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Intercessões entre Direito e literatura:uma análise do conceito de culpabilidade através da personagem Capitu, de Machado de Assis

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Agenda 28/12/2015 às 10:24

O estudo do Direito associado a matérias como: sociologia, antropologia, filosofia, história, psicanalise e literatura assumem características libertadoras. Assim, a interdisciplinariedade entre o Direito e Literatura faz-se de suma importância.

Resumo:A concepção moderna do estudo jurídico visa uma perspectiva social humanista, em que a aplicação do Direito está pautada em uma visão plural e democrática, mitigando o dogmatismo e o normativismo exacerbado. O estudo do Direito associado a matérias como: sociologia, antropologia, filosofia, história, psicanalise e literatura assumem características libertadoras. O presente trabalho tem por objetivo analisar a importância da relação existente entre a interdisplinariedade do Direito com a Literatura. Tal associação possibilita a reflexão sobre temas que interessam a sociedade e ao Direito sob diferentes perspectivas.  Essas interseções serão  feitas partindo da análise da concepção de culpa da personagem Capitu, de “Dom Casmurro”, obra de Machado de Assis. O presente trabalho tem como objetivo , através do método dialético , analisar o conceito de culpabilidade , que sempre foi alvo de controvérsias, no direito e na psicanalise. Assim, apreciaremos a sua concepção para o âmbito jurídico e a sua acepção na psicanalise; tendo como base as observações feitas pelo personagem Bentinho.

Palavras chave: Direito, Literatura, Psicanalise, Culpabilidade.

ABSTRACT:Modern Design Study A Legal seen social humanist perspective in one que Law Enforcement IS guided by a plural vision and Democratic , mitigating dogmatism and exacerbated normativism. The study of law associated with subjects such as sociology, anthropology, philosophy, history, psychoanalysis and literature assume liberating features. This study aims to analyze the importance of the relationship between the interdisplinariedade between law and literature. This association allows reflection on topics of interest to society and law from different perspectives. These intersections will be made based on the analysis of the design character of guilt Capitii of "Don Casmurro ," Machado de Assis work . This work aims , through the dialectical method , analyze the concept of guilt , that has always been the subject of controversy in the law and psychoanalysis . So appreciate its design to the legal framework and its meaning in psychoanalysis ; based on the observations made by Bento character

Key words : Law , Literature, Psychoanalysis , Guilt


1.Introdução

O estudo do Direito na modernidade possui como premissa uma perspectiva social humanista, em que a aplicação da jurisdição deve ser pautada em uma visão plural e democrática, mitigando o dogmatismo e o normativismo exacerbado.

A analise jurídica associada a matérias como: sociologia, antropologia, filosofia, história, psicanalise e literatura assume posição libertadora, visto que, desempenha papel fundamental ao permitir uma percepção distinta do Direito. Nesse diapasão o presente trabalho tem por objetivo mostrar a importância da relação existente entre a interdisplinariedade do Direito com matérias distintas; como a Literatura e a Psicanalise.

A perspectiva de interdisciplinariedade possibilita a reflexão sobre temas que interessam a sociedade e, consequentemente, ao Direito sob enfoques distintos  .  Tal intercessão será realizada, através do método dialético, fazendo analise dos aspectos históricos que ensejaram na discussão do Direito associado à Literatura, observando essa transdisplinariedade , essencialmente na obra Dom Casmurro de Machado de Assis.

Tal analise literária terá como enfoque a concepção de culpablidade da personagem Capitu. O conceito de culpabilidade sempre foi alvo de controvérsias, assim apreciaremos a sua concepção para o âmbito jurídico e a sua acepção na psicanalise; tendo como base as observações feitas pelo personagem Bentinho.


2.Direito e Literatura.

A atual concepção de estudo jurídico está embasada em uma perspectiva humanista que visa a aplicação do Direito segundo uma concepção plural e democrática, mitigando o dogmatismo e o normativismo exacerbado. Diante desse novo paradigma jurídico, tornou-se evidente a importância da transdiciplinariedade, que busca a utilização de diversos ramos do conhecimento para a construção de um modo de pensar organizado, que atravessa as disciplinas visando uma unidade intelectual.

 Dessa maneira, para real efetivação do conhecimento jurídico, faz-se necessário intercessões entre o Direito e os diversos ramos do saber, como: a filosofia, a sociologia, a antropologia, a arte, o cinema, a música, a psicanalise e a literatura. Nesse sentido,  elucida Venosa (2006, p.7):

O desconhecimento de ciências, com estreitas relações com o direito, muito contribuiu para a perda do papel social que desempenhou o jurista até os anos 60, para a qual concorreu também a crise do ensino jurídico, divorciado das demais ciências sociais, destinada exclusivamente a formar profissionais eficientes, “doutores em leis”, então juristas.           

Perante tal perspectiva, a relação existente entre o Direito e os diversos ramos do conhecimento possui um caráter emancipador, sendo de suma importância o papel da Literatura nesse contexto. Dworkin (2000) vislumbrou semelhanças entre o Direito e a Literatura, sustentando que a prática jurídica é o perene exercício de interpretação, a exemplo da descoberta de significado dos textos, postula as atitudes jurídicas.

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A interpretação surge com intuito de interferir, completar e colmatar, ela cria o texto, do mesmo modo que dá gênese e vida ao Direito. Leituras possibilitam procedimentos hermenêuticos que revelam reservas de sentido, descortinando a vida real de enredos, através da análise da linguagem e da Literatura. Gadamer (1997, P. 261-262) apreende essa dimensão da linguagem, da escrita e da narração da Literatura e explicita que:

“o modo de ser da literatura tem algo de peculiar e incomparável, e impõe uma tarefa muito específica ao ser transformada em compreensão... Não há nada que represente uma marca tão pura do espírito como a escrita, e nada está tão absolutamente vinculado ao espírito compreendedor como ela... Quem sabe ler o que foi transmitido por escrito atesta e realiza a pura atualidade do passado.’’

A Literatura possui a finalidade de promover a compreensão dos fatos sociais, o indivíduo que sabe interpretar o que foi escrito tem a possibilidade de entender o que foi realizado no passado e transmitir para atualidade.  Dessa maneira, ela representa um grande auxilio ao Direito, visto que pode ser utilizada como meio de auxiliar aos juristas na transformação do Direito material ao Direito fático.  Através dos textos literários também é possível inferir as questões socialmente relevantes, nesse sentido aduz Godoy (2003, p. 134):

A tradição literária ocidental permite abordagem do Direito a partir da arte, em que pese a utilização de prisma não-normativo. Ao exprimir visão do mundo, a Literatura traduz o que a sociedade pensa sobre o Direito. A literatura de ficção fornece subsídios para compreensão da Justiça e de seus operadores.

Nesse mesmo sentido Siqueira (2011, p. 35) elenca que:

A valoração intrínseca a qualquer construção linguística, imbuídas de significações e carga descritiva, leva à inevitável constatação de que o direito é, essencialmente, interpretação. A análise do direito a partir dessa perspectiva resgata-o de seu isolamento frente a outros campos de conhecimento e o coloca numa perspectiva de contínua narratividade, determinada pela transição jurídica e social de suas significações.

Assim, a análise do Direito partindo da sua intercessão com a Literatura permite uma perspectiva distinta de sua aplicação, uma vez que possibilita a ele interagir com outros campos do conhecimento, ensejando em uma transição dos anseios sociais para o universo jurídico.


3.Aspectos históricos das intercessões entre Direito e Literatura.

A interação entre o estudo do Direito e da Literatura ganhou relevância a partir da década de 60, nos Estados Unidos, com o surgimento de um movimento conhecido como Law and Literature. Ele visava à utilização dessa comunicação de matérias como ferramenta do Direito, por meio de análises em variados gêneros literários, visto que as histórias são permeadas de elementos culturais, aspectos relativos à história civil, conflitos inerentes aos seres humanos, podendo, assim,  ser utilizada como material para pesquisa jurídica. Segundo Siqueira (2011, p. 36):

“Essa proposta surgiu como uma das várias tendências antipositivistas do mais amplo movimento “direito e sociedade”, atuando na formação do profissional do direito de forma a resgatar aspectos humanísticos de que as carreiras jurídicas se afastaram. A centralização do direito no positivismo kelseniano levou à redução gramatical de seus enunciados e à análise estritamente sintática e semântica de suas normas, tornando-o incapaz de atender as demandas sociais postas ao direito. ”

Após esse período, as intercessões entre Direito e Literatura perdem o aspecto civil do Direito e a pesquisa é direcionada para a Sociologia do Direito, desse modo os textos literários podem ser utilizados como fonte sociológica, visto que estavam expressos no Direito, esse, que nasce de acordo com as relações sociais vigentes. A análise dos textos literários nesse período possuía um sentimento jurídico segundo o contexto social.

Pode-se destacar ainda a produção de vários artigos e eventos em que reuniam-se trechos de obras literárias. Nesse diapasão, Trindade (2008) elenca que as sentenças e leis possuem como objetivo demonstrar que Direito é um sistema cultural do qual participam a imaginação e a criatividade literária, como componentes da racionalidade jurídica.

Ost (2005) defende a Literatura como fonte de libertação para os caminhos disponíveis ao indivíduo frente à realidade codificada do Direito. Apesar das ciências jurídicas e da Literatura descreverem as relações humanas, a Literatura o faz livre das amarras impostas pelo tecnicismo e dogmatismo do Direito. A liberdade formal e material de que goza a arte literária pode ser utilizada como força renovadora ao Direito.  Tal renovação pode ser expressa através do choque existente entre a narrativa jurídica e a literária, possibilitando uma discussão relevante sobre questões essenciais ao Direito como: as leis, a ordem social, o poder ou a análise de conceitos que geram divergências como o de culpa.

Como elenca Siqueira (2011), inúmeras foram os estudos acerca da interseção entre Direito e Literatura: a literatura como instrumento de mudança do direito, hermenêutica, o direito como literatura, direito da literatura, direito e narrativa, apenas para citar alguns.

Dentre todas as maneiras idealizadas de analisar as intercessões entre o Direito e a Literatura, é de suma importância observar o direito na Literatura, em um viés que  examina a importância de personagens marcantes ; como Capitu da obra “ Dom Casmurro” de Machado de Assis e a análise de conceitos complexos para o Direito como o de culpabilidade . 

Assim, faz- se mister examinar tais intercessões, refletindo sobre a concepção de culpabilidade através da personagem Capitu, a dona dos olhos de cigana obliqua e dissimulada, sob um viés jurídico e psicanalítico; visto que por muito tempo subsiste no imaginário dos leitores de Machado de Assis a dúvida cruel da possível traição a Bentinho.


4.Capitu, culpada ou inocente?

As obras de Machado de Assis são divididas em duas fases: A primeira fase (fase romântica) e a segunda fase (realista), que é considerada a melhor de sua carreira, pois, destaca questões psicológicas dos personagens deixando transparecer as características do realismo literário.

Na fase Realista, Machado faz uma análise profunda do ser humano, destacando suas vontades, necessidades, defeitos e qualidades, observando o espirito humano e refletindo sobre seus valores. Nessa fase as suas principais obras são: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1892) e Dom Casmurro (1900).

Dom Casmurro é considerada uma obra prima da literatura brasileira, não apenas pela genialidade, aspecto inerente aos textos machadianos, mas por apresentar com minucia características da alma humana e dispor de assuntos relevantes para a sociedade, como a concepção de culpabilidade.  Nesse sentido elenca Silva (2009, p. 50):

“Dom Casmurro não se trata de uma mera reprodução dos costumes de uma época. Além de trazer as contradições do mundo social do século XIX, o texto extrapola essas questões, abordando temas como a passagem do tempo, a consciência da finitude das coisas, o amor, a amizade, a dúvida da traição e também o trágico, tudo isso sem abrir mão da ironia e da comicidade Machadiana.”

A narrativa é contada em primeira pessoa, por um dos personagens principais Bento Santiago, carinhosamente chamado de Bentinho e,  também apelidado de Dom Casmurro. O narrador relata a sua história de amor por Capitolina (Capitu), desde a grande descoberta na adolescência até o seu trágico e realista fim. Capitu, a dona dos “olhos de cigana obliqua e dissimulada”, é a personagem principal ficando Bentinho, o narrador, como personagem secundário ao lado dos vários outros personagens como Escobar o antagonista.

Toda a história gira em torno da possível traição de Capitu a Bentinho com o seu melhor amigo Escobar. Sucessivos acontecimentos levam o Dom Casmurro crer que a  esposa havia o traído, são eles: a semelhança existente entre o filho de Bentinho e Capitu com o então amigo Escobar, que é expresso no trecho :

“ Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele; havia por força alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel. De boca, porém, não confessou nada; repetiu as últimas palavras, puxou do filho e saíram para a missa. (ASSIS, 1947, p. 411)”

Outro acontecimento que leva Bentinho a crer na possibilidade de ter sido alvo da infidelidade de Capitu foram as duas vezes em que Escobar vai à residência do casal, na ausência de Bentinho. Tais visitas, ao mesmo tempo, não provam nada ou no imaginário do ciumento Casmurro induzem a tudo, principalmente quando Capitu se vê obrigada a contar para o marido sobre a primeira visita do amigo e comenta: "Pouco antes de você chegar; eu não disse para que você não desconfiasse". Desconfiasse do quê? Certamente Capitu já conhecia o ciúme do marido e não queria provocá-lo.

Na segunda ocorrência, Bentinho, ao retornar de uma ópera, encontra Escobar no corredor de sua casa, de saída. Como desculpa o amigo lhe apresenta um motivo jurídico importante, no entanto, para Bento não havia nenhuma dificuldade no caso. Fazendo-o questionar os motivos que ensejaram a Capitu não querer acompanhá-lo ao espetáculo, que sob alegação de estar acometida de um mal insiste para que ele fosse sozinho. No entanto, quando retorna para casa encontra com Escobar e constata que a esposa havia melhorado. 

Outro aspecto da narrativa  que é utilizado por Bentinho a crer na possibilidade da traição foi à maneira como Capitu reagiu à morte de Escobar:

“ Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas... As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã. (ASSIS, 1947, p. 374)”

O cerne da obra é o ciúme e a insegurança por parte de Bentinho apesar de o leitor ficar sem saber se Capitu é de fato, inocente ou culpada. Machado de Assis nos convida  a participar da obra e interpreta-la segundo nosso próprio julgamento: “É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas” (ASSIS, 1947, p. 75 ).

Nesse sentido, o leitor passa a ser figura ativa dentro do livro, começa a pertencer  a narrativa, torna-se juiz de Capitu e decreta em seu imaginário se ela seria culpada ou inocente pelo adultério. Assim, a concepção da culpabilidade de Capitu deve ser analisada.  Para  Endres (2000, p. 15 )

As conclusões tiradas por Bentinho quanto à culpabilidade de Capitu são baseadas nas especulações mas poderiam igualmente ser fundadas na natureza humana de questionar e tirar conclusões apesar da relatividade destas. Pode ser observada as seguintes conclusões: Primeiro, que Ezequiel é filho de Escobar e não o seu; segundo, que Escobar teve relação amorosa com Capitu; terceiro, que Capitu “confessou” involuntariamente; quarto, que Capitu ama Escobar; quinto, que Capitu não ama Bentinho, e finalmente que Capitu e Escobar são infiéis e espertíssimos.

A concepção de culpabilidade advém de uma noção pessoal de censura. O termo “culpado” trás uma carga axiológica negativa, visto que, refere-se a um juízo de reprovação que se faz ao autor do fato. Analisaremos, assim, tal perspectiva.

Sobre a autora
Betânia Gusmão Mendes

Advogada sócia do escritório Mota & Gusmão. Graduada em Direito pelas Faculdades Santo Agostinho, Montes Claros- MG.

Informações sobre o texto

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