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O devido processo administrativo e a desapropriação por utilidade pública:

necessidade de releitura do Decreto-lei 3.365/41 à luz da CF/88

Agenda 21/12/2015 às 17:12

O decreto de desaproriação por alegada utilidade pública deve ser objeto de prévio processo administrativo, com participação contraditória do desapropriando, sob pena de nulidade.

A desapropriação fundada em declaração de utilidade pública é regulada pelo Decreto-Lei nº 3.365/41, e prevista na Constituição Federal de 1988. Não raras as vezes o instrumento da desapropriação, abstratamente justificado pela supremacia do interesse público, tem sua utilização indevidamente impulsionada em desvio de finalidade para satisfazer a interesses ilegítimos de perseguição a adversários políticos. Portanto, é plenamente justificada a releitura do referido Decreto-Lei a partir do contexto constitucional vigente.

Por força de imperativo constitucional, com apoio na doutrina e em precedentes judiciais no Supremo Tribuna Federal, a desapropriação por utilidade pública deve transitar em dois diferentes e necessários momentos: um processo administrativo e um processo judicial. Em ambos deve haver irrestrito respeito ao direito fundamental do devido processo legal (CF, artigo 5º, inciso LIV), em especial com necessária observância do contraditório e da ampla defesa (CF, artigo 5º, inciso LV), sob pena de nulidade absoluta do ato administrativo.

Eis que essas diretrizes constitucionais, em muitos casos de desapropriação por alegação de utilidade pública, são flagrantemente violadas pela aplicação de forma literal de dispositivos do Decreto-Lei 3.365 de 1941 (no meio do Autoritário "Estado Novo"), com a edição de decretos desapropriatórios sem prévio processo administrativo a justificar a desapropriação. Aliás, em alguns casos, o desapropriando sequer é comunicado da intenção de desapropriação, tem seu nome omitido do decreto desapropriatório e se surpreende já com a citação para responder a ação judicial de desapropriação que, nos termos literais do Decreto-Lei 3.365/41, não comporta a discussão das razões da desapropriação, mas tão somente discussão de valores. Aliás, pelos termos do referido Decreto-Lei, o desapropriando já pode ser surpreendido com uma imissão provisória na posse em favor do ente desapropriador.

O consagrado jurista Manoel de Oliveira Franco Sobrinho, na clássica obra “Desapropriação” (FRANCO SOBRINHO, 1977, p. 130), um notório tratado sobre o instituto da Desapropriação, apresenta fundamentos garantistas da essencialidade do processo administrativo para a complementação positiva do ato na esfera judiciária.

Isso porque o processo administrativo prévio é que dará o necessário embasamento técnico e sistemático à declaração administrativa, sendo imprescindível para formação da justificativa para excepcionar o fundamental direito de propriedade. Pensar diferente é autorizar ao administrador agir arbitrariamente sob um texto raso de falsa aparência de legalidade. Num Estado Democrático de Direito, garantidor de direitos fundamentais, o administrador público é obrigado a justificar de forma proporcional e com motivação real atos de exceção ao direito de propriedade, para o que se torna imperioso um processo administrativo com respeito ao contraditório e à ampla defesa.

“Não havendo, portanto, processo administrativo anterior regular e condicionado ao que exige o fato e a lei, a declaração poder-se-á tornar viciada, imprecisa, inconclusa, fora do rigor e da sistemática, violadora de um direito inspirado na mais ampla tradição histórica.

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É preciso, sem dúvida, algo mais: que a declaração de vontade venha a corresponder a um fato processual-administrativo pelo qual a autoridade expropriante justifique ou possa justificar depois, a ação judicial. Como qualquer tipo tradicional de processo administrativo, o desapropriatório, possui o seu rito próprio e especial, os seus termos regulares, a sua vida afirmada em normas definidoras, em torno do que objetiva. Baixado o ato, conhecida a declaração, os direitos, necessariamente, se ativam de ambas as partes. E por essa razão muito simples precisam ser coordenados, ordenados nos trâmites até acontecer o acordo ou o desajuste de vontades.”

(FRANCO SOBRINHO, 1977, p. 131)

Eis que a declaração de utilidade pública não é o fim do ato administrativo. Deve ser fundamentalmente o início de um processo administrativo tendente à demonstração de existência concreta dos fundamentos da desapropriação e, também, a base para o consenso das partes na formulação de acordo administrativo ou a justificativa de intervenção judicial para desapropriação forçada. “Daí a importância fundamental do processo administrativo para a complementação positiva do ato na esfera judiciária” (FRANCO SOBRINHO, Manoel de Oliveira, 1977, p. 130).

Ora! Se até a aplicação de uma multa por excesso de velocidade na condução de veículo automotor com comprovação documental de registro de radar homologado pelo Contran exige um processo administrativo com respeito ao contraditório e à ampla defesa, como excluir essa fase administrativa de uma declaração de autoridade com finalidade de pôr termo ao direito fundamental de propriedade? E pior, ainda afirmar que na ulterior ação de desapropriação a ser movida pelo ente público o desapropriando não poderá discutir a legitimidade dos motivos invocados no decreto de desapropriação.

Mais que uma questão de lógica, é uma questão de necessário e irrestrito respeito aos direitos fundamentais expressos na Constituição Federal. A Constituição Federal, mesmo documento que estrutura o Estado brasileiro e outorga poderes às autoridades, limita o poder estatal e estabelece direitos fundamentais, dentre os quais o de propriedade. O texto é cartesianamente claro: “é garantido o direito de propriedade” (CF, artigo 5º, inciso XXII). Desafio a qualquer autoridade pública a dizer que não deseja o respeito à propriedade. Todas as querem resguardar. A desapropriação, portanto, é medida de extrema excepcionalidade e deve ser justificada de forma concreta.

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Nas palavras de José Antônio Pimenta Bueno, “a propriedade real, assim como a intelectual e moral, tem a sua origem na natureza, e é sagrada, porque é o fruto dos esforços, fadigas e sacrifícios do homem” (apud FRANCO SOBRINHO, 1977, p. 107). A garantia da propriedade e o respeito a ela é indissociável do Estado Democrático de Direito, por todas as razões, sejam pessoais, econômicas ou políticas. É um anseio e uma conseqüência dos povos livres, um verdadeiro alicerce da liberdade.

Por tal razão natural, nosso texto constitucional impõe que: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (CF, artigo 5º, inciso LIV). Ocorre que o devido processo legal exige uma fase prévia de interação do desapropriando (interessado imediato) na fase de formação da justificativa da declaração de utilidade pública.

A declaração de utilidade pública para fins de desapropriação não é um ato absoluto que se encerra em si mesmo. Como já demonstrado, deve ser apenas o início de um processo administrativo que oportunize a participação do desapropriando, a fim de apresentar a ele a justificativa no contexto da proporcionalidade e da realidade, para compor o acordo ou o desacordo, sendo necessário para formar a justa causa à ação de desapropriação.

Pensar diferente é transformar o conceito de discricionariedade administrativa em manto de proteção absoluta à arbitrariedade disfarçada numa rasa e falsa declaração com aparência de legalidade. Não basta declarar, é imperioso comprovar a existência dos motivos determinantes do ato. E, para tanto, imprescindível o processo administrativo.

“Por esse motivo, de sistema e de regime, foi que Eurico Sodré, ao seu tempo, e com acerto, defendia dizendo: 'A declaração não desapropria”. E por que não desapropria? Porque, apenas indica a desapropriação, dando-lhe concretamente, aquilo que a lei prevê ou estabelece, através, portanto, de um processo próprio, peculiar, característico e sumário, em razão dos fins que se impõem. Daí a importância fundamental do processo administrativo para a complementação positiva do ato na esfera judiciária”.

(FRANCO SOBRINHO, 1977, p. 130)

Essa é a única interpretação coerente e possível do Decreto-Lei 3.365/41 para com o sistema constitucional em vigência no Brasil após 1988. Interpretar diferente seria ofender ao contraditório e à ampla defesa. Afinal, se não se discute o mérito do ato administrativo na Ação de Desapropriação (nos termos dos dispositivos legais de referido Decreto-Lei), devendo ser de iniciativa do Desapropriando tal discussão, por meio de “ação direta”, como poderá o Expropriado fundamentar sua “ação direta” adequadamente se não tiver acesso ao real contexto em que o texto desapropriatório foi escrito? A existência de um prévio processo administrativo é que dará bases para que o Desapropriando possa adequadamente questionar a proporcionalidade e a realidade do motivo indicado no ato desapropriatório, por meio de “ação direta”. A existência do justificador processo administrativo é, por seu turno, o que tornará o contraditório judicial possível, garantindo-se, assim, o necessário devido processo legal na perda de seu bem. Dizer, portanto, que a mera declaração expropriatória basta, e que a única discussão possível é sobre o valor, é tornar nulo direitos fundamentais declarados pela Constituição Federal de 1988.

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, em decisão unânime do Plenário, já utilizou esse raciocínio para, em sede de Mandado de Segurança, anular Decreto desapropriatório de Presidente da República. Vejamos a Ementa:

“DESAPROPRIAÇÃO. Interesse social. Reforma Agrária. Imóvel rural. Levantamento de dados e informações. Vistoria. Prévia comunicação escrita ao proprietário, preposto ou representante. Elemento essencial do devido processo da lei (due process of law). Inobservância. Proprietários cientificados apenas no dia de início dos trabalhos da vistoria. Comunicação anterior recebida por terceiro. Nulidade do decreto reconhecida. Ofensa a direito líquido e certo. Segurança concedida. Aplicação do art. 2º, §2º, da Lei nº 8.629/93, cc. art. 5º, LIV, da CF. Precedentes. É nulo o decreto expropriatório de imóvel rural para fim de reforma agrária, quando o proprietário não tenha sido notificado antes do início dos trabalhos de vistoria, senão no dia em que esses tiveram início, ou quando a notificação, posto que prévia, não lhe haja sido entregue pessoalmente, nem a preposto ou representante seu”.

(SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tribunal Pleno. Relatoria do Ministro Cezar Peluso. Mandado de Segurança nº 23.856/MS. Julgamento em 02/06/2004.)

Não obstante naquela modalidade de desapropriação analisada pelo STF [interesse social] o regramento infraconstitucional prever expressamente a comunicação prévia, os Ministros do STF, em seus votos, foram taxativos em afirmar que a comunicação para participação de processo administrativo anterior ao processo judicial de desapropriação constitui elemento fundamental do devido processo legal. Sendo assim, resta refutada eventual argumentação contrária de que o Decreto-Lei 3.365/41 não fala expressamente em contraditório administrativo, pois o comando decorre diretamente da cláusula constitucional do devido processo legal que, como sabido, traz em si também o aspecto substancial.

Merece registro trecho do voto do Ministro Relator Cesar Peluso, no julgamento em comento:

“tais requisitos [comunicação prévia aos trabalhos administrativos e entregue diretamente ao proprietário ou representante legal] compõem, como elementos essenciais, a estrutura do justo processo da lei (due process of law), a cuja rigorosa observância, em resguardo de direito fundamental, a Constituição da República submete a licitude de todo ato que importe subtração de qualquer bem jurídico ao cidadão (art. 5º, LIV e LV).

A razão dessas exigências, pouco menos que óbvia, é porque o efetivo recebimento da notificação atende, a um só tempo, à necessidade de dar ao proprietário ciência da data de ingresso de técnicos do INCRA no imóvel e facultar-lhe acompanhar, por si ou por outrem, a vistoria e o levantamento dos dados físicos da coisa, aparelhando-se para exercer os poderes do contraditório e da ampla defesa, em juízo ou fora dele, em tutela do direito de propriedade, com eventual desapropriação arbitrária, abusiva, ou, enfim, de qualquer modo avessa ao ordenamento”.

(MINISTRO STF CESAR PELUSO. Relator do Mandado de Segurança nº 23.856/MS julgado procedente à unanimidade pelo Plenário com invalidação do Decreto desapropriatório. Trecho do Voto do Relator. Julgamento em 02/06/2004)

Após, o referido ministro citou mais de uma dezena de julgados do STF no mesmo sentido, mostrando ser a posição histórica, pacífica e firme do Supremo Tribunal Federal.

Por tais razões legítimas e consistentes, somos de parecer que um decreto de desaproriação por alegada utilidade pública deve ser objeto de prévio processo administrativo, com participação contraditória do desapropriando, sob pena de nulidade.


REFERÊNCIA:

FRANCO SOBRINHO, Manoel de Oliveira. Desapropriação. 2 ed. São Paulo: Resenha Universitária, 1977.

Sobre o autor
Wantuil Luiz Cândido Holz

Mestre em Direito pelo Centro Universitário Fluminense (RJ). Especialista em Gestão Pública pela Universidade do Estado da Bahia (BA). Bacharel em Direito pela Universidade de Vila Velha (ES). Professor de Direito da Faculdade Católica Dom Orione (TO). Advogado. E-mail: wantuil.holz@gmail.com

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HOLZ, Wantuil Luiz Cândido. O devido processo administrativo e a desapropriação por utilidade pública:: necessidade de releitura do Decreto-lei 3.365/41 à luz da CF/88. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4555, 21 dez. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45136. Acesso em: 7 nov. 2024.

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