O Ministro Nelson Hungria Hoffbauer merece o titulo que lhe foi dado pelos estudiosos do direito penal como o príncipe dos penalistas brasileiros.
Dele se disse que foi um homem que se dedicou a vida inteira à causa da Justiça. Sobre ele falou o Desembargador Oscar Tenório, que esteve presente em seu sepultamento:
- Nosso amigo teve uma vida trepidante, era uma personalidade exuberante. Suas aptidões maiores foram sempre no sentido de ser apenas um grande advogado. Na cultura brasileira ficará eternamente lembrado como um grande penalista.
Disse ainda o Ministro Gallotti que os livros do Ministro Nelson Hungria são de uma clareza, concisão própria dos que sabem a fundo a matéria.
Foi sem dúvida alguém de deixou sua marca no Supremo Tribunal Federal, tanto que o Ministro Orozimbo Nonato sobre ele disse:
- Éramos uma lagoa plácida e o Nelson nos transformou em um mar revolto.
Sobre ele mesmo disse o Ministro Nelson Hungria, em 14 de abril de 1961:
- Muitas vezes, com a minha fácil e irreprimível exaltação, fui provocador de acalorados debates, em que todos nos empenhávamos, imprimindo ondulações na superfície de nosso até então invariável “manso lago azul”. Não me arrependo de tê-lo feito. Tenho aversão às águas estagnadas, que só servem para emitir eflúvios malignos ou causar emanações mefíticas.
Num julgamento polêmico, no HC 32.331/DF, Relator Ministro Luiz Gallotti, em 3 de dezembro de 1952, disse ele:
- Por outro lado, creio que meu passado de juiz fala por mim. Se não sou um destemido, se não sou um Dom Quixote de la Mancha, também não sou um covarde; sou um homem que nunca deixei de ser igual a mim mesmo, e digo as coisas que me vêm do coração à guela, custe o que custar.
Sua dedicação aos estudos do direito penal era tanta que costumava dizer:
- Eu acordo, almoço, janto e durmo pensando em direito penal.
Na verdade, o Ministro Nelson Hungria não tinha o menor pudor ou receio de expressar suas conclusões em votos e apartes de forma veemente e inflamada.
Nelson Hungria Hoffbauer descendia de um imigrante húngaro, que chegou ao Brasil, em 1834, e estabeleceu-se em Juiz de Fora, adotando o sobrenome “ Hungria” em homenagem ao país de origem.
Nasceu de família pobre, no arraial de Angustura, Além Paraíba, em Minas Gerais, em 18 de maio de 1891.
Diplomou-se, aos 18 anos, no Rio de Janeiro, para onde seus pais tinham vindo em 1907, mas para começar a carreira de advogado voltou a terra natal, tendo sido nomeado promotor público de Rio Pomba, cidade mineira, onde obteve bastante experiência e aprendeu alemão, após findo o trabalho diário.
Aliás, não seguiu a carreira política em Rio Pomba, município mineiro perto de sua cidade, sendo derrotado em eleição por apenas um voto.
Em 1912, casou-se com Isabel Maria Machado com quem teve quatro filhos: Hélio, Délio, Célia e Clemente.
Dedicou-se à advocacia criminal em Belo Horizonte.
Veio para o Rio de Janeiro, em 1922, trazido por Artur Bernardes, e foi nomeado delegado de policia no 12º Distrito. Em seguida, foi fiscal do selo. Quando abriu concurso de pretor, inscreveu-se e passou em primeiro lugar, tendo sido nomeado para a 8ª Pretoria Criminal.
Teve uma carreira brilhante como pretor, juiz de direito, Desembargador do Tribunal de Justiça do antigo Distrito Federal e Ministro do Supremo Tribunal Federal, quando sucedeu o Ministro Anibal Freire, tendo como sucessor o Ministro Pedro Chaves. Ocupou a cadeira fundada em 1891, quando da organização do STF pelo Barão de Pereira Franco, ao qual se seguiram os Ministros Epitácio Pessoa, Enéias Galvão, João Mendes, Geminiano da Franca, Plínio Casado e Washington de Oliveira.
Disse ele, ao tomar posse no cargo de Desembargador do Tribunal de Justiça do antigo Distrito Federal, Tribunal de Apelação, em 1944, que um juiz, antes de consultar os manuais de doutrina ou as revistas de direito, deveria se aconselhar “ com a própria consciência” em suas decisões.
Participou da elaboração do Código Penal, do Código de Processo Penal e da Lei das Contravenções Penais, sendo autor do projeto de reforma do Código Penal de 1940, que ficou conhecido como o Código Penal de 1969. Ele foi o líder intelectual da comissão encarregada de redigir o Código Penal de 1940 e seu grande arquiteto, não obstante o crédito concedido a Alcântara Machado, autor do projeto que serviu de base aos trabalhos da Comissão.
Deixou uma obra jurídica memorável em que destacam-se: Questões jurídico-penais; Comentários do Código Penal(oito volumes), que posteriormente foram atualizados por Heleno Fragoso; A legitima defesa putativa; a fraude penal; Dos crimes contra a economia popular; novas questões jurídico-penais; Compêndio de direito penal, com Roberto Lira, sobre a Consolidação das Leis penais; Estudos de direito e de processo penal; Ciclo de conferências sobre o anteprojeto do Código Penal Brasileiro. No primeiro volume de seus Comentários definiu a necessidade de comentar a lei ao dizer:
- Mesmo os textos aparentemente mais claros não estão isentos da necessidade de explicação, pois o seu verdadeiro alcance pode ficar aquém ou além das letras.
Em 29 de maio de 1951, Nelson Hungria é nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal pelo então Presidente da República, Getúlio Vargas. Integra, como membro substituto, a partir de 25 de julho de 1955, e efetivo, a partir de 23 de janeiro de 1957, o Tribunal Superior Eleitoral, ocupando a presidência de 9 de setembro de 1959 a 22 de janeiro de 1961. Aliás, fala-se que Nelson Hungria, durante aula ministrada, criticou a repressão desencadeada pelo governo Vargas, à revolução paulista de 1932. Mas não sabia que, entre os alunos que o ouviam, estava Alzira Vargas, filha do Presidente. Pois, semanas depois, após figurar numa lista de nove pretendentes ao cargo, surpreendeu-se ao saber que fora escolhido pelo Presidente Vargas, por influência de sua aluna, Alzira.
Seus pronunciamentos no Supremo Tribunal Federal são sempre citados.
É o caso do HC 37.921-SE, Pleno, 14 de setembro de 1960, em que discutia a possibilidade do Supremo Tribunal Federal examinar a idoneidade das provas utilizadas para pronúncia do paciente. O aresto foi assim ementado:
¨Habeas corpus, sua concessão. De regra, em habeas corpus, não se reapreciam provas, mas uma coisa é apreciar provas e outra é reconhecer a imprestabilidade subjetiva de meios e órgãos de prova. Confissão extorquida pela violência conforme reconhece o próprio acórdão confirmatório da pronúncia.
Depoimentos prestados no inquérito policial e não reproduzidos em juízo. Conjecturas que, sem base alguma, não podem ser confundidas com indícios.
Aplicação do art. 580 do Código de Processo Penal.”
Em voto, no julgamento do HC 32.468 – DF, em que foi Relator, Pleno 17 de junho de 1953, o Ministro Nelson Hungria admitia o habeas corpus para examinar com profundidade a legalidade de todas as prisões decretadas, mesmo das disciplinares, apesar da resistência do colegiado. Era um caso onde se discutia a validade da condenação de três médicos pelo homicídio culposo de criança que não sobreviveu ao tratamento de extensas e graves queimaduras, em decorrência de suposta negligência e imperícia dos acusados. Aliás, a conclusão da condenação, no entanto, fundou-se não na autópsia da vítima ou em perícia médica, mas em testemunhas leigas, nas fichas hospitalares de tratamento e em opiniões de médicos produzidas extrajudicialmente e trazidas pela acusação sem o crivo do contraditório ou compromisso judicial. Naquele julgamento, o Ministro Nelson Hungria superou os obstáculos ao exame da prova no habeas corpus e admitiu seu emprego para reconhecer a falta de prova essencial para a condenação dos acusados. Disse que o exame de corpo delito ou perícia médica é essencial para atestar a suposta omissão ou imperícia no tratamento médico-hospitalar. Assim o voto do Ministro Nelson Hungria permitiu discutir se havia provas suficientes para a condenação dos pacientes, contra a jurisprudência que predominava à época.
Importante citar que o Ministro Nelson Hungria, no julgamento do HC 36.80-DF entendeu pelo manejo do habeas corpus para o reconhecimento de efeito suspensivo a recurso, quando disse:
- Um dia de privação de liberdade jamais poderá ser restituído.
E disse mais:
- O nobre advogado do paciente diz que só Deus pode reparar essa transitória perda da liberdade. Nem Deus, porém, pode fazê-lo. É a única coisa que Deus não pode fazer: tornar “ desacontecido” aquilo que já aconteceu. Deus nos pode ferir de amnésia, para que esqueçamos o fato, como pode acrescer de um dia livre a vida do prejudicado, mas não pode suprimir no passado o dia de privação da liberdade.
Outra importante intervenção do Ministro Nelson Hungria se fez quando do julgamento do HC 38.193-GB, Relator Ministro Gonçalves de Oliveira, Pleno, 25 de janeiro de 1961, no caso em que a mãe de menor envolvido no assassinato de Aída Curi impetrou habeas corpus para garantir que seu filho não fosse internado em estabelecimento inadequado e sem curso ginasial, quando disse:
- Trata-se de ameaça de internação num estabelecimento de assistência a menores que se transformou, na prática, numa fábrica de criminosos, onde não há ensino secundário senão para perversão moral. E isso que se quer evitar a esse menor: o constrangimento de internação num reformatório falido, que, ao invés de reabilitá-lo, apenas o aviltará irremediavelmente.
Ora, era um caso onde o clamor das ruas e do humor transitório das multidões existia diante de um assassinato que causou verdadeiro ódio aos acusados. O Ministro Nelson Hungria não pautava sua atuação por modismos ou pela popularidade das ideias. O que interessava nele era o amor à verdade e à ciência.
Deve-se ainda ao Ministro Nelson Hungria o entendimento do cabimento da reiteração do habeas corpus, inclusive pelo mesmo fundamento, pois, no seu entender, as decisões denegatórias no writ não faziam coisa julgada, como se observou do voto vencido, no HC 32.983 – AgR/DF, Relator Ministro Hahnermann Guimarães, 22 de abril de 1954.
Outro posicionamento importante do Ministro Nelson Hungria é visto no HC 33.440-SP, 26 de janeiro de 1955, quando disse que a prerrogativa de foro é concedida em obséquio à função a que é inerente, e não ao cidadão que o exerce. Deixado definitivamente o cargo, por qualquer motivo, o seu ex-titular responderá no foro comum. Por sua vez, no julgamento do HC 33.440-SP, 26 de janeiro de 1955, o Ministro Nelson Hungria disse que o aposentado continua funcionário público, levando consigo as prerrogativas da função, tanto para crimes comuns como de responsabilidade. Deixava nítida a diferença entre fim do mandato e a inatividade de servidor com foro privilegiado de função.
No voto que deu no HC 32.928-DF, Relator para o acórdão o Ministro Rocha Lagoa, Pleno, 4 de abril de 1954, o Ministro Nelson Hungria, envolvendo matéria de crime de espionagem, argumentou:
- O meu desacordo, entretanto, se manifesta no ponto em que o ilustre Sr. Ministro relator entende que a lei excepcional ou temporária continua a vigorar além de seu término, ainda quando só foi possível em razão da suspensão das garantias constitucionais.
Continuou seu voto dissertando com relação as chamadas leis temporárias:
- O art. 3º do Código Penal, quando disciplina as penas excepcionais ou temporárias, evidentemente pressupõe que continue indene a lei máxima, a lei constitucional. Se a lei temporária ou excepcional só foi possível porque estava suspenso o regime constitucional, essa não pode mais vigorar desde que a Constituição volte a imperar, porquanto, de outro modo, criar-se-ia uma situação duradoura de contraste com a Constituição. Vou formular um exemplo ad terrorem. Suponha-se que durante o antigo “estado de emergência” em que estavam suspensas as garantias constitucionais e suprimido o Parlamento, o chefe da Nação, aproveitando-se dessa circunstância, promulgasse lei penal com efeito retroativo, punindo com trinta anos de prisão milhares de adversários seus, que houvessem assinado determinado manifesto contra o Governo. Algum tempo depois, terminado o estado de emergência e voltando a vigorar a Constituição, essa pena de trinta anos aplicada retroativamente a milhares de cidadãos poderia continuar a ser cumprida? Evidentemente, não, porque, do contrário, ter-se-ia de admitir a possibilidade de o Chefe de Governo neutralizar, por trinta anos, mesmo com o retorno da vigência da Constituição, a atuação dos seus adversários políticos.
(...)
- Nesse ponto, por conseguinte, divirjo do eminente Sr. Ministro Relator, para conceder o habeas corpus. O paciente foi condenado à pena de doze anos de reclusão por fato que, ao tempo de sua prática, não era incriminado. Há ainda outros indivíduos apodrecendo na Ilha Grande, como já tive oportunidade de verificar pessoalmente, em cumprimento de penas ainda mais longas, até de trinta anos, em virtude do efeito retroativo do Decreto 4.766. É uma inconstitucionalidade que precisa ser conjurada. Foi o paciente condenado por lei ex post facto.
Posteriormente, após outros julgamentos naquela matéria, no julgamento do HC 33.780- DF, Relator Ministro Convocado Sampaio Costa, Pleno, 7 de dezembro de 1955, prevalece o entendimento externado pelo Ministro Nelson Hungria, para conceder o writ, cassando a condenação do paciente e deixá-lo livre de novos processos.
O Ministro Nelson Hungria, como se lê de seu voto no HC 34.114 – SP, deixou claro o cuidado que se deve ter com a utilização do processo penal como arma política. Disse ele, ao salientar a indispensabilidade de dano patrimonial para a consumação do peculato e ao refutar a necessidade de tomada de contas:
- O peculato não é mais que a apropriação indébita transladada para o quadro dos crimes contra a administração pública, porque praticada contra o patrimônio desta(interesse mais relevante que o do patrimônio privado) e por funcionário seu, com infidelidade ao cargo público(cujo exato exercício afeta diretamente ao interesse do Estado e, portanto, da coletividade). É ele incriminado separadamente da apropriação indébita comum, para mais severo tratamento, não apenas porque lesa o interesse patrimonial do Estado. É com a apropriação do dinheiro ou coisa imóvel pertencente ou sob a guarda do Estado que se realiza a violação do dever funcional. Uma e outra são como corpo e alma, como esmeralda e cor verde, como fiel e amargor. Sem esses dois elementos que se conjugam incindivelmente, não pode haver o summatune opus do peculato. O momento consumativo é, aqui, a apropriação sine jure do dinheiro ou coisa móvel, e nesse momento está necessariamente inserto o efetivo dano patrimonial, isto é, a retirada ou desvio do dinheiro ou coisa móvel pertencente ou sob a guarda do Estado, que perde a respectiva disponibilidade, servindo-se o agente da pecúnia ou do objeto como se fosse o dono. Ainda no caso de simples desvio(como, por exemplo, retirar o dinheiro do Estado, para emprestar, transitoriamente, a outrem), não deixa de haver efetivo dano patrimonial. Não tenho dúvida, portanto, em repetir o que já disse de outra feita: peculato consumado sem dano efetivo é tão absurdo quanto dizer-se que pode haver fumaça sem fogo, ou sombra sem corpo que a projete, ou telhado sem paredes ou esteios de sustentação.
Outro pronunciamento importante se deu, no julgamento do HC 32.386 – DF e no RHC 32.398, onde o voto divergente do Ministro Nelson Hungria acabou prevalecendo para afastar o crime de prevaricação imputado a promotor de justiça que tenha deixado de opinar pela prisão preventiva e de oferecer denúncia por carência de elementos suficientes contra determinados indiciados. Naquele HC 32.386 – DF, de 23 de março de 1954, ficou consignado na ementa de seu julgamento que o exercício de uma faculdade legal, dentro das condições a que é subordinada, jamais poderá ser considerado crime. Ali analisou o crime de prevaricação aduzindo que dois elementos são a ele necessários: o elemento objetivo e o elemento subjetivo ambos essenciais para essa configuração do delito. O elemento objetivo é que o retardamento ou a omissão do ato haja sido indevido, isto é, ilegal, arbitrário, ou, então, que os atos praticados tenham infringido disposição de lei. Assim não se deve confundir a prevaricação com a corrupção: nesta pouco importa a legalidade ou ilegalidade da ação ou da omissão pelo funcionário, pois se tem em conta apenas o mercado em torno da função pública; na prevaricação, ao contrário, é indispensável a ilegalidade, a infringência de expresso dispositivo legal.
Ainda é conhecida a posição do Ministro Nelson Hungria, como se lê do HC 36.908-SP, 2 de setembro de 1959, com relação ao momento de consumação do crime de estelionato na emissão de cheque sem fundo, quando disse que o delito inserido no artigo 171, § 2º, VI, do Código Penal, se consuma quando sendo ele emitido, isto é entregue pelo emitente a outrem, é posto em circulação. Em se tratando de outra modalidade ulterior, retirada ou bloqueio da provisão, o momento consumativo é o dessa frustração do pagamento. Logo, consumado o delito, a posterior entrega do numerário suficiente para adimplir os cheques não desconstitui o crime.
De outro modo, ainda em sede de crimes contra o patrimônio, o Ministro Nelson Hungria, no julgamento do HC 32.217-RN, deixou consignado que o crime de latrocínio compete ao juiz singular, quando analisou, à vista do artigo 141, § 28, da Constituição de 1946, a competência do Tribunal do Júri Popular. Isso porque o latrocínio constitui crime contra o patrimônio, essencialmente, e que tampouco demandava o dolo quanto ao evento morte.
No julgamento do HC 34.088/RS, Relator Ministro Barros Barreto, a lição do Ministro Nelson Hungria é de não deixar dúvida quanto à inexistência do bis in idem, entre o crime de quadrilha e bando e a coautoria delitiva. Assim disse que o crime de quadrilha é autônomo e independe dos crimes cometidos pelo bando, inclusive porque apenas alguns integrantes da associação podem participar de alguns crimes. Disse ele:
- Ao que parece, o impetrante entende que não há coautoria com a simples presença ao lado do executor, ainda quando seja expressão de solidariedade ou “ causa comum” com ele, acoroçoando-o, animando-o, servindo-lhe de “ força de reserva”. Tal entendimento, porém, é errôneo. Finalmente, não há confundir-se o crime de quadrilha ou bando com a participação criminosa ou excluí-lo quando algum crime subsequente seja qualificado pelo concurso de agentes. A quadrilha ou bando é crime per se stante, consistente no associarem-se mais de três pessoas, não acidentalmente para a prática de um crime determinado, mas estável ou permanentemente para a prática de crimes ainda não previamente individuados. Tanto não se identifica com a participação criminosa que, enquanto por ele respondem todos os associados, pelo crime efetivamente praticado, dentro de plano genérico da associação, respondem tão somente os respectivos agentes.
Ensinou ainda o Ministro:
- Se, para a prática do crime que atende ao programa da associação, não é necessário o concurso de todos os associados, podendo mesmo ser praticado por um só deles, é claro que a reunião de todos ou de alguns para esse crime individuado é circunstância que não se identifica com a anterior associação de delinqüir.
Reconheceu, portanto, concurso material entre o crime de bando ou quadrilha e o subsequente crime qualificado pela pluralidade de agentes, não há o bis in idem alegado pelo impetrante.
Com absoluta atualidade, tem-se o seu pensamento no julgamento do HC 32.228/SP, Relator Ministro Lafayette de Andrada, 5 de novembro de 1952, quando disse que a Constituição assegura a contraditoriedade do processo e processo contraditório é aquele em que, toda vez que haja acusação, se proporcione oportunidade de exercício à defesa. Pouco importa que o defensor, constituído pelo réu ou dativo, não haja produzido defesa a contento. Para ele, não se pode exigir que a defesa se faça a todo preço, ainda mesmo na tentativa de burlar a justiça ou denegar a evidência. O que a lei assegura é tão somente que a acusação deve corresponder ensejo à produção de defesa. Assim, como acentuou no HC 34.088/RS, Relator Ministro Barros Barreto, Pleno, 13 de junho de 1956, a nulidade processual ocorre com a negação do ensejo à defesa, e não com a desídia ou a improficuidade do defensor.
Da mesma maneira, entendeu o interrogatório como também peça de defesa, como se lê no HC 31.635/RS, Relator Ministro Hahnemann Guimarães, Pleno, 22 de agosto de 151, pois “ deixar de interrogar um réu é, positivamente, omitir um termo essencial do processo e cercear a defesa”, em voto vencido naquele julgamento.
O Ministro Nelson Hungria, do que se lê no julgamento do HC 33.135/RS, relator para o acórdão convocado Afrânio Costa, Pleno, 14 de julho de 1954, foi defensor da tese do reconhecimento da prescrição com base na pena fixada pela decisão condenatória, considerando o período anterior à mencionada decisão. É o que se vê no julgamento do HC 38.186/GB, Relator Ministro Nelson Hungria, em 30 de janeiro de 1961, onde afirmou que “ a prescrição deve ser declarada se entre o momento da última causa interruptiva e a sentença condenatória, de que não apelou o Ministério Público, decorreu tempo suficiente, tendo em vista a pena concretizada.”
Aliás, basta se ver o enunciado do Supremo Tribunal Federal 146, para se ter a ideia de sua influência nesse pensamento.
No julgamento da Den 118/DF, Relator Ministro Ribeiro da Costa, Pleno, 26 de maio de 1955, o Ministro Nelson Hungria esclareceu que o desacato pode ocorrer tanto quando a autoridade estiver a serviço quanto quando estiver fora dele. Era o caso de uma denúncia oferecida pelo Procurador-Geral da República contra o Presidente do Tribunal de Contas da União, à época, Sr. Márcio Bittencourt Sampaio, que teria surpreendido o então Ministro da Fazenda, Sr. Eugênio Gudin, trocado ofensas e, inclusive, recorrido à agressão física, fato ocorrido em 17 de dezembro de 1954. Analisando o artigo 331 do Código Penal, entendeu o Ministro Hungria que ao definir o crime de desacato o diploma penal não se exige que o tal crime atinja o funcionário in officio, pois o crime existirá ainda que o sujeito passivo se encontra extra officium, posto que a ofensa se realize propter officium. No caso relatado, o Ministro Hungria reconheceu configurada, no mínimo, a contravenção por vias de fato, destacando que esta não depende de lesão corporal. No entanto, a maioria do Plenário entendeu de forma contrária, não dando seguimento à denúncia, vencidos os Ministros Nelson Hungria, Rocha Lagoa e Orozimbo Nonato.
Em suas convicções que viam desde a época de promotor, numa época dominada pelo coronelismo, o Ministro Nelson Hungria combateu o instituto do Tribunal do Júri. Aliás, na decida de 20, conta-se uma passagem curiosa de uma de suas experiências pelo Tribunal Popular. O réu levado a julgamento não passava de um criminoso perverso e confesso o que convenceu o jovem promotor de que ele seria inexoravelmente condenado. Ocorre que, durante a exposição apresentada pelo advogado este disse: ¨O réu é inocente, mas se for condenado quero ver minha mulher morando num dos prostíbulos desta cidade!” O réu acabou absolvido. Depois do julgamento, o promotor saiu indagando de um dos jurados o que o levara a absolver o criminoso. E ouviu a seguinte explicação: “ Pois não vê dotô que a mulher ia acabar na zona, se a gente condenasse o homem!”
Mas ainda são instigantes os votos que teve em matéria de Tribunal do Júri, como Ministro do Supremo Tribunal Federal, como se lê no RE 42.189 – SP, Relator Ministro Ary Franco, Primeira Turma, 21 de maio de 1959, em que foi vencido, ao entender que a nulidade dos quesitos apresentados ao Júri é insanável e não se sujeita à preclusão. Em outro julgamento, no HC 31.653 – PB, o Ministro Nelson Hungria foi enfático, em caso de nulidade do novo Júri pela participação de jurado presente no Conselho de sentença anterior, ao concluir que essa participação de jurado impedido importava em desrespeito do quorum legal exigido para deliberação pelo Conselho de Sentença, gerando nulidade insanável, que, por si só, acarretava prejuízo não só ao réu, mas ainda à Administração da Justiça, concedendo, em voto vencido, o writ. Observe-se que a matéria passou a ser disciplinada no verbete 206 do STF, onde se diz: “ É nulo o julgamento ulterior do Júri com a participação de jurado que funcionou em julgamento anterior do mesmo processo.”
Por decreto de 11 de abril de 1961, Nelson Hungria alcança a aposentadoria compulsória como Ministro do STF, por imposição legal, depois de 48 anos de serviço, voltando a advogar, após inscrever-se na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Guanabara. Ainda, em 1961, é nomeado pelo então Presidente da República Jânio Quadros para chefiar comissão para redigir anteprojeto para um novo Código Penal, o de 1969, que nunca entrou em vigor, mas que é objeto de estudo pelos analistas do direito penal pelas soluções que apresentava. Ainda pretendia o Ministro Nelson Hungria escrever uma obra de grandes proporções, em cinco volumes, o Tratado de Criminologia.
O Ministro Nelson Hungria lamentou, ao se aposentar, por sair da vida púbica e citou como exemplo que, nos Estados Unidos, aos 96 anos, o Juiz Oliver Holmes ainda fazia parte da Suprema Corte.
Mas, as crianças sempre exerceram um verdadeiro fascínio sobre o jurista. Tal se via, às cinco horas da tarde, na Superquadra 206, Bloco 10, quando um senhor de quase 70 anos de idade, Ministro do Supremo Tribunal Federal e Presidente do TSE, esperava, de forma paciente, todos os dias, que findassem as aulas na escola vizinha. Minutos depois, quase uma dezena de garotos aparecia, correndo aos gritos de “ Ministro! Ministro!”, como se chamassem “ titio” ou “ vovô”. Queriam ouvir histórias, desejo que o Ministro atendia. Os meninos eram vizinhos, quase todos filhos de parlamentares, e quando as babás ou as mães iam buscar, eles relutavam bastante antes de deixar o velho amigo. O Ministro, para consolar, advertia, sorrindo:
- Continua amanhã....
Morre, no Rio de Janeiro, em 26 de março de 1969, vítima de colapso cardíaco.
Antes de seu falecimento, em 1969, conta a crônica familiar que o Ministro Nelson Hungria pediu desculpas aos filhos por não ter deixado de herança nenhuma riqueza material.
Um dos jornais do Rio de Janeiro noticiou que, antes de seu falecimento, fez lembrar aos filhos reunidos junto a seu leito que, quando fosse levado para o cemitério, sairia repetindo, em silêncio, dentro do caixão mortuário:
- Aqui vai o Nelson, muito a contragosto.