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A natureza jurídica da "desistência voluntária" e do "arrependimento eficaz".

Uma questão de interpretação

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Agenda 28/11/2003 às 00:00

Preponderam duas correntes: uma defende que a desistência voluntária e o arrependimento eficaz são causa pessoal excludente de tipicidade; outra entende ser causa pessoal de exclusão da punibilidade.

Sumário: 1. Introdução - 2. Algumas noções preliminares. 2.1. Sistema jurídico-penal. 2.2. Norma penal. 2.3. Tipo penal. 2.3.1. Pressupostos de admissibilidade para a criação válida do tipo penal. 2.3.2. Funções do tipo penal. 2.4. Conceito de crime. 2.5. Procedimento de construção do crime (Iter criminis). 2.6.Elementos constitutivos do crime. 2.6.1. Tipicidade. 2.6.1.1.Tipicidade objetiva. 2.6.1.2.Tipicidade subjetiva. 2.6.1.3. Tipicidade formal. 2.6.1.4. Tipicidade material. 2.6.1.5. Tipicidade conglobante. 2.6.2. Antijudicidade. 2.6.3. Injusto penal. 2.6.4. Relação entre tipicidade material, antinormatividade e ilicitude. 2.6.5. Culpabilidade. 2.7. Tentativa. 2.7.1. Finalidade. 2.7.2. Conceito. 2.7.3. Fundamento da punibilidade da tentativa (teoria objetiva). 2.7.4. Identificação dos atos de execução pelo critério objetivo-individual de Welzel (tipificação da tentativa). 2.8. Desistência voluntária e arrependimento eficaz. 2.8.1. Conceitos. 2.8.2. Fundamentos à impunidade. 2.8.3. Natureza jurídica – 3. Punibilidade. 3.1. Noções básicas. 3.2. Princípios constitucionais legitimadores da punibilidade. 3.3. Circunstâncias do crime - 4. Interpretação sistemática do tipo penal de tentativa (art.14, II do CP). 4.1. Conceito e sentido da expressão circunstâncias alheias à vontade - 5. Interpretação sistemática do tipo penal de desistência voluntária (art.15 do CP). 5.1. Conceito e sentido da palavra voluntariamente. 5.2. Significado da expressão só responde pelos atos já praticados (tentativa qualificada) - 6. Natureza jurídica da desistência voluntária (e do arrependimento eficaz). 6.1. Causa excludente de adequação típica. 6.1.1. Críticas. 6.2. Causa de exclusão de punibilidade - 7. Um comentário de natureza processual - 8. Conclusões extraídas do estudo apresentado – 9. Bibliografia consultada.


1. Introdução

Uma das questões mais intrigantes da teoria do delito é a discussão doutrinária para se determinar qual a efetiva natureza jurídica da desistência voluntária (ou do arrependimento eficaz) do agente que já iniciara a execução de um crime. Analisando-se as controvérsias ora existentes, preponderam, atualmente, duas correntes de pensamento: uma, defendendo a tese de que o ato de desistência voluntária (ou de arrependimento eficaz) seja causa pessoal excludente de tipicidade; outra, entendendo ser causa pessoal de exclusão da punibilidade.

Os que defendem a atipicidade alegam que a punibilidade é um dos pressupostos da impunidade. Só é passível de punição quem pratica determinado crime. Logo, só quem pode ter a punibilidade excluída é o autor de delito que preencha determinados requisitos legais. Na hipótese de desistência voluntária, consideram, os estudiosos, que deixou de se concretizar o tipo abstrato de tentativa (art.14,caput,II do CP), em razão de o agente, por vontade própria, ter evitado a consumação do resultado típico. Portanto, não havendo crime tentado algum (pressuposto indispensável à punibilidade), inexiste a possibilidade jurídica de extinção de pena.

Os juristas que endossam a tese de exclusão de pena afirmam ser impossível excluir-se a tipicidade a posteriori de conduta inicialmente típica, pelo fato de o agente executor desistir (ou arrepender-se), voluntária e eficazmente, no curso da execução do delito planejado. Se foram efetivamente constituídos os elementos do crime (tipicidade, ilicitude e culpabilidade), jamais um ato de arrependimento poderá ser justificativa à desconstituição superveniente da tipicidade, por ser materialmente impossível retirar-se, do mundo fático, atos juridicamente proibidos e já realizados, que estão diretamente interligados ao resultado típico antes visado, em perfeita relação de causalidade material.

Diante da questão exposta, dúvidas ainda persistem na aferição da solução jurídica mais precisa e consentânea com a dogmática jurídico-penal em vigor. Pretendo, por conseguinte, com base na teoria finalista da ação e na relação de causalidade material, realizar uma interpretação adequada e satisfatória das normas penais aplicáveis ao caso, para que seja ratificada a tese da exclusão da punibilidade. Isso por entender que a teoria da excludente de tipicidade ignora o caráter material da tipicidade e seus efeitos concretos, em razão de desconstituí-la após uma simples interpretação lógico-formal, realizada ex post facto do tipo tentado.


2. Algumas noções preliminares

2.1. Sistema jurídico-penal

As relações entre as pessoas podem ser resumidas em duas espécies: relações de concorrência e relações de cooperação. As primeiras caracterizam-se pela inevitável existência de competição ou disputa entre sujeitos, sem qualquer ajuda recíproca entre eles, a fim de conquistar determinado bem da vida (existente em quantidade limitada na natureza), ou ainda, com o propósito de exercer, plena e concomitantemente, os direitos subjetivos dos quais são titulares. É o que se dá, exempli gratia, quando indivíduos buscam a conquista de determinado emprego ou, na segunda hipótese, quando procuram exercer as faculdades inerentes ao seu direito de propriedade, tendo, em contrapartida, que se sujeitarem ao direito de vizinhança dos demais. As relações de cooperação são, por natureza, inesgotáveis. As pessoas, em mútuo consenso, desejam um resultado comum. Colaboram, para tanto, entre si. Às vezes, com intenções contrapostas, a conduta de um é a causa da conduta do outro, como, por exemplo, acontece nos contratos bilaterais; outras tantas vezes, pessoas, com os mesmas intenções, conjugam seus esforços em busca de um fim comum e determinado. É o caso de indivíduos que, conjuntamente, destinam bens para a constituição de uma entidade filantrópica.

Levando-se em conta que se trata de uma sociedade pertencente a um Estado Democrático de Direito, que tem como parâmetro e fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana, mister se faz a criação de um sistema jurídico válido e eficaz, que possa ser capaz de prevenir prováveis conflitos de interesses oriundos das relações intersubjetivas inevitáveis ou, subsidiariamente, que possa ser apto a restaurar, in concreto, o estado de legalidade violado, reprimindo e reeducando os responsáveis pelas infrações às respectivas normas de conduta, que ocasionaram a intranqüilidade da população e a conseqüente descrença na segurança jurídica. A depender da espécie do bem da vida agredido, da gravidade da lesão por ele sofrida e da correspondente repercussão no contexto social vigente, o restabelecimento da ordem social dependerá, prioritariamente, da aplicação e da eficácia das respectivas normas jurídicas penais, as quais se submeterão os infratores.

O objeto de estudo do jurista são as normas jurídicas, que constituem o direito objetivo de um Estado. Considerando-se o conjunto das normas que estabelecem as regras mínimas de convivência em sociedade, verifica-se a existência de vários comandos fragmentados, isolados entre si. A priori, deve o operador do direito submetê-los a um tratamento indutivo e racional, visando a evidenciar princípios (expressos ou implícitos) que os interliguem ou os afastem. É a fase de descoberta de idéias e valores éticos e sociais, abstratamente considerados, constantes de um sistema normativo. Passa-se, então, à fase de elaboração de conceitos jurídicos (que expressam idéias e integram as normas) e de fixação da terminologia (linguagem), o que viabilizará o desenvolvimento do raciocínio jurídico e a construção do sistema. A elucidação dos princípios, a determinação dos conceitos e a fixação dos termos lingüísticos adequados constituem a metodologia dogmática. A dogmática jurídica analisa a letra do texto, o decompõe analiticamente em elementos (dogmas) e os reconstrói com lógica e coerência, formando o sistema jurídico e estabelecendo a sua unidade. Sistema jurídico é, portanto, um conjunto de normas jurídicas, compatíveis entre si, que regulamentam a convivência em sociedade.

O sistema jurídico-penal brasileiro é o conjunto de normas jurídicas penais nacionais, compatíveis entre si, extraídas das leis stricto sensu criadas pelo Congresso Nacional (art.22,I da CRFB), para incidirem em situações concretas que sejam insolucionáveis pela incidência de normas de natureza não criminal (caráter subsidiário e fragmentário das normas penais), com o propósito de restabelecer a ordem social e a confiabilidade dos administrados na eficácia do ordenamento jurídico violado, submetendo, para tanto, os agentes criminosos, em regra, ao cumprimento de penas privativas de liberdade, a título de retribuição e reeducação (finalidade preventiva especial da pena).

2.2. Norma penal

A norma jurídica que compõe o sistema é um comando dirigido a uma finalidade. É uma norma de conduta do homem, de natureza preventiva; mas é também, principalmente, norma de composição de conflito de interesses.

A norma jurídica possui sempre dois elementos internos: o comando e a sanção. Aquele determina como se conduzir; esta, estabelece as conseqüências na hipótese de violação do comando. São elementos inseparáveis. A coercibilidade é a essência da norma jurídica, inexistindo esta quando não haja sanção.

A estrutura externa da norma é a forma como ela é apresentada. É o instrumento que a exterioriza, que a veicula. Na hipótese da norma penal, é a própria lei stricto sensu (Código Penal).

O conteúdo material é composto de idéias e valores (éticos, morais, econômicos etc.) incorporados na norma jurídica pelo criador. A norma penal tem conteúdo eminentemente social. Tutela bens jurídicos que, se lesados, causam instabilidade e insegurança na ordem social e desconfiança na ordem jurídica. Em um Estado Democrático de Direito, tais bens da vida (vida, liberdade, intimidade etc.) são protegidos pela própria Constituição.

As normas penais podem ser da espécie incriminadora, que são normas extraídas da interpretação de tipos penais que descrevem condutas passíveis de punição; ou da espécie não incriminadora (normas de permissão: afirmam a licitude ou determinam a impunidade de condutas típicas realizadas em certas circunstâncias; e complementares ou explicativas: elucidam o conteúdo normativo ou delimitam o âmbito de aplicação de outras).

Em se tratando de um sistema jurídico-penal vigente em um Estado Democrático de Direito, a criação de normas penais tem por finalidade precípua servir de instrumento de delimitação entre o poder intervencionista do Estado (jus puniendi) e as liberdades pessoais. Significa que o exercício desse poder condiciona-se não às noções de utilidade social ou de qualquer outro fim que justifique a atuação estatal, mas, sim, pela necessidade de garantia dos mesmos direitos a todos, nas hipóteses expressa e precisamente estabelecidas em lei. Assim compreendida, a norma penal tanto pode ser proibitiva quanto determinativa, estando sua validade dependente não da sua finalidade legal (ratio legis), mas da real necessidade de sua promulgação e das garantias que ofereça.

2.3. Tipo penal

2.3.1. Pressupostos de admissibilidade para a criação válida do tipo penal

A sociedade está em permanente evolução social, econômica e tecnológica. Muitos dos valores culturais que prevaleciam na consciência humana em épocas passadas, merecendo a proteção do sistema jurídico-penal, hodiernamente perderam a importância. Condutas, antes injustas e culpáveis, passaram a ser consideradas lícitas e socialmente adequadas ou, ainda, inadequadas socialmente, porém criminalmente insignificantes para que o agente responsável sofra a coerção penal.

Dessa forma, à medida que os conceitos de valores se alteram, o legislador, como membro da coletividade e representante do povo, sofre inevitável influência sobre suas convicções político-criminais. As razões que embasaram a criação de determinados modelos legais de condutas proibidas, elevando-as à categoria de crime, são enfraquecidas ou desaparecem por completo. O critério político-criminal que impulsionava a atuação do legislador para a construção de tipos penais é modificado. Fatos que antes deveriam submeter-se à incidência das normas penais, ou são descriminalizados, ou, caso ainda estejam previstos legalmente como crime, tornam a norma penal sem eficácia social.

Portanto, o Poder Legislativo Federal, para constituir o tipo penal incriminador, classificando, conseqüentemente, certa conduta como delituosa, deve observar os seguintes princípios, em se tratando de um Estado Democrático de Direito:

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a) princípio da reserva legal (art.5.º,XXXIX da CRFB), cujo conteúdo se compõe de quatro subprincípios: 1- a lei que estabelece o tipo penal só deve ser aplicada a fatos futuros, salvo se para beneficiar o réu (lex praevia); 2- só a lei stricto sensu pode criar delitos, sendo, por conseguinte, inadmissível a criminalização por costumes (lex scripta); 3- é juridicamente impossível a aplicação analógica (in malam partem) de norma penal para fundamentar ou agravar a pena de fato que não tenha sido legalmente erigido prévia e expressamente à categoria do crime correspectivo (lex stricta); 4- os tipos penais devem ser certos, claros, precisos em seu texto o suficiente a não deixar dúvidas sobre a ratio legis, visando a obstar possíveis abusos decorrentes de juízos de valor do intérprete, necessários para uma correta interpretação e aplicação da norma (lex certa). Caso contrário, a segurança jurídica estaria abalada e as garantias individuais seriam materialmente inexistentes;

b) princípio da intervenção mínima. Significa dizer que determinada conduta só deve ser considerada, por lei, como crime, se a aplicação de normas não-penais forem insuficientes a restaurar a paz social, abalada pelo resultado por ela causado. A criminalização de condutas específicas identifica a natureza fragmentária da norma penal. Condutas são selecionadas para constituírem modelos proibidos, dentro de um universo de outras possibilidades de escolha, tendo em vista a relevância que a Constituição da República atribui a determinados bens da vida sob sua tutela (vida, liberdade, honra, propriedade etc.). O caráter subsidiário da norma penal também é evidenciado, pois, se a lesão não alcançou a magnitude suficiente para seu autor sujeitar-se à coerção penal, deverá submeter-se, em regra, às sanções civis;

c) princípio da lesividade. Quatro funções podem ser atribuídas a este princípio: 1- proíbe-se a incriminação de sentimentos pessoais, internos ao agente; 2- proíbe-se a incriminação de condutas que não agridam bens de terceiros. Não existem motivos para punir o agente por ter provocado danos a bens próprios, sem que haja qualquer efeito socialmente reprovável. Em regra, o autor possui plena disponibilidade sobre o que lhe pertence; 3- veda-se a incriminação de estados pessoais ou simples condições existenciais, ou seja, o ser humano não pode sofrer sanções em função de sua personalidade, por ser considerado perigoso. Deve ser punido em virtude do que produziu, não do que ele é. É o que se entende por direito penal do autor, plenamente inconstitucional, por incompatibilidade com os postulados democráticos que regem o sistema jurídico-penal vigente; 4- proíbe-se a incriminação de condutas que, apesar de moralmente reprováveis, não violam bens de terceiros. São condutas desviadas do conceito do moralmente aceito pela maioria da população em determinado contexto social; e

d) princípio da proporcionalidade. O princípio da proporcionalidade será o critério legitimador do exercício da atividade legislativa que imponha a privação da liberdade ao indivíduo, em razão de ter praticado o ato ora capitulado como crime. Tal princípio terá como função aferir a razoabilidade da norma penal recém-construída, por uma análise de sua adequação, de sua necessidade e de sua proporcionalidade em sentido estrito. A criação do tipo penal terá sido adequada se for o meio apto e idôneo a produzir o resultado desejado pela norma e seja conforme aos postulados constitucionais. A necessidade indica que o meio adequado e gravoso adotado deve ser indispensável ao alcance do fim social perseguido, pois, se houver conduta menos onerosa e de eficácia social equivalente, a tipificação terá sido inconstitucional. E, por fim, a proporcionalidade em sentido estrito irá avaliar se, ao sacrifício imposto ao direito fundamental do indivíduo (liberdade), corresponde um benefício ao direito privilegiado, compatível e razoável com os ideais mínimos de justiça.

Criado o tipo penal, as seguintes características passam a ser-lhe inerentes: exclusividade, pois só ele estabelece in abstrato que condutas são criminosas; imperatividade, independentemente de ser a norma permissiva ou incriminadora. Se concretizada a hipótese legal, necessariamente, o respectivo comando normativo produzirá efeitos em relação ao agente; generalidade, com eficácia erga omnes, em razão de ser dirigido a todos os indivíduos, alertando-os para que não executem a conduta descrita; abstratividade e impessoalidade, por viabilizar a punição, em tese, de fatos futuros a ele subsumidos, não se endereçando a alguém, especificamente; e, por fim, possui caráter fragmentário, em virtude de não ter natureza permanente.

2.3.2. Funções do tipo penal

Ressaltando-se, sempre, a plena submissão do sistema jurídico-penal aos postulados inerentes ao Estado Democrático de Direito, ao tipo penal atribuem-se as seguintes funções:

a) função sistemática. A função sistemática do tipo tem o propósito de obstar a transformação do Direito Penal em instrumento para cometimento de arbitrariedades pelos agentes públicos que tenham atribuição ou competência para operá-lo, em virtude das delimitações precisas dos elementos objetivos, subjetivos e normativos, configuradores de um delito, que não devem ser concretizados em face de um contexto definido. Possibilita, com base no princípio da legalidade, a regulamentação sistemática (em sintonia com as normas não penais) e eficaz dos conflitos intersubjetivos inevitáveis da sociedade;

b) função político-criminal. Já se sabe que os bens da vida merecedores de tutela jurídico-penal devem possuir importância reconhecida constitucionalmente. Assim sendo, só estarão aptas a serem selecionadas e classificadas, ex lege, como condutas criminosas, aquelas que, sob o ponto de vista genérico e abstrato, indubitavelmente, possam ser idôneas a causar dano ou perigo concreto de dano aos respectivos bens sob proteção jurídica. A realização, pelo legislador, de um juízo prévio de probabilidade de ocorrência de tais eventos lesivos sobre os respectivos bens, conjuntamente com o juízo prévio da projeção social dos conseqüentes efeitos decorrentes, constituirá o parâmetro sob o qual recairá a função político-criminal do tipo. Essa função do tipo penal visa a possibilitar o entendimento, pelos destinatários da norma penal, das razões pelas quais certas condutas foram consideradas delito e, assim, a viabilizar a compreensão dos sentidos do texto e a extensão de seu alcance social; e

c) função dogmática. Tem a finalidade de "esclarecer fundamentadamente em que medida e em que forma se deve considerar que determinada conduta ingressa na zona do ilícito." Diante da diversidade de situações passíveis de caracterizar uma conduta delituosa, mister se faz a fixação precisa dos seus elementos identificadores, para que inexistam dúvidas no momento de se constatar se houve ou não a violação da norma pelo agente e, dessa forma, evitar-se qualquer espécie de injustiça e agressão à sua dignidade. Essa função busca a estabilidade e a segurança jurídicas, viabilizando soluções concretas para fatos delituosos enquadrados nos respectivos tipos penais. Traduz-se na observância do princípio da legalidade para a execução da norma penal.

2.4. Conceito de crime

Crime, em sentido material, é toda conduta humana lesiva, ou potencialmente lesiva, a determinado bem jurídico penalmente tutelado. Se um ato humano praticado causou dano ou perigo concreto de dano a um bem da vida alheio, garantido pelo ordenamento jurídico-penal em razão de sua relevância constitucional, gerando, destarte, insegurança jurídica à comunidade, deve ser eficazmente sancionado. É indispensável que a magnitude da lesão, provocada pelo agente, seja açambarcada pela ratio legis, tendo em vista o contexto social onde o fato se consumou, e, simultaneamente, seja considerada socialmente reprovada pelo sentimento popular.

Pelo aspecto formal, é todo fato típico, antijurídico e culpável. Típico, por concretizar hipótese abstrata prevista em lei; antijurídico, por contrariar diretamente norma jurídica previamente estabelecida (art.5.º,II da CRFB), sem o respaldo da incidência de alguma norma permissiva, apta a excluir ipso iure a ilicitude; e culpável, em razão de sua reprovabilidade social.

2.5. Procedimento de construção do crime (Iter criminis)

Iter criminis é o caminho necessariamente percorrido pelo agente criminoso, no intuito de consumar o delito planejado. Em tese, inicia-se com a cogitação da prática do crime e é finalizado com a produção do resultado típico respectivo.

Para consumar-se um delito qualquer, mister se faz a realização de um planejamento prévio. O agente, em seu foro íntimo, imagina o injusto penal e passa a desejá-lo, em busca da concretização do resultado correspondente. Começa-se, então, o planejamento dos atos indispensáveis à prática eficaz do desígnio criminoso.

O planejamento envolve diversas fases, que se sucedem cronologicamente. Primeiramente, cogita-se a resolução do crime. A seguir, decide-se por executá-lo. Estes dois momentos constituem a fase interna do iter criminis, não exteriorizada e não punível, por situar-se integralmente no plano psicológico do autor. Determina, todavia, o estado anímico do agente. Esta fixação da intenção de ânimo importa para efeito de se descobrir a real vontade que impulsionou a conduta delituosa e, também, para se identificar se houve (ou não) instigação ou induzimento do agente à prática do crime, em dado instante. Parte-se, daí, à fase externa do plano, constituída por atos preparatórios e de execução, exteriorizados e dirigidos à consumação do delito visado. É a etapa que evidencia a natureza do delito, fundamental à análise do tipo penal de tentativa.

É indispensável a descoberta do instante em que o primeiro ato executivo foi materializado, a fim de se identificar os atos a este sucessivos, que efetivamente se subsumiram ao tipo da tentativa, adquirindo a tipicidade formal, por extensão, e também a material, em face do ordenamento jurídico como um todo, de modo a tornar tais atos passíveis de punição.

2.6. Elementos constitutivos do crime

2.6.1. Tipicidade

Considera-se um fato como sendo típico se, quando realizado, preencheu todos os requisitos constitutivos da respectiva hipótese legal. Tipicidade é a adequação exata de um fato concreto da vida a um determinado tipo legal que, abstratamente, o descrevia em seus elementos objetivos, subjetivos e normativos (quando for o caso).

A tipicidade penal é pressuposto essencial do crime. É, até então, vista como indício de ilicitude (ratio cognoscendi) pela doutrina tradicional. Portanto, se o fato é típico, presume-se seja antijurídico, salvo incidência de norma que o considere lícito. Entretanto, não se deve mais identificar na tipicidade o indício absoluto de que a conduta praticada foi ilícita. Devem, o tipo e a ilicitude, submeterem-se a uma análise prévia e concomitante para se verificar se a incriminação da conduta realizada é ou não, independentemente de previsão legal, incompatível com a ordem social democrática.

2.6.1.1. Tipicidade objetiva

Um fato é objetivamente típico quando concretiza todos os elementos objetivos previstos no tipo legal. Considerando-se tão-somente o perigo de dano criado ou o evento efetivamente produzido, verifica-se se houve a correspondência entre o fato real da vida e o fato abstrata e objetivamente descrito no tipo penal, ignorando-se os elementos subjetivos. Se positivo, houve a tipicidade objetiva.

2.6.1.2. Tipicidade subjetiva

Um fato é subjetivamente típico quando o agente, ao conduzir-se finalisticamente em busca de um resultado proibido, é impulsionado por uma vontade qualificada pelo elemento subjetivo previsto no tipo penal a ser concretizado. A identificação da vontade de se consumar um resultado típico ou de se alcançar determinado objetivo tipificado caracteriza a conduta dolosa do autor. Se evidenciada a intenção do agente em realizar uma conduta lícita e se, por falta da diligência necessária, o resultado típico tenha sido efetivado, estará configurada apenas a sua culpa stricto sensu (elemento normativo); jamais o dolo.

2.6.1.3. Tipicidade formal

A tipicidade formal caracteriza-se pelo ajuste de uma conduta, efetivamente praticada, aos elementos do tipo legal do delito a ela correspondente. Evidenciada a mera coincidência formal entre o fato real da vida e a hipótese abstrata expressa na lei penal, o fato é formalmente típico.

2.6.1.4. Tipicidade material

O juízo de tipicidade, para que tenha relevância na esfera jurídico-penal, exige que o tipo seja entendido em sua "concepção material, como algo dotado de conteúdo valorativo, e não apenas sob seu aspecto formal, de cunho eminentemente diretivo".

A tipicidade material considera o tipo penal como "expressão de danosidade social da conduta descrita". Não basta a mera coincidência formal entre o fato real da vida e a hipótese abstrata da lei penal para considerar-se o fato típico. Deve, também, ser concretamente lesivo a bens jurídicos tutelados ou ética e socialmente reprovável. Iniciados os atos de execução pelo autor, mister se faz observar o potencial lesivo da conduta in concreto, além da subsunção formal do fato à hipótese, para que sejam abrangidos pela norma extensiva da tipicidade. Desta forma, desprezam-se condutas socialmente adequadas (não necessariamente éticas ou morais) ou penalmente irrelevantes (de lesividade inexpressiva).

2.6.1.5. Tipicidade conglobante

A mera subsunção do comportamento do agente aos elementos constitutivos do tipo penal não é suficiente para se afirmar com precisão que a tipicidade penal está configurada. Isso porque, ao se considerar a unidade do sistema jurídico vigente, pode ocorrer de a conduta praticada, apesar de estar perfeitamente enquadrada na hipótese abstrata prevista na lei penal como crime, ter sido realizada no estrito cumprimento do dever legal ou, ainda, em função de determinada autorização normativa fomentadora, tendo em vista a promoção do bem-estar social ou a garantia do interesse coletivo. Tal fato caracteriza a existência de contradição entre mais de uma norma, aparentemente, aplicáveis ao caso concreto (antinomia aparente). Daí o motivo de a tipicidade penal não poder ser confirmada somente sob o enfoque do ordenamento jurídico-penal. Leva-se em conta também todas as normas jurídicas não-penais, pois a natureza unitária do sistema jurídico nacional não permite que a solução da incerteza, decorrente da antinomia aparente, produza resultado concreto injusto ou desigual.

Há tipicidade penal se, na hipótese concretizada, evidenciar-se que o comportamento do sujeito ativo, além de ter efetivamente lesado bem da vida relevante de terceiro, tiver sido contrário à norma penal e não tiver sido imposto ou incentivado por qualquer outra espécie de norma pertencente ao ordenamento jurídico (antinormatividade). A "tipicidade penal implica a tipicidade legal" (tipicidade formal) "corrigida pela tipicidade conglobante" (constituída pela antinormatividade e pela tipicidade material), "que pode reduzir o âmbito de proibição aparente que surge da consideração isolada da tipicidade legal".

2.6.2. Antijuridicidade

Em seu aspecto puramente formal, a ilicitude exprime valor contraditório ao direito, oposto à ordem jurídica como um todo (antinormatividade). Com efeito, só haverá ilicitude penal se, preenchido o tipo penal, forem exauridos todos os meios previstos no sistema jurídico nacional em favor da prevalência da liberdade do sujeito, quando então, tornar-se-á ou será legítima eventual intervenção do Estado para reprimir a conduta praticada.

Haverá, portanto, a antecipação do juízo de ilicitude da conduta, em razão da necessidade inafastável de se averiguar a existência, dentro do ordenamento jurídico vigente, de determinações ou de autorizações legais de incentivo, que excluam o caráter antinormativo da conduta realizada em momento social oportuno. Assim, evita-se, por meio de uma interpretação sistemática mais precisa, chegar a conclusões que não sejam as mais adequadas juridicamente.

A ilicitude estará evidenciada se determinada conduta humana e voluntária for adequadamente típica em função dos princípios norteadores da tipificação penal e for causa de perigo concreto de lesão (ou de efetiva lesão) proporcionada a bem jurídico tutelado, sem, contudo, ter incidido nas hipóteses em que o próprio ordenamento jurídico determina (ou fomenta) o agir (ou o omitir), ou naquelas em que o próprio titular do respectivo bem jurídico violado (patrimônio) consentiu, previamente, com a produção do resultado, com base em seu poder de disposição. Deixa a ilicitude de ser mera infração formal de uma norma legal, abrindo, em contrapartida, o caminho para a construção de causas supralegais de justificação, diante do constante dinamismo social, que faz com que fatos, antes proibidos pela ordem jurídica, tornem-se insignificantes ou socialmente aceitos.

2.6.3. Injusto penal

O tipo penal e a ilicitude não podem mais ser analisados separadamente. Concretizado o tipo penal, este não pode mais ser considerado como indício de que a conduta praticada foi ilícita. Devem, o tipo e a ilicitude, sujeitarem-se ao mesmo juízo prévio para se verificar se a incriminação da conduta realizada é (ou não), independentemente de previsão legal, incompatível com o sistema jurídico vigente. Se houver compatibilidade, estará configurado o injusto penal, isto é, a existência de um fato típico e antijurídico; caso contrário, a conduta será lícita, constituindo, qualquer proibição legal, ato abusivo e ilegítimo de manifestação do jus puniendi do Estado. Despreza-se a possibilidade de incidir uma norma penal proibitiva quando, ao limitar o âmbito do que seja lícito, viole os preceitos essenciais de garantia da proteção humana. A concepção de injusto faz com que o fundamento originário da vedação legal da conduta humana não se subordine tão-só ao bem da vida tutelado, mas, também, e principalmente, na real necessidade de privação da liberdade, uma vez consideradas as garantias constitucionais de proteção à dignidade humana.

A situação concreta da vida e a necessidade de proteção individual são os fatores determinantes para se concluir se o tipo e a ilicitude devem ser analisados separados ou simultaneamente, tornando-se, dessa forma, relativizado o nexo de causalidade absoluto antes existente entre ambos, de antecedente (verificação da subsunção do fato ao tipo penal) a conseqüente (constatação da ilicitude).

2.6.4. Relação entre tipicidade material, antinormatividade e ilicitude

Existirá a tipicidade material quando determinado fato concreto tiver produzido uma lesão ou dano relevante ao bem jurídico tutelado, verificado após uma análise direta entre a conduta do agente e a lesão gerada ao sujeito passivo do crime, visando à descoberta dos efeitos reais provocados.

A ilicitude, da mesma forma que a tipicidade material, também leva em conta a lesão material provocada pela conduta do agente, contrária a alguma norma jurídica penal. Todavia, o juízo de antijuridicidade é feito em um momento posterior ao juízo de tipicidade material e considera, além da lesão, a existência ou não de alguma causa de justificação. O aspecto lesivo não é analisado isoladamente, como na tipicidade material, mas, sim, agrupado a outras circunstâncias fáticas existentes na ocasião, que podem ou não legitimar o dano provocado pelo suposto criminoso.

Tradicionalmente, o exercício regular de um direitoe o estrito cumprimento do dever legal são considerados causas legais excludentes da ilicitude do fato (art.23,III do CP). Entretanto, com base na teoria do injusto penal, quando alguém exerce determinada função, autorizado por alguma norma jurídica (em sentido material), ou desenvolve alguma atividade fomentada pelo Estado ou aceita pela sociedade, não há que se falar em ilicitude e, sequer, em tipicidade, pois o tipo penal não foi criado para penalizar condutas socialmente aceitas ou materialmente insignificantes. Dessa forma, o caráter antinormativo da conduta, nada mais é do que antecipar-se a constatação de o agente ter ou não atuado no exercício regular de um direito ou no cumprimento de um dever jurídico. Caso positivo, não há violação ao ordenamento jurídico e quiçá a antinormatividade. Esta é reconhecida quando há o exercício abusivo ou ilegal de um direito ou o descumprimento do dever jurídico. A ilicitude, todavia, passa a constituir, com base no mais amplo exercício das liberdades públicas promovidas pelo Estado Democrático de Direito, a lesão material relevante e contrária à ordem jurídica, realizada na ausência de legítima defesa ou do estado de necessidade.

2.6.5. Culpabilidade

O agente, com plena capacidade de entender a natureza ilícita de um fato e de posicionar-se em relação a seu entendimento (imputável), que realiza voluntariamente um injusto penal (fato típico e ilícito), com a potencial ciência de seu caráter ilícito e, ainda, com a possibilidade física e atual de evitá-lo, age de modo reprovável socialmente, estando passível de sujeitar-se aos meios de coerção penal.

A culpabilidade é um juízo de censura que o julgador faz do autor de um injusto penal. Tem por objeto de valoração o agente e sua conduta. A culpabilidade, como juízo de valor, procura desvendar a intensidade do dolo que dirigiu a conduta criminosa e, também, se a atuação era ou não evitável, levando-se em conta, in concreto, as circunstâncias do meio e as condições pessoais do agente. Visa a avaliar a reprovabilidade efetiva da conduta do autor e seus reflexos no contexto social, de modo a possibilitar a correta dosimetria da pena e a sua punição justa (proporcional à gravidade da conduta) e útil (capaz de satisfazer os fins preventivos da pena), em consonância com os princípios constitucionais da individualização da pena (art.5.º,XLV), da culpabilidade (art.5.º,LVII) e da dignidade humana (art.1.º,III).

O princípio da culpabilidade se resume em três sentidos fundamentais: a) culpabilidade como elemento integrante do conceito analítico de crime, sendo o fundamento da pena (nulla poena sine culpa). Constatado a existência concreta de um injusto penal, analisar-se-á o grau de reprovabilidade do fato consumado, que viabilizará (ou não) a classificação do fato como criminoso e a conseqüente punição (ou não) do agente responsável por ele; b) culpabilidade como fator de graduação da pena, eis que a sanção a ser aplicada ao agente não poderá ser desproporcional à reprovabilidade da conduta, sob pena de ser violada a sua dignidade humana. É indisponível a sua atuação como critério regulador da pena e de concretização da justiça material; e c) culpabilidade como princípio impedidor da responsabilidade penal objetiva, o que torna imprescindível a existência de dolo ou culpa para que se configure uma possível conduta criminosa. A responsabilidade penal é sempre subjetiva, servindo o princípio da culpabilidade como limite subjetivo à aplicação de pena (art.29, caput do CP c/c art.5.º, XLV da CRFB).

2.7. Tentativa

2.7.1. Finalidade

Terminada a fase interna do plano do autor, na qual este cogita e estuda todos os movimentos que serão necessários à realização do delito, dá-se início à exteriorização do procedimento elaborado, por meio dos atos materiais de preparação e dos subseqüentes atos de execução, tendo em vista o resultado típico pretendido. Entretanto, pode ocorrer de o evento programado não se produzir por razões alheias à vontade de agente executor, caracterizando apenas hipótese de tentativa. Assim, se fossem levados em conta tão-só os tipos legais de delitos previstos no ordenamento, não haveria como sancionar o infrator, em decorrência de sua conduta não ter preenchido todos os elementos do tipo, exigidos para a configuração de determinado crime. Objetivando impedir que condutas ameaçadoras ou lesivas à ordem social ficassem impunes, simplesmente porque o autor não obteve êxito em alcançar o evento típico colimado pela prática dos atos executivos, criou-se o tipo de tentativa, no intuito de viabilizar a tipificação dos atos executados e a punição do responsável.

Seu escopo é ampliar a proibição contida nas normas penais incriminadoras, tipificando, subsidiariamente, atos executórios anteriores à efetivação do tipo penal visado, a este não subsumidos diretamente, porém, pertencentes ao mesmo processo causal e dirigidos a sua concretização. É uma norma de ampliação temporal da figura típica, de eficácia extensiva, criada para evitar a impunidade do agente e garantir a paz social.

2.7.2. Conceito

Ao iniciar-se na execução de determinado crime, o autor busca, dolosamente, o resultado injusto, ou praticando alguns atos de execução necessários a consumá-lo, sem esgotá-los, ou exaurindo-os, realizando todos os atos pertinentes que estão a seu alcance, segundo o seu próprio entendimento, naquele momento, do que seja possível concretizar. Na primeira hipótese, não se consumando o fato típico por circunstâncias alheias a sua vontade, dá-se a tentativa imperfeita, inacabada ou propriamente dita. Na segunda, constitui-se a tentativa perfeita, acabada ou crime falho. Em ambas, há uma "disfunção entre o processo causal e a finalidade que o direcionava", por fatores externos à vontade do autor e, por ele, inevitáveis.

Tais atos devem possuir, objetivamente, aptidão e idoneidade suficientes à produção do resultado, avaliados segundo um juízo de observador imparcial, baseado na experiência geral do homem, em determinado contexto social. Se criado objetivamente um risco, que põe materialmente em perigo o bem jurídico protegido, justifica-se a punibilidade concreta da tentativa.

2.7.3. Fundamento da punibilidade da tentativa (teoria objetiva)

A punição da tentativa, pela teoria objetiva, está embasada no efetivo perigo criado para o bem tutelado. Analisando-se o caso concreto e verificando-se a existência de uma relação de causalidade efetiva entre os atos de execução e o resultado típico visado, quanto maior o perigo de lesão causado ao bem jurídico, quanto mais próximo da consumação chegar o agente com a realização dos atos praticados, maior será a pena a que se submeterá. A contrario sensu, mais branda, necessariamente, será a pena se mais distante ficou da consumação do evento desejado. É a teoria adotada pela lei penal pátria, nos termos do parágrafo único do dispositivo legal da tentativa.

2.7.4. Identificação dos atos de execução pelo critério objetivo-individual de Welzel (tipificação da tentativa)

O método objetivo-individual limita-se à tipificação dos atos já praticados que, estando no plano concreto do agente, sejam potencialmente lesivos e tenham vínculo direto de causalidade com o resultado típico planejado. Apesar de não apresentar fórmula certa para solucionar todas as hipóteses legalmente possíveis, é o critério mais aceito pela doutrina, funcionando como um princípio geral orientador.

2.8. Desistência voluntária e arrependimento eficaz

2.8.1. Conceitos

Diz o art.15 do Código Penal, in verbis: "o agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados". Iniciada a execução do delito, pode acontecer de o resultado almejado não se concretizar em decorrência de conduta voluntária e eficaz do próprio agente executor, provocada por motivos psicológicos autônomos (não necessariamente éticos ou morais), que não sejam considerados causas de impedimento obrigatório de prosseguir na execução. É hipótese de desistência voluntária, se os atos de execução constituíram tentativa inacabada; e de arrependimento eficaz, se evidenciaram a tentativa perfeita, sendo, em ambas, o resultado evitado com sucesso, sponte sua.

2.8.2. Fundamentos à impunidade

A teoria da política criminal sustenta a exclusão da punibilidade na desistência voluntária (ou no arrependimento eficaz), com base em uma ponte de ouro, criada pelo legislador, para que o agente pudesse voltar à esfera do direito. A exclusão da pena seria o estímulo a evitar o resultado. Na teoria da graça, a exclusão da punibilidade funciona como recompensa pela conduta voluntária de desistência (ou de arrependimento), impeditiva da consumação do resultado, sendo o agente merecedor do perdão. E tem a teoria dos fins da pena, que considera a punição do agente que evitou o resultado, por vontade própria, contrária ao fins de prevenção geral e especial da pena.

2.8.3. Natureza jurídica.

Segundo um juízo de subsunção do fato, em face do tipo do art. 15 do CP, o agente que voluntariamente desistiu ou ativamente arrependeu-se de continuar a empreitada criminosa planificada, evitando a consumação do respectivo tipo penal objetivo, torna-se impunível pela tentativa do crime em si, sujeitando-se, tão-só, à punibilidade pelos atos de execução realizados.

Surgem as controvérsias em torno de qual seja a natureza jurídica do ato de desistência voluntária (ou do arrependimento eficaz), de autoria do agente executor, que evita a consumação do resultado.

Damásio considera tais atos como causas de exclusão da adequação típica. Afirma que "(...) quando o crime não atinge o momento consumativo por força da vontade do agente, não incide a norma de extensão (...)", sendo, portanto, "(...) os atos praticados não típicos em face do delito que pretendia cometer". A ocorrência de circunstâncias externas, alheias à vontade do agente, é elementar do tipo de tentativa. Em sua ausência, o fato é atípico diante da norma ampliativa da tipicidade. Todavia, em face do princípio da consunção, tais atos serão puníveis se relevantes ao direito penal, por caracterizar a tentativa qualificada: a norma consuntiva (definidora da tentativa), tornando-se inaplicável, faz restaurar a aplicabilidade autônoma do preceito primário antes consumido aos atos praticados que, porventura, ensejem a punibilidade. Segundo ele, a atipicidade é extensiva aos atos do partícipe, cuja conduta é acessória ao fato principal imputado ao agente. Frederico Marques participa do mesmo entendimento.

Heleno Fragoso também afirma que "(...) não há tentativa, porque o resultado deixa de ocorrer em virtude da vontade do agente". Defende que o agente responderá "(...) pelos atos já praticados, se os mesmos configuram qualquer delito consumado". Em sua opinião, "não se trata de escusas absolutórias nem de causas de extinção da punibilidade", pois "a tentativa estende a tipicidade a atos que constituem realização incompleta do tipo objetivo". Na hipótese, "(...) inexiste crime por ausência de tipicidade". Não obstante, diverge da posição doutrinária dos já citados juristas, se houver concurso de pessoas: a desistência ou o arrependimento do agente executor não exclui a punibilidade da tentativa dos partícipes. Se o arrependimento advier do autor mediato ou do partícipe, "(...) só ficarão impunes se o executor também se arrepender ou se impedirem que o resultado se produza". Ressalta que a desistência beneficiará ao co-autor ou partícipe que "(...) anular integralmente a sua contribuição à empresa comum".

Na mesma linha de raciocínio, Cezar Roberto Bittencourt: "na desistência voluntária e no arrependimento eficaz inexiste a elementar "alheia à vontade do agente", o que torna o fato atípico, diante do preceito definidor da tentativa". Advoga não serem causas de extinção da punibilidade, por não ter havido causa de punibilidade (a tentativa), que, indispensavelmente, deveria antecedê-las.

Com entendimento diametralmente oposto, ensina Nelson Hungria: "(...) trata-se de causas de extinção de punibilidade (...), ou seja, circunstâncias que, sobrevindo à tentativa de um crime, anulam a punibilidade do fato a esse título. Há uma renúncia do Estado ao jus puniendi (...), inspirada por motivos de oportunidade". No mesmo sentido se posiciona Magalhães Noronha.

Zaffaroni leciona ser impossível o ato de desistir ou de se arrepender "(...) ter a virtualidade de tornar atípica uma conduta que antes era típica" ou "(...) extinguir a reprovabilidade de parte da conduta já realizada". Para ele, a desistência voluntária (e o arrependimento eficaz) funciona como causa pessoal que extingue a punibilidade do crime, sem, contudo, beneficiar aos partícipes, salvo se estes, voluntariamente, também desistirem.

Alberto Silva Franco posiciona-se como sendo "(...) causas inominadas de exclusão da punibilidade (art.107 do CP), que têm por fundamento razões de política criminal".

Paulo José da Costa Jr. entende que a impunidade do agente de sustenta na escusa absolutória ou causa pessoal de isenção de pena. Se, após a desistência, os atos executados tornaram-se atípicos, já não o eram antes. Para que a impunidade recaia sobre partícipes, mister que eles "(...) desistam ou se arrependam eficazmente".

Sobre o autor
Renato Rodrigues Gomes

Procurador da Fazenda Nacional em Nova Friburgo-RJ e Mestre em Direito Público pela UERJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Renato Rodrigues. A natureza jurídica da "desistência voluntária" e do "arrependimento eficaz".: Uma questão de interpretação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 145, 28 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4510. Acesso em: 22 nov. 2024.

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