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A política criminal antidrogas no Brasil:

tendência deslegitimadora do Direito Penal

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Agenda 14/11/2003 às 00:00

4 A redução de riscos e minimização de danos

A redução de riscos e minimização de danos define-se por uma política que visa eliminar ou minimizar os danos, ou os riscos, causados pelo consumo de drogas, do ponto de vista da saúde e dos seus aspectos sociais e econômicos, sem, necessariamente reduzir esse consumo. Teve sua origem na Inglaterra, em 1926, com o Relatório Rolleston, que propôs iniciativas na área jurídica e na área médica a fim de aumentar a qualidade de vida e a tolerância com os usuários de drogas.

Os países desenvolvidos, em sua maioria, onde o consumo de drogas é problemático, disponibilizam aos usuários medidas alternativas, como a troca de seringas e o tratamento de substituição.

O Brasil aderiu aos princípios diretivos de redução da demanda das drogas, reforçando um compromisso de estabelecer estratégias de redução dos danos sociais e à saúde, apoiando atividades dirigidas com esse propósito.

A forma prevalente de implementação da estratégia de redução de danos, em nosso país, é a de Programas de Redução de Danos que consistem em um elenco de ações desenvolvidas em campo por agentes comunitários de saúde, que incluem troca e distribuição de seringas, atividades de informação, educação, aconselhamento, encaminhamento, vacinação contra hepatite e outras ações. Os serviços de saúde vêm adotando também ações dessa mesma natureza, disponibilizando-os aos portadores de HIV e usuários de drogas. [33]

No entanto, com o desenvolvimento promissor desse tratamento alternativo, criou-se, visivelmente, um paradigma entre o sistema repressivo vigente e os programas de manutenção das drogas, o que mostra, em certa medida, a inconsistência do proibicionismo.

Os argumentos contrários à implementação das novas ações sociais baseiam-se na idéia de que a redução de danos opõe-se a ação da justiça, ao mesmo tempo em que relacionam essa estratégia a uma mensagem de aceitação das drogas.

O apelo de prioridade econômica também foi utilizado para impedir a implantação dos programas alternativos. Do ponto de vista dos opositores, o Brasil enfrenta grave problema social no qual grande parcela da população vive em condições miseráveis e afeta a várias doenças infecciosas, não necessariamente relacionadas ao consumo de drogas. Portanto, os recursos deveriam ser direcionados para questões preementes.

Esse argumento de ordem econômica foi combatido através do esclarecimento da origem dos investimentos. Desde 1993, tem-se recursos disponíveis em função de um empréstimo que o Banco Mundial fez ao Ministério da Saúde do Brasil, com o objetivo específico de prevenir a epidemia de AIDS entre os usuários de drogas injetáveis. Esses recursos não podem ser gastos com nenhuma outra atividade, sob pena dos ordenadores de despesas serem incriminados por desvio de dinheiro público. [34]

A incompreensão se baseia, do mesmo modo, na crença de que, ao se disponibilizar o material esterelizado, haveria um maior consumo de drogas, tendência que confirmaria a legalização.

Ledo engano. A existência de seringas e agulhas limpas não induz ao uso injetável da droga. A ausência, obriga sim, ao compartilhamento de equipamentos de injeção. E esse é o maior e mais imediato risco.

A acepção de que o programa de redução de danos constitui o preâmbulo da política de legalização das drogas contribui para adiar ainda mais a implementação da medidas alternativas.

Segundo Wodak:

A oposição veemente a qualquer alternativa remotamente vinculada à legalização impede que países cujas estratégias relativas às drogas se baseiam na redução do consumo, como os EUA, possam ao menos avaliar os benefícios de políticas de redução de danos. Aqueles que apóiam a redução de danos estão divididos quanto às alternativas à atual política de drogas, como quaisquer outros membros da comunidade. [35]

É certo que a redução dos danos coloca em pauta a questão da liberalização e posterior legalização das drogas, principalmente porque sua efetividade seria maior na convivência dessas políticas, mas tais circunstâncias não devem servir de motivo para restringir a sua aplicação.

Todavia, para os defensores da proposta, enfrentar a questão das drogas, partindo do pressuposto da redução dos danos, é mais coerente do que vislumbrar um mundo livre das drogas.

4.1Os Princípios Norteadores

O princípio norteador do programa de redução de danos enuncia a necessidade de se enfatizar o alcance de objetivos não-ideais, mas exeqüíveis. A tendência é obter progressos parciais, aceitando a inevitabilidade de um dado nível de consumo de drogas na sociedade. [36]

A busca pelo uso mais seguro, a conscientização de que a abstinência não é tudo, porque existem tratamentos alternativos, e a interação do usuário, como personagem ativo da sociedade, são também postulados dessa nova abordagem.

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O uso mais seguro de drogas surgiu como uma proposta de que ao usar drogas injetáveis as pessoas evitassem os riscos de infecção pelo HIV.

Inicialmente, a alternativa nesse sentido era a troca ou distribuição de seringas para desestimular compartilhamento, ou ainda, a distribuição de materiais para realizar a desinfecção de seringas e agulhas contaminadas. [37]

Com a efetividade dessas medidas começaram a ser idealizadas outras alternativas, como o treinamento de auxiliares na área de saúde que pudessem aplicar uma injeção intravenosa sem causar danos ao paciente, evitando-se conseqüências desnecessárias à saúde. A qualidade, quantidade e outras orientações sobre a droga em si, podem evitar overdoses, fatais ou não, mas sempre com complicações para a saúde do usuário de drogas.

A máxima de que a abstinência não é tudo também é preconizada nos tratamentos redutores.

A idéia está bem expressa na afirmação de Buning & Brussel: "Se um consumidor de drogas (homem ou mulher) não consegue ou não quer renunciar ao consumo de drogas, deve-se ajudá-lo a reduzir os danos que causa a si mesmo e aos outros". [38]

As propostas, nessas hipóteses, não se fecham em torno de um exigência absoluta, mas ao contrário, respeitam o momento do usuário e buscam melhorar a qualidade de vida, ainda que sob o uso de substâncias.

Esclarece Mesquita que "os serviços orientados pela redução de danos aceitam diversos contratos, que podem ir desde o uso controlado da substância que o indivíduo usa, até a terapia de substituição de drogas". [39]

O moderna postura foi, brilhantemente, delineada por

O''Hare:

Ela se deitou sobre o balanço. Andava em pequenos círculos, torcendo as correntes do balanço, o quanto podia. Levantava então seus pés do chão, fazendo com que as correntes do balanço se desdobrassem, numa grande velocidade, o que fazia com que ela girasse sobre si mesma (...) No momento em que as correntes do balanço se desdobravam, a cabeça dela (...) passava a poucos centímetros dos pés de ferro do balanço (...) Eu poderia ter dito para ela parar de brincar, mas, obviamente, ela estava se divertindo muito com a brincadeira e gostando da sensação de ficar tonta (talvez próxima à de intoxicar-se?) (...) Assim, eu preferi dizer-lhe para dobrar bem a cabeça de modo que, quando ela rodasse, a mantivesse a uma margem segura dos pés do balanço (...) Havia uma clara decisão a ser tomada - proibição ou redução do dano, ou seja, proibir, o que não teria grande sucesso em se tratando de uma atividade prazerosa, ou reconhecer o valor da atividade para ela e tentar reduzir os riscos daí decorrentes e, com isso, prevenir o dano.

[40]

Esse novo tipo de intervenção não tem interesse em decretar a falência do tratamento e muito menos estigmatizar o usuário como doente incurável. Ao contrário, ela é aplicada como complementação do programa de prevenção e reinserção, levando em consideração que em certas situações, nas quais o consumo se apresenta como um fato incortonável, deve-se prescindir da abstinência imediata por forma a assegurar uma intervenção.

A mudança da imagem do usuário de drogas perante a sociedade é outro princípio basilar da moderna política de drogas.

Para quem opta pela visão humanista do fenômeno das drogas, o usuário é um cidadão como qualquer outro, capaz, portanto, de exercer atividades importantes na comunidade em que vive.

Refletindo sobre a necessidade de revelar esse indivíduo como personagem principal da nova estratégia, muitos programas de redução de danos passaram a ser conduzidos por pessoas que estão em pleno uso de drogas. Eles produzem e distribuem materiais, com a facilidade de possuírem experiência de vida e linguagem próprias para orientar seus semelhantes. [41]

Na Holanda, os usuários de drogas injetáveis são por vezes referidos em documentos oficiais como "cidadãos holandeses que consomem drogas". Isso confere aos usuários maior respeito, embora exija mais deles em relação ao papel exercido frente à sociedade. [42]

O usuário deixa de ser visto como um sujeito passivo, de menor potencialidade, porque o respeito a sua dignidade exerce função importante na reabilitação e reinserção social.

4.2 Estratégias de implementação

A XIV Conferência Internacional sobre AIDS, realizada em Barcelona, outorgou relevância ao consumo de drogas injetáveis à nível mundial. [43]

Segundo dados do Observatório Europeu das Drogas, o consumo de droga por via injetável é, atualmente, registrado em 29 países e territórios em todo o mundo, sendo que 103 referem a incidência do HIV associado a este consumo. A transmissão do HIV relacionada com o consumo de drogas por via injetável pode alastrar-se de forma extremamente rápida, verificando-se, em alguns casos, o aumento da incidência do HIV entre os consumidores de droga por via injetável de um valor virtual de 0% para 40% no período de um a dois anos. [44]

Volta-se, então, com mais atenção para esses casos tendo em vista formarem eles o denominador comum de graves danos à saúde, como as doenças infecto-contagiosas e o conseqüente número de óbitos relacionados a sobredosagem.

As claras razões dos danos causados pelo consumo dessas drogas injetáveis encontra-se no comportamento de risco dos próprios consumidores. A marginalidade e estigmatização desses usuários contribui para as péssimas condições de higiene, falta de acesso a materiais esterelizados, informações sobre as doenças, além de outros riscos adicionais, como a prostituição com o propósito de manter o vício.

Com a finalidade de alterar o quadro sanitário preocupante, que mostrava a descontrolada disseminação das doenças infecto-contagiosas, a troca de seringas surge como centro do programa de redução de danos e minimização de riscos.

Os programas de troca de seringas tem por objetivo ampliar a disponibilidade de equipamentos de injeção estéreis e reduzir a disponibilidade de equipamentos de injeção contaminados enquanto meio de contenção da disseminação do HIV entre os usuários de drogas injetáveis.

Quando foi implementada, nos anos 80, havia o receio de que a troca dos materiais, embora prevenindo a transmissão de doenças infecto-contagiosas, levaria ao aumento do consumo de drogas. Bastou uma década de implementação da política para que os resultados positivos se solidificassem, sem que houvesse surgimento de evidências para subsidiar as preocupações iniciais de aumento de consumo das drogas. [45]

Bastos revela a importância de se fazer uma leitura desideologizada em torno dos programas de trocas de seringas:

É importante redirecionar o debate acerca dos PTS para problemas reais, e não para problemas imaginários, (...) que vêm-se opondo à implementação dos PTS sob alegações despropositadas de que eles aumentariam o consumo de drogas, idéia desmentida por todos estudos empíricos até hoje realizados. Para tal, é necessário ver os PTS como uma iniciativa preventiva de saúde pública, de natureza similar às demais, no sentido de situar-se além da "demonização" simplista e aquém da panacéia. [46]

As trocas de seringas, na verdade, funcionaram como símbolo do novo propósito, constituindo a face mais visível de uma reorientação geral do enfoque referente à questão das drogas. [47]

No caminho para implementação da redução de danos a estratégia de instalações para o consumo de drogas tem erguido os maiores debates em torno do programa de redução de danos. A referida estratégia vem sendo discutida e amadurecida há algum tempo em vários países, onde a redução de danos é política consolidada.

As instalações de consumo assistido de droga (também denominadas salas sanitárias e salas de injeção mais segura) são centros de atendimento a usuários, onde os mesmos recebem diferentes tratamentos de acordo com a situação de consumo, a droga usada, condições sociais de cada indivíduo, entre outros pontos avaliados.

Os objetivos do serviços prestados na sala de consumo visam a redução da perturbação da ordem pública, a aumento do acesso e utilização de serviços de saúde e a redução dos riscos de transmissão de vírus por via sangüínea e de overdose.

Esses centros passaram a fazer parte da prestação oficial de serviços aos consumidores problemáticos de droga em várias cidades da Alemanha, dos Países Baixos, da Suíça e, mais recentemente, da Austrália e Espanha.

Em Portugal, o governo elaborou o regime geral das políticas de prevenção e redução de riscos e minimização de danos, estabelecendo uma série de iniciativas sociais e sanitárias, incluindo estruturas como: centros de abrigo para toxicodependentes, pontos de contato, programas de troca de seringas e salas de injeção. O funcionamento das salas é feito sob a supervisão das autoridades ou instituições locais, preferencialmente destinadas aos consumidores de heroína e cocaína.

Na Suíça, a primeira sala de injeção assistida está em pleno funcionamento há 16 anos. As regras dos centros públicos são cumpridas à letra. Para o indivíduo ser aceito no programa, tem de preencher uma série de requisitos - pelo menos dois tratamentos falhados, uma referenciação médica fundamentada, antecedentes de anos de uma toxicodependência com drogas injetáveis, diagnóstico de mais do que uma doença grave, como sida ou hepatite. A média de tempo de consumo é superior a dez anos e todos são maiores de idade. As estatísticas de sucesso são otimistas: um terço acaba por sair dos centros para programas de metadona ou para tratamento. [48]

Huwiler, diretor de um dos centros de injeção mais segura, explica como é feito o tratamento:

O que lhes dizemos é que não damos drogas, mas sim medicamentos. E este é o último degrau de tratamento que temos para lhes oferecer. Daqui para a frente, o objetivo é tentar mantê-los o mais tempo possível no programa, melhorar a sua saúde, reduzir a criminalidade e o uso ilegal de drogas e, a longo prazo, reduzir a dependência. [49]

Assim é que, quando se analisa o alcance da situação problemática do consumo de entorpecentes e conclui-se pela eleição de prioridades, os comentários negativos sobre as salas sanitárias deixam de ter sentido.

Fundamentalmente, trata-se de um problema de saúde pública, no qual os consumidores de drogas potencializam maiores danos à sociedade ao fazerem uso dessas substâncias na clandestinidade, sem condições de higiene, nem cautelas mínimas que permitem evitar situações de contágio de doenças, do que em centros de atendimento com profissionais habilitados para lidar com a situação de risco.

Uma terceira estratégia relacionada a redução de danos é o tratamento de substituição. Um tratamento médico para dependentes, baseado na utilização de uma substância idêntica ou semelhante à droga consumida pelo indivíduo. Trabalha-se com uma escala decrescente de risco a fim de que o dependente perceba uma gradação de mudanças, alcançada por pequenos passos, os quais levam o usuário da forma descontrolada de uso para um uso mais seguro e menos danoso à saúde. [50]

A relevância desse tratamento é traduzida, em termos práticos, pelo aumento de interesse científico e disponibilização de outras opções farmacológicas para a substituição.

Inicialmente, a metadona surgiu como a única possibilidade terapêutica. Contudo, rapidamente, pesquisas foram desenvolvidas, mostrando o sucesso de substituir drogas diferentes, como cocaína em forma de crack fumada, por maconha também fumada, além de outras substâncias como a morfina.

Alguns testes, na União Européia, estão sendo feitos, a fim de avaliar a eficácia da heroína. No caso de consumidores extremamente problemáticos administra-se a substância na qual o indivíduo é dependente.

Argumenta-se, outrossim, que o tratamento não é uma cura, mas sim uma resposta tímida que não oferece solução real para os problemas relacionados às drogas.

O Observatório Europeu de Droga e Toxicodependência acredita que o debate político sobre o assunto não pode confinar-se a uma análise das suas vantagens e desvantagens, sendo que o tratamento de substituição deve ser visto como mais um elemento numa vasta gama de respostas ao problema do consumo de drogas. [51]

Sem prejuízo da importância destinada aos tratamentos livres de drogas, depara-se dentro dos grupos de consumidores de drogas em situações limite para as quais se justifica a aplicação do programa de substituição ao invés da abstinência, com o qual não se obteve êxito.

Os protagonistas do tratamento não estariam, entretanto, condenados à substituição de uma dependência por outra pois um dos objetivos do programa é auxiliar nas novas tentativas em programas livres de drogas, sempre respeitando a individualidade do drogadito.

É possível transmitir mais informações sobre os riscos envolvendo o consumo de drogas, os meios de proteção às doenças infecto-contagiosas, acompanhamento ou vacinação quando adequada.

A alternativa terapêutica de substituição reduz as mortes secundárias à overdose, a mortalidade nesse segmento, os comportamentos de risco, as taxas de desemprego e a criminalidade, revelando um custo-efetividade extremamente favorável, porquanto a permanência do usuário sob esse tratamento é mais elevada em comparação aos tratamentos convencionais e o custo estimado é proporcionalmente menor. [52]

Sobre a autora
Paula da Rosa Almeida

bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas pela UFSM/RS, aluna da Fundação Escola Superior da Defensoria Pública/RS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Paula Rosa. A política criminal antidrogas no Brasil:: tendência deslegitimadora do Direito Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 131, 14 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4486. Acesso em: 30 dez. 2024.

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