3. A regulamentação da adoção em Portugal
Historicamente, a primeira lei em Portugal que tratou da situação das crianças abandonadas foi a Carta Régia de 1543, a qual atribuía à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) a responsabilidade de “recolher, proteger e criar as crianças, filhas de ninguém”. Tais crianças, em sua maioria, eram abandonadas por mulheres da classe social alta portuguesa, que ocultavam a maternidade, sobretudo, por razões morais e sociais.
O mecanismo utilizado pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa para essas crianças era a chamada “Roda dos Expostos” (uma vez que as crianças abandonadas eram os “expostos” ou “enjeitados”), que consistia em um “mecanismo cilíndrico, com as suas duas partes, côncava e convexa, girando sobre si mesmo. Então, a mulher que queria “desfazer-se” do filho, o colocava no cilindro e o girava; a mulher que queria receber a criança, travava o movimento e o pegava. Tal mecanismo foi extinto em dezembro de 1870, tendo fracassado na sua função de extinguir o abandono de crianças ou mesmo reduzir as elevadas taxas de mortalidade infantil da época, o que fez o país a adotar a política de concessão de subsídios às mães indigentes, às puérperas e às famílias que viessem buscar na Roda as crianças que tinham rejeitado anteriormente.[15]
Por sua vez, a norma pioneira a regulamentar a adoção propriamente dita foram as Ordenações Afonsinas e Manuelinas (1512/1513 – 1605), que tinham como objetivo conceder ao adotado a qualidade de herdeiro.[16]
Entretanto, o Código Civil Português de 1867, conhecido como “Código de Seabra”, diferentemente de legislações anteriores, não contemplou a figura da adoção, o que só veio a ocorrer 100 (cem) anos depois, com a entrada em vigor do Código Civil de 1966, em 1.º de junho de 1967 (“Código de Varela”).
A introdução ao regime jurídico da adoção no novel Código se deu, principalmente, pela ocorrência da I e II Guerra Mundial, as quais deixaram um grande número de crianças órfãs nos países europeus, razão pela qual era iminente uma resposta dos Estados ao grande número de crianças que tinham ficado sem família.
Assim, o art. 1586.º do Código Civil estabeleceu o conceito legal de adoção, caracterizando-a como “o vínculo que, à semelhança da filiação natural, mas independentemente dos laços do sangue, se estabelece legalmente entre duas pessoas nos termos dos artigos 1973.º e seguintes”.
Por sua vez, o art. 1974.º, n.º 1, dispôs que “a adopção apenas será decretada quando apresente reais vantagens para o adoptando, se funde em motivos legítimos, não envolva sacrifício injusto para os outros filhos do adoptante e seja razoável supor que entre o adoptante e o adoptando se estabelecerá um vínculo semelhante ao da filiação”.
Percebe-se que, a exemplo do que ocorreu no Brasil, a partir desse momento, em Portugal, a adoção deixou então de estar centrada no interesse da pessoa do adotante, em que se procurava sobretudo a perpetuação da família e a transmissão do nome e do patrimônio, como sucedia nas legislações antigas, para passar a visar à satisfação do interesse do adotado no ingresso num meio familiar semelhante ao de uma família baseada na filiação biológica.
O Código Civil Português de 1966, por influência francesa, previa dois tipos de adoção: a adoção restrita e a adoção plena, conforme a extensão de seus efeitos. A adoção plena, irrevogável e de efeitos mais abrangentes, só poderia ser obtida por cônjuges que estivessem casados há mais de 10 (dez) anos, não estando separados em matéria de pessoas e bens em termos judiciais, e que não tivessem filhos legítimos. Os adotantes também tinham que ter mais de 35 (trinta e cinco) anos, com exceção dos casos em que o adotando fosse filho ilegítimo de um dos cônjuges.
Por sua vez, o adotando não deveria ter mais de 14 (catorze) anos “ou menos de vinte e um e não ser emancipado, desde que com idade superior a catorze anos tivesse estado, de fato ou de direito, aos cuidados do adotante”. A adoção, contudo, só era permitida quando o adotando fosse filho de cônjuge de um dos adotantes ou filho de pais incógnitos ou falecidos.[17]
O instituto sofreu várias alterações legislativas, motivadas, especialmente, pelo texto constitucional, o qual vedava a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos. Dessa forma, sucederam-se os Decreto-lei n.º 496, de 25 de novembro de 1977, n.º 185, de 22 de maio de 1993, n.º 120, de 8 de maio de 1998, e, finalmente, a Lei n.º 31, de 22 de agosto de 2003, que plasmou expressamente o princípio do superior interesse da criança como fim último do instituto e critério-guia de decisão. Estas sucessivas reformas alteraram os requisitos respeitantes aos adotantes e aos adotandos, os procedimentos, e sobretudo o espírito do instituto, que foi paulatinamente sendo centrado no interesse superior da criança.
Sobre a regulamentação da adoção internacional, importa sublinhar a regulação da colocação no estrangeiro de menores residentes em Portugal para aí serem adotados, tendo sido criadas regras para garantir a clareza e a segurança dos procedimentos.[18]
Os organismos de segurança social passaram a ter competência para decidir da confiança administrativa do menor e legitimidade para requerer a sua confiança judicial, sendo ouvidos obrigatoriamente antes da decisão do tribunal. Houve, assim, com esta revisão, um reforço do papel e da ação da segurança social em todo o processo tutelar e de adoção, conferindo-lhe a posição de articulação entre cidadãos, famílias e instituições que tenham a seu cargo ou conheçam crianças desprovidas de meio familiar normal e em risco.[19]
Denota-se, ainda, ao longo desta evolução, uma tendência no sentido de se flexibilizarem os requisitos da capacidade para adotar, com a redução de limites etários ou de mínimo de convivência conjugal, bem como com a previsão da possibilidade de adoção singular. Tal possibilidade surgiu com a reforma legislativa de 1977, por meio do Decreto-lei n.º 496, que permitiu a adoção singular por pessoa com mais de 35 (trinta e cinco) anos de idade, bem como a adoção plena a pessoas casadas há mais de 05 (cinco) anos e não separadas de pessoas e bens em termos judiciais, desde que contassem mais de 25 (vinte e cinco) anos de idade. Outrossim, permitiu que os casais com filhos legítimos também pudesse realizar a adoção plena.
Em relação ao adotando, a idade máxima passou para 15 (quinze) anos. Todavia previa-se a possibilidade de adoção a quem tivesse menos de 18 (dezoito) anos ou ainda não estivesse independente na data da petição judicial de adoção, desde que tivesse sido confiado aos adotantes ou a um deles com idade não superior a 15 (quinze) anos, ou se fosse filho do cônjuge do adotante.[20]
Em relação à confiança judicial tendo em vista uma futura adoção, são referidas numerosas “situações de menores que podem ser encaminhadas para a adopção, desde: os filhos de pais incógnitos ou falecidos; aqueles em relação a quem houve consentimento prévio; os que foram abandonados pelos pais; aqueles que os pais colocaram em perigo, comprometendo seriamente os vínculos afectivos próprios da filiação; e aqueles que, estando acolhidos por um particular ou instituição, tivessem sido objecto de manifesto desinteresse por parte dos pais em termos de comprometer seriamente os vínculos afectivos da filiação durante seis meses”.[21]
Nas situações de consentimento, definiu-se que a mãe só o podia fazer depois de 06 (seis) semanas do parto e, “instituiu-se, por regra, a obrigatoriedade de audição dos ascendentes ou, na sua falta, dos irmãos maiores do progenitor falecido, sempre que o adoptando seja filho de cônjuge do adoptante e o seu consentimento não se mostre necessário”.[22]
A legislação também inovou ao conferir proteção especial à identidade do adotante e de seus pais naturais, bem como garantiu a possibilidade mudança do nome próprio do adotando em casos excepcionais.
No que tange à adoção de filhos de cônjuge, a lei vem prevendo, ao longo do tempo, requisitos mais flexíveis para este tipo de adoção do que para a adoção conjunta, de criança que não possua vínculo de parentalidade com nenhum dos candidatos. Isso se denota na ausência limites etários máximos para se adotar que, desde a reforma legislativa de 1993, foram eliminados para a adoção de filho de cônjuge (artigo 1979.º, n.º 5, do Código Civil).
Entretanto, a noção jurídica de família do sistema jurídico português evoluiu rapidamente. Em 1999, foi adotada a lei que veio garantir o reconhecimento de efeitos jurídicos às uniões de fato com duração superior a 02 (dois) anos (Lei n.º 135, de 28 de agosto de 1999). Essa lei reconheceu às pessoas de sexos diferentes que vivessem em união de fato o direito de adotarem em condições análogas às das pessoas unidas pelo casamento.
Cumpre ressalvar que, diferentemente da legislação brasileira, a portuguesa não reconhece o direito de adoção aos divorciados, separados judicialmente e ex-companheiros, tampouco a possibilidade excepcional de adoção post mortem.
Outra diferença substancial entre as legislações dos dois países é o limite de idade para adotar, que, em Portugal, é de 60 (sessenta) anos, diferentemente do que ocorre no Brasil, que não possui uma idade máxima para se adotar, mas a jurisprudência brasileira, entende que, havendo uma hipótese de adotante com idade muito avançada, o juiz deverá analisar, no caso concreto, se aquela adoção satisfaz os interesses do menor.
Por outro lado, tanto o direito português quanto o direito brasileiro exigem que o adotando com 12 (doze) anos ou mais consinta expressamente com a adoção, sendo que o direito lusitano exige que esse consentimento também seja dado pelos filhos do adotante que possuam essa idade, o que não ocorre no direito brasileiro.
Uma das mudança mais recentes no direito português consistiu na possibilidade, em situações excepcionais, da adoção plena ao adotante com mais de 50 (cinquenta), desde que o menor lhe tenha sido confiado quando este (adotante) tenha menos de 60 (sessenta) anos e que a diferença de idade entre o adotante e o adotado seja inferior a 50 (cinquenta) anos, pelo menos em relação a um dos adotantes (art. 1979.º, n.º 4).
Assim como ocorre no Brasil, em Portugal, o processo de adoção está centralizado em um órgão específico, no caso, a Segurança Social, sendo que todo candidato à adotante precisa dirigir-se ao Centro Distrital da Solidariedade e Segurança Social (CDSSS) de sua área e preencher um cadastro com informações pessoais, além de apresentar certidões e documentos, passando, ainda, por um processo de análise, preparação e avaliação psicossocial; e somente depois dessas etapas é que o candidato será considerado apto ou não a integrar a lista nacional de espera para adotantes. Da decisão de indeferimento do pedido, cabe recurso. No caso dos moradores do município de Lisboa, o órgão responsável pelo pedido de cadastro é a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML).
A Lei n.º 7/2001 veio tutelar e reconhecer efeitos jurídicos também às uniões de fato de pessoas do mesmo sexo (uniões homoafetivas). Entretanto, o direito de adoção permaneceu reservado apenas para os unidos de fato de sexos diferentes (artigo 7.º).
Na mesma linha, em 2010, foi aprovada a Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, que veio permitir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Esta Lei contém uma referência expressa à capacidade para adotar, referindo, no n.º 1, do artigo 3.º, que as “alterações introduzidas pela presente lei não implicam a admissibilidade legal da adoção, em qualquer das suas modalidades, por pessoas casadas com cônjuges do mesmo sexo”. Reforçando esta ideia, o n.º 2 da mesma norma sublinha que “nenhuma disposição legal em matéria de adoção pode ser interpretada em sentido contrário ao disposto no número anterior”. O dispositivo legal supra veio, assim, prever a possibilidade de pessoas do mesmo sexo poderem contrair casamento, tal como definido na lei civil, e que por isso, produz todos os efeitos reconhecidos pela lei civil a esse instituto. À exceção de um único: a possibilidade de adoção, seja ela adoção conjunta, seja ainda adoção do filho do cônjuge.
A lei que veio prever o casamento de pessoas do mesmo sexo consagrou, assim, a mesma solução legal que a prevista para as uniões de fato entre pessoas do mesmo sexo. Dessa forma, a flexibilização dos requisitos referentes à capacidade para adotar, de que foi testemunha a evolução legislativa do instituto da adoção, “não foi porém desenvolvida pelo legislador ao ponto de acompanhar a proteção jurídica que foi sendo concedida às uniões de pessoas do mesmo sexo — seja uma união de facto ou uma união conjugal, neste último caso desde 2010” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 176/2014, de 19/02/2014, Publicado no Diário da República, I.ª Série, n.º 44, de 04/03/2014, p. 1701 e ss.).
Todavia, em novembro de 2015, o Parlamento Português aprovou 05 (cinco) projetos de lei que concedem a permissão da adoção plena de crianças por todos os tipos de casais, incluindo os homossexuais, tornando-se Portugal, assim, o 24.º país do mundo a permitir a adoção por casais gays. Tratando-se de aprovação recentíssima, os projetos de lei que foram aprovados pelo Parlamento serão discutidos na especialidade e depois submetidos à votação final global, para então passarem a ser uma decisão definitiva e poder ser aplicada.