7. Infungibilidade jurídica
Em remoto passado, repita-se, imperou a idéia de ser inadmissível a substituição da vontade omitida por ato judicial, isto porque, se tal fosse possível, flagrante seria a agressão à liberdade do promitente. No caso, só restaria ao outorgado promitente comprador postular perdas e danos.
Essa corrente cedeu à crítica de CHIOVENDA [24] e, entre nós, do ensaio de LUIS EULÁLIO BUENO DE VIDIGAL [25], demonstrando se tratar, no caso, de infungibilidade jurídica e não material, o que facultaria ao órgão jurisdicional sub-rogar a vontade faltante. Afinal, bastaria que o Estado captasse a vontade originária do figurante inadimplente, no sentido de concluir o contrato, já que livre e eficazmente emitida no pactum de contrahendo.
Tal efeito é exclusivamente jurídico. A incolumidade física do executado permanece protegida. Tudo se passa no mundo jurídico, no primeiro momento, e no plano da eficácia. A sentença, que sub-roga a renitente volição do obrigado, não o compele a manifestá-la manu militari porque, simplesmente, dela prescinde, gerando no mundo jurídico consequência idêntica à declaração espontânea. A execução vem depois e nos atos materiais de cumprimento do julgado, como assinala ARAKEN DE ASSIS [26], lembrando sempre que o provimento de substituição da vontade do compromitente é simples exemplo e espécie do gênero mais amplo das obrigações de emitir declaração de vontade.
Se o gênero é de ações de obrigação de emitir declaração de vontade (artigos 639, 640 e 641 do Código de Processo Civil), temos inúmeras espécies ou nomen iuris de ações, cabendo destaque para a adjudicação compulsória de que trata o Decreto-lei 58 de 10 de dezembro de 1937; a remissão de imóvel hipotecado (art. 815 do Código Civil); a exoneração de fiança (art. 1.500 do Código Civil); o direito à quitação regular (art. 939 do Código Civil); a condenatória em prestar fiança ou a cumprir o comodato ou a locação, por força do contrato preliminar de compromisso; a prestação de caução coativa contra o obrigado, para que este a preste, sob pena de incorrer na sanção que a lei ou o contrato cominar para a falta (art. 830 do Código de Processo Civil), dentre outras ações.
Depois de assinalar que a parte interessada tem a faculdade de pedir a rescisão do contrato preliminar com a condenação do inadimplente em perdas e danos, MESSINEO, emérito professor da Universidade de Milão, já chamava atenção em ser mais freqüente a execução específica da obrigação e não a opção pelas perdas e danos:
Pero hay también (y será caso más frecuente), la possibilidad de provocar, mediante demanda judicial, el pronunciamiento de una sentencia especial que ocupe el lugar y produzca los efectos mismos del contrato definitivo no-concluso (sentencia llamada constitutiva (...): sentencia em la cual se concreta un caso de ejecución em forma específica (...); com el efecto de que la sentencia em cuestión (cuando pase em cosa juzgada) será también título para imponer ulteriormente, a la parte renitente, el cumplimiento de la prestación; y, especialmente, si la materia del contrato es la transferencia de um derecho real, la sentencia misma – en cuanto título ejecutivo – producirá (cuando sea ejecutada) la transferencia (coactiva) de ese derecho. [27]
Somente no caso de impossibilidade da execução in natura é que o credor se verá forçado a contentar-se com a indenização das perdas e danos. Tanto num como no outro caso, se socorre o interessado do poder jurisdicional, exercendo a actio.
8. Adjudicação compulsória. Conceitos.
Cumpre distinguir a adjudicação como ato jurídico ou administrativo da adjudicação compulsória como ação.
O vocábulo adjudicação, que se originou da adjucatio latina, tem extenso campo de aplicação na área do direito.
No direito administrativo serve para qualificar como aceitável uma proposta de fornecimento de bens ou serviços para a administração pública, mediante contrato. No direito processual civil vamos encontrar o vocábulo de forma típica para designar o pedido coativo que faz o exequente, para que o juízo lhe transfira bens do patrimônio do devedor, em pagamento da obrigação (art. 647, II, e 708, II, do CPC), mediante depósito do preço ou reposição da diferença. De forma atípica, o vocábulo se encontra implicitamente nos arts. 639 e 641 do C.P.C., para designar o nomen iuris também da ação colocada à disposição do promitente comprador com contrato quitado e sem cláusula de arrependimento, visando uma sentença de reconhecimento do domínio, por força do inadimplemento da obrigação por parte do promitente vendedor. No âmbito do direito civil, mais precisamente no campo sucessório, o vocábulo adjudicação designa o pedido feito por cessionários ou herdeiros, também de transferência de bens, ora em decorrência da própria cessão de direitos hereditários ou de meação, ora em decorrência de pagamento de despesas feitas por herdeiros ou sucessores, no curso do inventário ou arrolamento.
9. A adjudicação compulsória no direito brasileiro
Quando da instituição da adjudicação compulsória pelo Decreto-lei 58, de 10 de dezembro de 1937, o tema já não representava novidade.
O nosso sistema processual civil teve seu esboço com o Regulamento 737, que disciplinou normas para o processo comercial e contemplou a execução da sentença, a assinação de dez dias e a ação executiva. As normas processuais propriamente ditas foram recepcionadas pelo decreto 763, de 1890.
O Código de Processo Civil de 1939 distinguiu a execução de sentença da ação executiva. Aquela resultado de uma sentença condenatória proferida numa ação de conhecimento. Esta, de procedimento especial, ensejava execução por título extrajudicial, com um misto de conhecimento, por permitir defesa dentro dos próprios autos da execução.
A lei civil instrumental, desde a adoção do C.P.C. de 1939, já admitia a fungibilidade da obrigação constante de contrato preliminar, ao permitir o suprimento da declaração de vontade omitida por uma manifestação judicial equivalente (art. 1006 e §§).
A adjudicação compulsória decorre de um contrato de compromisso de venda e compra quitado, sem cláusula de arrependimento, com a recusa injustificada do promitente vendedor em outorgar o domínio sobre o bem objeto da contratação.
Conviveu-se durante longos anos com uma dupla exigência como condição de admissibilidade da ação de adjudicação compulsória: que a tutela só poderia ser concedida diante de obrigação não cumprida decorrente de contrato originário de loteamento registrado e, ainda, que tal contrato tivesse o prévio registro em títulos e documentos ou à margem do Registro Imobiliário, para que pudesse valer contra terceiros, isto é, para que tivesse eficácia erga omnes.
Houve acentuada evolução jurisprudencial e doutrinária, principalmente depois da instalação do novel Superior Tribunal de Justiça, dando dimensão maior a esse instituto, fazendo com que houvesse a admissão da adjudicação compulsória mesmo diante de imóveis não loteados, de bens móveis ou de semoventes e independentemente do registro em títulos e documentos. De ver-se que, com o advento do Código Civil de 2002, o registro passou a ser obrigatório, rompendo com a tradição jurisprudencial daquele sodalício.
Por outro lado, forçoso convir a natureza não condenatória da sentença que acolhe a adjudicação compulsória, não discrepando, esse conceito, do teor dos arts. 639 e 641 do Código de Processo Civil, o que, também, motivou a pesquisa.
A venda de terrenos a prestações e a crescente especulação imobiliária que já se sentia na época, acabou gerando o Decreto-Lei nº 58, de 10 dezembro de 1937, trazendo à baila a adjudicação compulsória como forma do Estado de substituir a vontade do devedor em mora, outorgando ao credor o título de domínio do imóvel objeto do contrato.
Considerável foi o avanço desse instituto ao longo do tempo. A evolução doutrinária e jurisprudencial acabou dinamizando ainda mais o instituto da adjudicação compulsória, premiando, acima de tudo, a autoridade do contrato.
Do início pífio da exigência prévia do registro do contrato preliminar, chegou-se à inexigência de registro; da impossibilidade da antecipação da tutela específica, chegou-se à permissibilidade de dita antecipação, ainda no início da fase cognitiva de conhecimento.
10. O instituto perante o vigente Código de Processo Civil
O Código de Processo Civil de 1973 aboliu a distinção entre execução de sentença e ação executiva, unificando as vias executivas, dando tratamento igualitário tanto para o título executivo judicial como para o extrajudicial. Forçoso convir que a condenação em obrigação de prestar declaração de vontade só advém de um título executivo. Logo, não há lugar para a "condenação" em obrigação de prestar declaração de vontade por título extrajudicial.
Redação dúbia mereceu os artigos 639 e 641 do Código de Processo Civil vigente. Esses dispositivos foram inseridos dentro do capítulo das obrigações de fazer e de não fazer, quando, a rigor, retratam ação de conhecimento.
Seria justificável a inserção da ação condenatória para prestar declaração de vontade pelo procedimento comum (sumário ou ordinário). Poderia ser objeto, aliás, da discriminação do inciso II, do art. 275 do Código de Processo Civil, que contempla ações típicas de procedimento sumário, sem prejuízo da conversão de rito, do sumário para o ordinário, como prevê a lei civil instrumental.
Malgrado estar a ação catalogada no capítulo das execuções, o certo é que se trata de ação de conhecimento, de natureza nitidamente constitutiva, a ensejar o procedimento comum, ou seja, sumário ou ordinário.
11. Objeto da declaração de vontade
A sub-rogação da vontade nasceu originariamente para contemplar os negócios jurídicos disponíveis, destacando-se os contratos de compromisso de venda e compra, a remissão de imóvel hipotecado, a exoneração de fiança, o direito à quitação regular etc.
Tratando-se de direitos indisponíveis, se revela inadequada a pretensão de se obter sentença substitutiva da vontade do promitente. Efetivamente, de que maneira sub-rogar o vínculo matrimonial, se o casamento é reunião de corpos que se amam? [28] De ver-se que somente efeitos materiais, como na promessa de casamento, escapam à ação contemplada no art. 639 do CPC.
Ressalva-se a possibilidade da obtenção da tutela contra a Fazenda Pública, mormente para obter o devedor a quitação regular.
O instituto da adjudicação compulsória nasceu inicialmente para contemplar bem imóvel. Ordinariamente, não há qualquer impedimento na utilização dessa ação para bens móveis ou semoventes.
Mas há que se fazer uma diferenciação. Tratando-se de bens imóveis o domínio se demonstra através do registro do título aquisitivo perante o Serviço Registral de Imóveis. No que se refere aos bens móveis, a prova do domínio se dá com a simples tradição.
Ora, o promitente comprador de bens móveis pode ter interesse jurídico na obtenção de sentença constitutiva, servindo o ato judicial como título de aquisição, independentemente ou não do registro administrativo. Sabe-se que há determinados bens móveis ou semoventes que se sujeitam a registro administrativo, sem que tal registro possa garantir, com eficiência, o domínio. É o caso do registro de transferência de veículos automotores na repartição de trânsito [29] e a expedição de nota de compra e venda de animais, notadamente bovinos, perante a repartição fazendária. De ver-se que, quando não há recusa na outorga ou transferência de domínio, na impossibilidade material do cumprimento do ato de vontade, tudo se resolve pelo procedimento de jurisdição voluntária, notadamente através de pedido de simples alvará. [30]
Embora exista um registro administrativo de transferência de bens móveis ou de semoventes, tais registros não provam, por si só, o domínio, já que este se demonstra pela simples tradição. Diante da recusa no cumprimento da vontade, só a atuação do órgão jurisdicional é capaz de documentar o domínio, através da sentença constitutiva.
Portanto, a sub-rogação de vontade originária de negócios jurídicos de bens móveis, imóveis ou semoventes pode se sujeitar a uma sentença constitutiva no processo de adjudicação compulsória ou em processo condenatório ou constitutivo de prestar declaração de vontade, quando o objeto da obrigação for pessoal, como na prestação de fiança ou na quitação da dívida, cujo comprovante de pagamento foi negado pelo credor.
Possível também a sub-rogação para alcançar direitos ou cessão de contrato, por não depender de ato material do promitente, mas de simples ato volitivo. Assim, os compromissos de cessão de contrato ou de cessão de direitos, comportam pedido de sub-rogação da vontade, desde que preenchidas as condições para o exercício do direito de ação. É o caso da recusa por parte do comprador de cotas sociais de empresa, em promover a competente alteração perante o Registro do Comércio. [31]
Outra hipótese de substituição da declaração de vontade é encontrada no art. 830 do Código de Processo Civil, que retrata a caução. Segundo aquele dispositivo, aquele em cujo favor há de ser dada a caução requererá a citação do obrigado para que a preste, sob pena de incorrer na sanção que a lei ou o contrato cominar para a falta.
Assim, excluídos os direitos indisponíveis ou atos que necessitam de efeitos materiais (como na promessa de casamento) ou físicos, todos os demais atos de vontade se sujeitam à substituição a que se refere o art. 639 do Código de Processo Civil.
12. Natureza jurídica da ação de adjudicação compulsória
A ação de adjudicação compulsória decorre de uma obrigação juridicamente infungível e descumprida.
A rigor a adjudicação compulsória representa o nomen iuris da ação prevista no Decreto-lei 58, de 10/12/1937, art. 16, com a redação dada pela Lei 6.014, de 27/12/73. Compete ao promitente comprador que pagou o preço mas teve a outorga de domínio recusada pelo promitente vendedor.
Na verdade, a ação do art. 639 do C.P.C. e a ação de adjudicação compulsória constituem a mesma ação. O que muda é o nomen iuris, o que, aliás, é irrelevante para o direito. O que importa é a presença dos elementos da ação (partes, pedido e objeto), afinal, "o direito à obtenção do contrato definitivo pertence à órbita do direito material e, neste campo, deve ser investigado e avaliado. O remédio jurídico processual, que eventualmente o veiculo, à toda evidência não lhe altera a dimensão outorgada naquele âmbito, nem modifica sua natureza real ou obrigacional. [32]
Quanto à tutela jurisdicional pretendida, a ação é de natureza constitutiva, já que a pretensão é de modificar uma relação jurídica, criando uma nova ordem.
Merece reflexão alguns temas relacionados à sub-rogação da vontade.
Há alguns anos, pelo menos três grandes correntes jurisprudenciais insistiam na defesa das seguintes posições: a) inviabilidade da execução específica do compromisso de compra e venda não registrado (posição hoje referendada pelo novo Código Civil, por força do parágrafo único do art. 463); [33] b) a adjudicação compulsória não é ação real, mas pessoal; [34] e c) distinção entre adjudicação compulsória e condenação ao cumprimento de obrigação de contratar.