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A importância da constitucionalização do meio ambiente para a efetividade da proteção do patrimônio cultural

Agenda 08/01/2016 às 23:28

O artigo demonstra a importância, para a efetividade da proteção do patrimônio cultural, da inserção de um conjunto de normas específicas sobre o patrimônio cultural e instrumentos para a sua proteção no corpo da Constituição brasileira de 1988.

A Constituição Federal de 1988, que teve ampla participação da sociedade civil nos debates que envolveram o processo para sua elaboração, é considerada uma das mais avançadas do mundo em termos de proteção ambiental, pois, além de conter um capítulo específico destinado ao meio-ambiente, recheado de normas detalhadas no que diz respeito à proteção e preservação ambiental, também prevê o compartilhamento de responsabilidades entre o Poder Público e a coletividade. Mas esse diploma vai além, tratando, ainda, nos artigos 215 e 216, de outra face do meio-ambiente, referindo-se ao patrimônio cultural, cuja promoção e proteção devem ser efetuadas “pelo Poder Público, com a colaboração da comunidade” (art. 216, § 1º).

A Constituição determina quais são os bens que constituem o patrimônio cultural:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I- as formas de expressão; II- os modos de criar, fazer e viver; III- as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV- as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.  

É assente na doutrina, atualmente, a ideia de que os bens culturais também integram o meio ambiente, ao lado dos elementos naturais. Assim, para Vladimir Passos de Freitas,

Meio ambiente, na visão moderna, vem sendo entendido não apenas como a natureza, mas também como as modificações que o homem nela vem introduzindo. Assim, é possível classificar o meio ambiente em natural, que compreende a água, a flora, o ar, a fauna, e cultural, que abrange as obras de arte, imóveis históricos, museus, belas paisagens, enfim, tudo o que possa contribuir para o bem-estar e a felicidade do ser humano.  ¹

 O Brasil, como nação formada por múltiplas culturas (negros, índios, europeus, japoneses etc), tem especial interesse na preservação dos elementos, materiais (tais como a arquitetura, os artefatos) ou imateriais (referentes à língua e aos costumes), que contam a história de cada uma dessas culturas, a fim de que sejam conhecidas e valorizadas não apenas pela geração atual, mas também pelas gerações futuras. Isso importa preservar a própria identidade cultural desses povos, embora integrantes hoje de uma mesma nação. A definição constitucional de “patrimônio cultural” consagra, segundo Milaré, o pluralismo cultural, porquanto oferece uma proteção ampla aos bens que o integram:

Não se trata somente daqueles eruditos ou excepcionais, pois basta que tais bens sejam portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos que formam a sociedade brasileira.²

A simples definição, no corpo da Constituição, do que deve ser entendido por patrimônio cultural, possui grande importância na proteção desse patrimônio, pois impede que tal definição seja alterada por norma hierarquicamente inferior, o que deixaria tal patrimônio exposto a eventuais interesses conflitantes que poderiam prevalecer no decorrer do processo legislativo ordinário, tendo em vista que a alteração de uma norma infraconstitucional segue um processo bem mais simples do que seria necessário para a modificação do texto elaborado pela Assembléia Nacional Constituinte. Além disso, em face do princípio da vedação ao retrocesso, a legislação que sucede a norma fundamental não poderá restringir o conceito fixado pela Constituição, devendo, ao contrário, buscar cada vez mais a proteção dos bens conceituados como integrantes do patrimônio cultural.

Para Paulo Affonso Leme Machado,

o fato de existir na Constituição da República um conjunto de normas sobre o patrimônio cultural não garante, por si só, sua sustentabilidade; mas não deixa de ser um potente farol para guiar a ação dos poderes públicos e da sociedade civil.³

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Além disso, a própria Constituição estabelece os meios para promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro, quais sejam: tombamento, desapropriação, inventários, registros, vigilância, sendo esse rol exemplificativo, pois também ressalva “outras formas de acautelamento e preservação” (art. 216, § 1º).

A cultura preservada pela Constituição não é somente aquela dos antepassados, mas também a cultura viva, conforme dispõe o artigo 215, § 1º: “O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.” Neste ponto, considerando a condição de vulnerabilidade a que estão expostos os integrantes das culturas indígena e afro-brasileira, a Constituição também estabeleceu para eles normas protetivas específicas, como é o caso do artigo 231, que reconhece aos índios “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”, bem como “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, e do artigo 68 do ADCT, no que diz respeito aos remanescentes das comunidades quilombolas, reconhecendo-lhes a propriedade definitiva das terras que estão ocupando, competindo a emissão dos respectivos títulos ao Estado.

Quanto aos documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos, a Constituição entendeu por bem consagrar a sua proteção já no seu bojo, efetuando, ela própria, o tombamento de tais bens do patrimônio cultural, consoante o disposto no artigo 216, § 5º.

Como visto, a proteção do patrimônio cultural não se reduz à Seção II do Capítulo II da Ordem Social. A Constituição, além de ter aberto uma Seção específica para a cultura, dispõe de um conjunto de princípios e normas que buscam conferir efetividade a esse intuito de proteção ao meio ambiente cultural. Assim, por exemplo, quando atribui à União a propriedade dos sítios arqueológicos e pré-históricos (art. 20, X) ; quando estabelece a competência comum dos entes federativos para a proteção documental, das obras e de outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos e sítios arqueológicos (art. 23, III) ; quando prevê a competência concorrente para legislar sobre a proteção ao patrimônio cultural (art. 24, VII) e sobre a responsabilidade por dano a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (art. 24, VIII) ; quando estabelece aos municípios a competência para promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, com observância da legislação e sujeita à fiscalização federal e estadual (art. 30, IX) .

A Constituição busca conferir efetividade ao seu próprio texto quando prevê instrumentos legais para a proteção do patrimônio cultural, quais sejam, a ação popular (art. 5º, LXXIII)  e a ação civil pública, atribuindo, além disso, ao Ministério Público, como uma de suas funções institucionais, a promoção do inquérito civil e da ação civil pública “para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos” (art. 129, III).

É possível afirmar, portanto, que a proteção do meio ambiente cultural está assegurada por sólida base constitucional, o que minimiza os riscos de um retrocesso no que diz respeito aos bens protegidos, e que a Carta magna, ao dispor acerca de tal proteção, não o fez de forma meramente programática, mas também instituiu os meios administrativos e judiciais que possibilitam a efetivação dos direitos por ela reconhecidos.

REFERÊNCIAS:

¹  FREITAS, Vladimir Passos de. A constituição federal e a efetividade das normas ambientais. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 92.

²  MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 202.

³  MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 17 ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 941.
 

Sobre a autora
Lucimar Hofmann Bogo

Procuradora Federal, pós-graduada em Direito Público pela Universidade de Brasília.

Informações sobre o texto

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