Não é desiderato deste artigo esmiuçar sobre a boa ou má aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente(Lei nº 8.069/90), popularmente conhecido como ECA, na realidade brasileira, tangenciando a análise segundo a valoração costumeira e popularíssima se a Lei ‘pegou ou não pegou’. À evidência, o desiderato é mais curto, de menor fôlego, buscando apenas elucidar acerca de eventual reflexo da atual maioridade civil(18 anos) em sede do Direito Menorista.
Registra a doutrina que o ECA adotou a teoria da proteção integral, numa visão completamente diferente da teoria da situação irregular, outrora adotada pelo revogado Código de Menores(Lei nº 6.697/79).
Enquanto lei especial, o ECA significa um microssistema jurídico que dispõe sobre direitos próprios e especiais das crianças e dos adolescentes, os quais, na condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, necessitam de proteção diferenciada, especializada e integral, imprimindo prioridade absoluta para a questão da infância e da juventude, inclusive enquanto dever da família, da sociedade e do Estado, conforme o imperativo constitucional do art. 227 da Carta Magna.
Na sistemática do próprio ECA, especificamente no seu artigo 2º, entende-se por criança a pessoa até doze anos de idade incompletos e adolescente a pessoa entre doze e dezoito anos de idade. Em caráter excepcional, todavia, aplica-se o Estatuto aos jovens entre dezoito e vinte um anos, consoante bem exara o § único do próprio artigo 2º, ‘in verbis’: "Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte anos de idade".
E que casos expressos em lei são esses?
São quatro, senão vejamos:
1°) O caso do artigo 36, quando prevê que a tutela poderá ser deferida a pessoa até 21 anos incompletos;
2º) O caso do artigo 40, que se reporta à adoção de maior de 18 anos, nas hipóteses em que o adotando já esteja sob a guarda ou tutela dos adotantes;
3º) O caso do artigo 121 § 5º, que permite o prolongamento da medida de internação até os 21 anos;
4º) O caso do artigo 148 § único alínea "e", que autoriza a emancipação, nos termos da lei civil, quando faltarem os pais.
Ora, em todos esses casos, por sinal, de natureza particularíssima, as regras do ECA se estendem àqueles jovens de até 21 anos incompletos, mas que, até então, harmonicamente coincidia com a maioridade civil do Código Civil de 1916, ou seja, 21 anos completos, a teor do artigo 9º caput, não gerando assim qualquer incompatibilidade entre os Diplomas Legais.
Todavia, com o advento do Novo Código Civil(Lei nº 10.406/02), em vigor desde 11 de janeiro de 2003, essa harmonia doutrinária parece mudar, à vista de que, segundo alguns doutrinadores, a nova maioridade civil(18 anos) em nada repercute no ECA, sendo que, para outros, a repercussão é frontal e evidente, implicando assim na revogação do parágrafo único do artigo 2º do ECA.
Eis aí a polêmica, a controvérsia, a ‘vexata quaestio’!
Vejamos as razões da doutrina, em síntese apertada.
Para os autores que entendem que a repercussão é flagrante, aduzem eles que deve prevalecer a interpretação teleológica e equitativa do ECA, expressa no artigo 6º, quando ali diz que "na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento", concluindo então ser desumano e contrário aos fins sociais a aplicação de qualquer medida sócio-educativa aos jovens de até 21 anos, uma vez que a maioridade foi reduzida para 18 anos e, por conseguinte, uma vez atingida a atual maioridade civil, nenhuma medida sócio-educativa pode continuar a ser executada, devendo todo e qualquer processo, em andamento ou findo, ser extinto por perda do objeto da atividade Estatal, inclusive os processos cíveis(adoção e guarda, por exemplo). E mais: estando o adolescente internado(preso), por força do cometimento de qualquer delito, deve o mesmo ser liberado, tão logo alcance a atual maioridade civil, ou seja, 18 anos. Nesse sentido, pois, estaria derrogado o artigo 2º do ECA.
Para os demais autores, ou seja, os que entendem que a atual maioridade civil em nada repercute no ECA, advogam eles que as normas do Estatuto têm como limite máximo a idade de 21 anos em face da sua natureza protetiva, preventiva e peculiar e não em face da incapacidade civil do adolescente, isto é, as medidas do ECA podem alcançar até a idade de 21 anos não em razão da incapacidade relativa do agente, mas em razão de uma proteção especial, diferenciada e específica do próprio jovem-adulto e da sociedade, objetivando não somente recuperar o jovem-adulto infrator(prevenção especial), mas também, com a aplicação da medida sócio-educativa, intimidar os potenciais autores de atos infracionais(prevenção geral). Nesse sentido, pois, não estaria derrogado o artigo 2º do ECA.
Pessoalmente, filio-me à segunda corrente de pensamento, ou seja, àquela que sustenta inexistir qualquer efeito derrogatório da nova maioridade civil em face do ECA, conforme as razões abaixo alinhavadas:
1ª) A uma, porque a redução da maioridade civil( de 21 anos para 18 anos) diz respeito com a capacidade de fato ou de exercício da pessoa natural, isto é, a aptidão para exercer, por si só, os atos da vida civil, estando atualmente igualada e uniformizada, acertadamente, com a maioridade criminal, trabalhista e eleitoral. Já a aplicação excepcional das normas do ECA aos jovens-adultos de até 21 anos de idade(art. 2º § único), diz respeito com à adoção de um critério biológico, à vista da imaturidade e inexperiência deles, e que também leva em conta a "especial condição da pessoa em desenvolvimento", a teor do artigo 6º do ECA, uma vez que o próprio legislador reconhece que a criança e o adolescente não conhecem inteiramente os seus direitos e não têm condições de defendê-los e fazê-los valer de modo pleno;
2ª) A duas, porque as diversas espécies de emancipação estampadas no artigo 9º § 1º incisos I a V do Código Civil de 1916 jamais refletiram em sede de direito menorista, de tal sorte que, na hipótese de um adolescente de 17 anos e 6(seis) meses ter praticado um estupro, e estando ainda em curso a apuração do ato infracional após a maioridade penal(18 anos), a eventual emancipação do mesmo de modo algum elide ou afasta a aplicação excepcional do ECA.
Observe-se, igualmente, que na hipótese de emancipação voluntária por outorga do pais, a partir dos 16 anos de idade, conforme previsto no artigo 5º inciso I do Novo Código Civil, tal fato jamais repercutirá em sede menorista, para fins de responsabilização penal do menor emancipado, haja vista que o mesmo continuará sendo considerado penalmente inimputável, sujeito apenas aos ditames do ECA. De sorte que, em tendo um menor de 16 anos de idade cometido um latrocínio e se, no dia seguinte, for emancipado pelos pais, sua conduta típica será processada e julgada pelo ECA, pois deve ser considerada a idade do adolescente à data do fato(art. 104), em nada influindo o ato emancipatório voluntário;
3ª) A três, porque na hipótese de um adolescente praticar um delito antes de completar 18 anos de idade, ele será processado e julgado segundo as regras do ECA, pois sempre deve prevalecer a data do fato(art. 104 § único), ainda que a sentença seja proferida após a maioridade penal(18 anos); e um vez aplicada a medida sócio-educativa(internamento, por exemplo), o limite da prisão não pode ser superior a três(3) anos(art. 121 § 3º) e sua liberação(soltura) será compulsória aos 21 anos de idade(art. 121 § 5º). Essa é a sistemática atual, a qual acompanho.
Assim, a meu juízo, entendo ser desarrazoado e estapafúrdio o entendimento da primeira corrente doutrinária, que sustenta a repercussão da atual maioridade civil perante o ECA, haja vista que, em assim sendo, um adolescente infrator, minimamente conhecedor das regras jurídicas, estaria horas antes de completar a sua maioridade penal(18 anos) a praticar os mais diversos crimes(homicídio, estupro, assalto, seqüestro), na certeza de que, tão logo completados os 18 anos, estaria impune, por força da extinção forçada da punibilidade(art. 121 § 5º), reduzida agora de 21 anos para 18 anos, segundo tal corrente doutrinária;
4ª) A quatro, porque o art. 121 § 5º do ECA, ao dispor que "a liberação será compulsória aos vinte e um anos de idade", prevê que o adolescente que tenha atingido 21 anos de idade, estando internado(preso) por um crime praticado enquanto inimputável(menor de 18 anos), deve ser imediatamente solto, pois o sistema jurídico do ECA, especial e protetivo, não admite a aplicação de qualquer medida sócio-educativa ao infrator que atingiu 21 anos de idade, configurando-se assim, segundo a melhor doutrina, numa forma ‘sui generis’ de extinção da punibilidade, para uns alcançada pela prescrição e para outros pelo perdão. O fato é que, atingindo os 21 anos, o adolescente infrator será imediatamente posto em liberdade, ainda que reste muito tempo de pena a cumprir, haja vista que, naquela data, perdeu o Estado-Juiz o direito de punir, aplicando-se assim, por analogia, a regras do Código Penal;
A prevalecer o entendimento da primeira corrente, isto é, a que defende que a atual maioridade civil influi em sede do ECA, deve-se registrar que, em assim sendo, as Varas da Infância e da Juventude de todo o País estariam automaticamente esvaziadas, desafogadas de processos, uma vez que se limitaria a processar e julgar apenas processos ou procedimentos(cíveis e criminais) até que os adolescentes completassem a atual maioridade civil, ou seja, 18 anos, extinguindo ou arquivando todos os demais. Assim, em uma só lufada de despachos, o Juiz da Infância e da Juventude estaria mandando para o arquivo morto um sem-número de ato infracionais e de ações de guarda e adoção, quer seja pela extinção da punibilidade(no primeiro caso), quer seja pela perda do objeto(no segundo caso).
Em suma, pois, concluo que se constitui numa grave erronia, num grande equívoco jurídico, a extinção do procedimento de apuração do ato infracional pelo fato de o adolescente infrator ter completado 18 anos de idade, assim como entendo ser juridicamente absurda a aplicação de medidas sócio-educativas somente até o alcance de 18 anos, à vista de que as razões dos Diplomas Legais são díspares, não tendo a atual maioridade civil(18 anos) afetado o ECA.
Numa última palavra: se certo é o axioma ‘ubi eadem ratio,idem jus’, ou seja, onde as mesmas razões, o mesmo Direito, é igualmente certo o raciocínio oposto, isto é, onde não houver as mesmas razões, o Direito não há de ser o mesmo!