora não se possa afirmar a constituição da obrigação tributária principal. Aqui, é o sujeito passivo quem constitui a norma tributária individual e concreta que documenta a incidência do dever instrumental" [60].

A norma jurídica prescreve condutas ou discrimina competências. Ela não tem a função de declarar ou documentar a ocorrência de um fato ou conjunto de fatos, porque lhe faltaria a prescritividade que lhe é inerente. Quando a norma descreve um fato, conotativa (norma geral e abstrata) ou denotativamente (norma individual e concreta), a descrição apenas arma o arquétipo sobre a qual incidirá e será aplicada, para deflagrar os efeitos nela prescritos. Porém, a proposição completa, composta de descritor e prescritor, tem natureza deôntica, qualificada pelo functor interproposicional. Quando se afirma que é o sujeito passivo quem constitui a norma tributária individual e concreta, que documenta a incidência do dever instrumental de emitir nota fiscal, termina por se encobrir duas questões: (a) que a existência anterior do dever instrumental (de onde ele provém?) é pressuposto do seu cumprimento pela emissão da nota fiscal; e (b) que a nota fiscal mesma não pode conter, por impossibilidade lógica, a norma que determina a sua própria emissão.

Imagine uma nota fiscal prescrevendo a seguinte norma: "dado o fato de ter sido realizada uma operação mercantil tributada (Fj), deve ser expedida a nota fiscal". Essa norma jurídica está contida realmente na nota fiscal ou lhe antecede, predisposta na legislação tributária? É evidente que, diante da ausência de uma norma individual e concreta que estabeleça o dever instrumental de expedição de nota fiscal, a única saída da teoria carvalhiana foi imaginar essa norma dentro da própria nota fiscal. Com isso, mais uma vez estabeleceu um contra-sentido deôntico: o dever de expedir notas fiscais já expedidas.

Sobre o autor
Adriano Soares da Costa

Advogado. Presidente da IBDPub - Instituição Brasileira de Direito Público. Conferencista. Parecerista. Contato: asc@adrianosoares.com.br

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Adriano Soares. Ainda sobre obrigação e crédito tributário:: resposta a Tácio Lacerda Gama. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 109, 20 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4406. Acesso em: 23 dez. 2024.

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