RESUMO:Apesar da sistemática constitucional advinda em 1988, na qual é vedada a pena de trabalhos forçados, o sistema de execução penal vigente no ordenamento jurídico brasileiro prevê a obrigatoriedade do trabalho do apenado à pena privativa de liberdade em caráter definitivo como forma de ressocialização da pessoa e para evitar o ócio carcerário, dentre outros fins. O regulamento que prevê a obrigatoriedade do trabalho prisional é a Lei de Execução Penal (LEP), publicada em 1984, legislação anterior à atual Constituição. Dessa forma, surge a celeuma a respeito da possível não receptividade da obrigatoriedade do trabalho prisional em razão da proibição da pena de trabalhos forçados surgida no art. 5°, inciso XLVII, alínea "c" em 1988. Em que pese tal polêmica, seguindo o método dedutivo, o entendimento majoritário é da manutenção da obrigatoriedade do trabalho prisional, visto que não poderá ser considerado como sinônimo de trabalho forçado. Além disso, com a obrigatoriedade do trabalho prisional, surge a impossibilidade do enquadramento do preso no regime trabalhista celetista, visto que o direito do trabalho preza os cuidados ao trabalho livre, aquele no qual há a concordância em trabalhar.
Palavras-chave: Trabalho prisional; Trabalho obrigatório; Trabalho forçado; Direito do Trabalho; Ressocialização.
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem como tema o trabalho carcerário, mais especificamente a obrigatoriedade imposta pela Lei de Execução Penal, e a consequente situação da marginalização celetista imposta ao apenado, assim, ao preso não é conferido o status da relação de emprego.
A prática do trabalho, em princípio, é apontada como o principal meio cabível para a ressocialização dos apenados, ocupando a mente dos indivíduos para a disciplina nas penitenciárias, profissionalizando os trabalhadores para a futura recolocação à vida em sociedade. Atualmente, a Lei n. 7.210 de 1984, também chamada Lei de Execuções Penais (LEP), em seu artigo 31, prevê a não incidência celetista, ou seja, o preso não possui um regime jurídico disciplinando o seu labor. O apenado apenas possui poucos direitos laborais previstos na LEP.
Tal situação é encarada dessa forma em razão do trabalho do apenado ser considerado obrigatório. Seguindo o raciocínio, a exposição de motivos da LEP demonstra que o preso não possui "a liberdade para a formação do contrato". Por sua vez, o direito trabalhista cuida do trabalho do homem livre, que será aquele no qual há a opção do destinatário dos resultados advindos com o trabalho. Diante desse conflito "trabalho obrigatório X trabalho livre", restaria prejudicada a configuração do contrato de trabalho e, por conseguinte, o trabalho prisional não se encontraria dentro das situações merecedoras de atenção do direito trabalhista.
Todavia, surge a possibilidade da não obrigatoriedade do trabalho prisional após o surgimento da proibição da pena de trabalhos forçados, artigo constitucional inovador, não antes previsto nas constituições anteriores. Sendo assim, é necessária a abordagem do tema para a análise da manutenção em relação ao entendimento quanto à obrigatoriedade.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A ciência do direito sempre deverá ser abordada sob diversos enfoques, não apenas na área pormenorizada, específica na qual se concentram os principais efeitos, mas também nas demais searas em que porventura possam ocorrer respingos desses efeitos. É o que ocorre no campo do trabalho prisional, pois se verifica um forte ponto de encontro entre as disciplinas penalista e trabalhista, visto que o trabalho é realizado em ambiente prisional.
O trabalho aplicado nos estabelecimentos prisionais também poderá ser chamado de laborterapia, conforme disposto no Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa: "1. Psiq. V. Terapia ocupacional. 2. Nas penitenciárias, atividade semelhante à terapia ocupacional e que objetiva a reintegração social do condenado".[1]
A própria origem da terminologia "trabalho", apesar de ser contraditória, remonta à palavra pena, oriunda do vocábulo em Latim "tripalium", que indicaria um instrumento de tortura, ou ainda um instrumento que servia para segurar grandes animais enquanto eram ferrados. Assim ocorre com as demais línguas latinas, em Espanhol, "trabajo"; no Francês, "travail".[2] Portanto, trabalho estava relacionado com a dor, o sofrimento, o castigo. Na Bíblia, no Livro Gênesis, Capítulo 3, Versículo 17 a 19, há a menção de que Adão, pelo cometimento do pecado original, foi por Deus penalizado com o trabalho.[3] É claro que a concepção de trabalho e pena evolui muito no decorrer do tempo, os conceitos aqui expostos são históricos e servem apenas para indicar a sua origem. A pena, a princípio, não está mais vinculada à questão do trabalho, são institutos totalmente diversos.
Adentrando no aspecto do direito penal a respeito das possíveis penas, legalmente permitidas no Brasil, atualmente, de acordo com o artigo 5°, XLVI da CRFB, encontra-se:
Art. 5°. CRFB.
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XLVI. A lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:
a) privação ou restrição da liberdade;
Sem embargo, apesar desse rol de penas na Carta Magna brasileira, demais direitos poderão ser suprimidos em decorrência da sentença condenatória que determinará a pena a ser aplicada no caso concreto, que será o demonstrado neste artigo: a imputação de cumprimento da pena privativa de liberdade com a consequente restrição aos direitos trabalhistas. Portanto, encontra-se, novamente, em outro contexto histórico, a colisão entre a pena e o trabalho.
2. O TRABALHO OBRIGATÓRIO
A LEP, em seu Capítulo III, trata "Do Trabalho". Mais precisamente em seu artigo 31, encontra-se a obrigatoriedade do trabalho para os apenados:
Art. 31 LEP. O condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na medida de suas aptidões e capacidade.
Parágrafo único. Para o preso provisório, o trabalho não é obrigatório e só poderá ser executado no interior do estabelecimento.
Destarte, vislumbra-se a obrigatoriedade do trabalho para os condenados em definitivo à pena privativa de liberdade. O labor não será obrigatório aos presos provisórios, isto é, àqueles que não possuem sentença condenatória transitada em julgado. O trabalho do preso é um misto de dever (art. 39, V) e direito (art. 41, II) do preso.
Art. 39 LEP. Constituem deveres do condenado:
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V – execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas;
Art. 41 LEP. Constituem direitos do preso:
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II – atribuição de trabalho e sua remuneração;
O condenado por crime político está desobrigado ao trabalho de acordo com o artigo 200 da LEP. Para a pessoa submetida à medida de segurança de internação o trabalho também não é considerado um dever, dessa forma, não é obrigatório. O que poderá ocorrer é apenas o trabalho interno na medida de suas aptidões e capacidade.
A Lei n. 3.274 de 1957, que tratava sobre as Normas Gerais do Regime Penitenciário, totalmente revogada pela Lei 7.210, já previa a mesma obrigatoriedade para os apenados:
Art. 1º. Lei 3.274/1957. São normas gerais de regime penitenciário, reguladoras da execução das penas criminais e das medidas de segurança detentivas, em todo o território nacional:
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IV – O trabalho obrigatório dos sentenciados, segundo os preceitos da psicotécnica e o objetivo corretivo e educacional dos mesmos.
A ONU, através das Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos,[4] expedida em 1955, no artigo 71, § 2°, também estabelece a obrigatoriedade do trabalho:
2) Todos os reclusos condenados devem trabalhar, em conformidade com as suas aptidões física e mental, de acordo com determinação do médico.
A respeito do trabalho prisional ainda ser considerado obrigatório, atualmente, Cezar Roberto Bitencourt, através de suas palavras, deixa claro que ainda o considera da seguinte forma: "O trabalho prisional é a melhor forma de ocupar o tempo ocioso do condenado e diminuir os efeitos criminógenos da prisão e, a despeito de ser obrigatório, hoje é um direito-dever do apenado e será sempre remunerado".[5]
Por seu turno, Guilherme de Souza Nucci possui o mesmo entendimento ao tratar dos deveres do condenado, e vai além, tratando, também, da constitucionalidade:
O principal é a obrigação de trabalhar, que funciona primordialmente como fator de recuperação, disciplina e aprendizado para a futura vida em liberdade. Não se cuida de trabalho forçado, o que é constitucionalmente vedado, mas de trabalho obrigatório. Se o preso recusar a atividade que lhe foi destinada, cometerá falta grave (art. 50, VI LEP).[6]
Norberto Avena continua com o mesmo entendimento trazido acima:
Como já dissemos, a LEP contempla no trabalho do preso um direito (art. 41, II) e também um dever (art. 39, V). Logo, é obrigatório, de acordo com as suas aptidões e capacidade (art. 31). Muito embora o segregado não possa ser forçado a sua execução, a recusa importa no cometimento de falta grave (art. 50, VI), sujeitando-o às sanções disciplinares previstas em lei. Ressalva, porém, existe com relação ao condenado por crime político, que, nos termos do art. 200 da LEP, não está obrigado a trabalhar.[7]
Por fim, Paulo Lúcio Nogueira também aborda a questão ao tratar dos benefícios da laborterapia conjuntamente ao tema da obrigatoriedade:
[...] o trabalho não visa somente à produção, deve ser encarado também sob o aspecto existencial e de aprimoramento da formação humana, já que ele é necessário à realização pessoal do indivíduo e sendo de utilidade social.
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Cumpre, entretanto, salientar que, em regra, a clientela das prisões não é propensa ao trabalho, mas à vida ociosa, bastando fazer uma pesquisa sobre a modalidade de trabalho desenvolvida pelos presos, quando em liberdade, para se verificar que não são criaturas muito laboriosas.
É por isso também que o trabalho carcerário deverá ser obrigatório, já que, sendo voluntário, provavelmente muitos preferirão manter-se ociosos.
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A atual Constituição dispõe que não haverá penas de trabalhos forçados, o que de modo algum pode ser entendido como trabalho obrigatório de todo condenado, sob pena de instalar-se definitivamente o regime de ociosidade, já existente nas prisões e que precisa ser substituído pelo regime de trabalho, como único meio de realmente reeducar o condenado.[8]
Mirabete também explana: "Impõe-se ao preso o trabalho obrigatório, remunerado e com a garantia dos benefícios da Previdência Social (art. 39). Trata-se de um dever social e condição de dignidade humana, que tem finalidade educativa e produtiva".[9]
Conforme exposto, verifica-se que todos os autores acima apresentados defendem, veementemente, a aplicação do caráter obrigatório ao trabalho carcerário. Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena adota situação diversa, pois alega que a compulsoriedade do trabalho carcerário é "atenuada":
Saliente-se que, hoje em dia, o trabalho do apenado, como efeito da condenação criminal, sujeito até a métodos pedagógicos de readaptação, com fundo e técnicas psicoterápicas, vem-se orientando no sentido de impor-se ao detento (mesmo em regime de para-liberdade) uma atividade compatível com a pessoa do prestador ou respeitando-se, tanto quanto possível, as suas aptidões. O princípio da seletividade obedece, em geral, a uma dimensão de caráter profissional, como que se orientando pelo reaproveitamento da anterior atividade do prestador – detento, suas condições de vida, sua classe social, seu modus vivendi, etc. Em suma, está-se diante de uma compulsividade atenuada, mas dirigida.[10]
Consoante o Vilhena, a obrigatoriedade do trabalho prisional não seria uma obrigação para a realização de um trabalho qualquer, pois o labor deverá respeitar as condições da vida pregressa do condenado, assim como necessidades futuras do preso e as oportunidades oferecidas pelo mercado.[11]
Porém, Luiz Antônio Bogo Chies promove o debate da problemática, pois para o autor:
Não sendo a pena privativa de liberdade uma pena de trabalhos forçados (em Constituição em seu artigo 5°, XLVII, "c"), como se pode imputar ao apenado a obrigatoriedade da atividade laboral?
Sem que se entre aqui de forma mais aprofundada nesse debate, não obstante sua importância, nossa opinião é no sentido de que a obrigatoriedade do trabalho ao preso é incompatível com a moderna concepção do trabalho como um direito social além de individual. Entretanto, no vigente Direito de Execução Penal brasileiro a questão é também controversa.[12]
O autor, para tanto, justifica seu entendimento da seguinte forma:
Mesclando disposições de obrigatoriedade, dever e direito na relação entre preso e trabalho penitenciário, mas sobretudo ao inserir no artigo 31 uma obrigação "condicionada" à medida das aptidões e capacidade do preso, temos que o conteúdo da LEP, em consonância com as disposições constitucionais acerca das penas (em especial os princípios de individualização e humanização – artigo 5° XLVI e III – bem como à vedação das penas cruéis e de intervenções degradantes da pessoa humana – artigo 5° XLVII e III), deve ser imperativamente interpretado como atribuidor e reconhecedor do caráter prioritário de direito, e, portanto, não de dever, do trabalho penitenciário.
Por óbvio que tal entendimento não é pacífico.[13]
Rui Carlos Machado Alvim também partilha do entendimento da não obrigatoriedade, pois para a correta realização do tratamento deverá existir a adesão do preso:
[...] o trabalho destaca-se, na moderna política penitenciária, como um dos momentos marcantes do tratamento e este não pode ser obrigatório [...]. Fina-se aí, e mais ali, a tal obrigatoriedade: primeiro, pelo fato de que a realização do tratamento deve imprescindivelmente contar com a adesão consciente do "tratado"; e segundo, porque a constituição brasileira desautoriza que, no cumprimento da pena, ofenda-se a integridade moral do presidiário (art. 5, XLIX). Impor-lhe, portanto, contra a sua vontade, o trabalho, como meio terapêutico ou como via de ressocialização, extrapola o âmbito da pena – que é unicamente o cerceamento da liberdade – e o campo do direito penal mesmo, carecendo de legitimidade, porque este não pode obrigar todos a uma conduta uniforme; sua função cessa na exigência de "mera conformidade exterior à lei". Esta é a única alternância para uma sociedade que se apregoa democrática e pluralista.[14]
Para o autor, o trabalho realizado de forma obrigatória extrapola o âmbito da pena, que deve se ater única e exclusivamente ao cerceamento de liberdade.
E Anabela Miranda Rodrigues também argumenta que o trabalho do recluso, realizado com o fim de ressocializá-lo, deverá ser calcado de forma optativa, ou seja, de forma que seja dada a faculdade de escolha para o apenado:
Sabe-se como o consentimento e a participação do recluso no tratamento são essenciais para o seu correto entendimento. E foi exatamente este reconhecimento que levou alguns autores a adoptar [sic] uma separação completa entre pena e tratamento, encontrando aí a razão da dissociação: a pena seria puramente repressiva e o tratamento totalmente facultativo.[15]
Em que pesem as palavras citadas pelos últimos autores estarem calcadas de lógica, conforme demonstrado, a doutrina é quase unânime em afirmar que o trabalho do preso continua a ser considerado obrigatório.[16] Inicialmente, se fosse o caso de ter ocorrido a revogação do preceito, tal revogação foi tácita, pois o artigo 31 continua com a sua redação original intacta no corpo da LEP.
Cumpre ressaltar o Decreto n. 6.049, de 27 de fevereiro de 2007, que aprova o Regulamento Penitenciário Federal, em seu artigo 98, aborda o trabalho do apenado, inclusive quando em Regime Disciplinar Diferenciado (RDD):[17]
Art. 98 Decreto nº 6.049/2007. Todo preso, salvo as exceções legais, deverá submeter-se ao trabalho, respeitadas suas condições individuais, habilidades e restrições de ordem de segurança e disciplina.
§ 1o. Será obrigatória a implantação de rotinas de trabalho aos presos em regime disciplinar diferenciado, desde que não comprometa a ordem e a disciplina do estabelecimento penal federal.
§ 2o. O trabalho aos presos em regime disciplinar diferenciado terá caráter remuneratório e laborterápico, sendo desenvolvido na própria cela ou em local adequado, desde que não haja contato com outros presos.
§ 3o. O desenvolvimento do trabalho não poderá comprometer os procedimentos de revista e vigilância, nem prejudicar o quadro funcional com escolta ou vigilância adicional.
O artigo, publicado no Decreto de 2007, continua a considerar o trabalho do preso como obrigatório, e vai além, ao considerar que mesmo no RDD, o tratamento em relação à obrigatoriedade deverá ser mantido, apesar das restrições intrínsecas ao regime.