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Os modelos da disciplina penal acerca da prostituição, a problemática da sua legalização e suas possíveis consequências sociais

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Agenda 02/02/2016 às 14:03

3. O DEBATE SOBRE A ADOÇÃO DO MODELO LEGALIZADOR E SUAS CONSEQUÊNCIAS SOCIAIS

Carmen Vigil e Maria Luisa Vicente (2006, p. 1), lançam, em crítica à concepção liberal sobre a necessidade da legalização da prostituição, a seguinte indagação:

Si la prostitución es una actividad sexual acordada entre personas adultas (...) y si, además, las prostitutas conciertan estos acuerdos con sus usuarios sin que nada ni nadie las fuerce a ello, ¿por qué considera procedente la intervención del Estado para reglamentar esta actividad y proteger los derechos de las prostitutas? ¿No sería más coherente con este punto de vista liberal defender que esos adultos que acuerdan libremente la prostitución hicieran lo que quisieran, cómo, dónde y cuándo quisieran, sin ningún tipo de normativa que estableciera unas reglas y unos cauces para su consensuada práctica sexual?

Essa, contudo, parece ser uma crítica rasa.

Não é porque se deva valorizar a liberdade nas tratativas sexuais nas relações prostituto-cliente ou prostituto-agenciador que não se possa reconhecer, também, a necessidade de certa intervenção estatal nessa atividade.

De fato, não se ignora que a atividade dos prostitutos expõe (mas não necessariamente fere) valores sensíveis inerentes à dignidade da pessoa humana. Daí ser necessária a atuação do Estado para que a linha que separa o livre exercício das atividades sexuais e da dignidade dos profissionais do sexo, de um lado, e da exploração sexual, de outro, mantenha-se incólume.

Da mesma forma, Camilla de Magalhães Gomes (2013) aponta que o argumento é falho, não só pelo fato de a atividade da prostituta envolver questões inexistentes nos outros contratos de trabalho, mas também pelo fato de que o “trabalho” não pode ser tomado como uma categoria única. Ou seja, a prostituição não é um trabalho como “outro qualquer”: é um trabalho que merece ser reconhecido, ao mesmo tempo em que merece ter suas condições próprias levadas em conta.

Dessa forma, não obstante a prostituição deva, sim, ser encarada como uma atividade livre (se exercida de maneira consensual), nada impede a legalização estatal desta atividade, pois o “liberalismo” por parte dos modelos legalizadores, mormente no campo do Direito Penal, não pode se confundir com absenteísmo estatal (vide a minuciosa regulamentação dada pela Holanda no que tange à prostituição).

Assim, nada impede a atuação de outros ramos do Direito para disciplinar a atividade, relegando a atuação do Direito Penal às hipóteses estritamente necessárias, o que vai ao encontro do princípio do fragmentariedade.

3.1. Os argumentos contra a legalização da prostituição

A corrente que vai de encontro à legalização da prostituição defende que não existe prostituição livremente exercida. Segundo Lilian Mathieu (2003, p. 3),

vender o corpo, ou mais precisamente alugá-lo para uso sexual, constitui um dos últimos recursos possíveis quando os meios legítimos de aquisição econômica (principalmente pelo trabalho10 ou pelo auxílio social) são inacessíveis. (...) Nesse sentido, e ao contrário do que dizem algumas organizações de prostitutas ou certas feministas que defendem a "liberdade de se prostituir", o engajamento na sexualidade venal nunca é um ato voluntário e deliberado. Produto da ausência de meios alternativos de existência, ele resulta sempre de um constrangimento ou, pelo menos, de uma adaptação resignada a uma situação marcada pela miséria, a carência ou a violência.

Ainda sobre essa questão, vale a opinião de Janice Raymond (2003, p. 7):

Não há dúvida de que um pequeno número de mulheres diz que livremente escolheu ser prostituta. Elas admitem sua escolha especialmente no contexto público orquestrado pela indústria do sexo. Do mesmo modo, algumas pessoas escolhem se drogar com drogas perigosas como a heroína. Entretanto, mesmo quando algumas pessoas escolhem usar drogas pesadas/perigosas, nós ainda reconhecemos que esta espécie de droga é danosa para elas: sendo assim, a maioria das pessoas não luta para legalizar a heroína. E nesta situação, é o mal para a pessoa e não seu consentimento que vai determinar a maneira de agir do governo.

A vertente feminista antiprostituição sustenta que a legitimação desta atividade perpetraria uma violência de gênero fruto de milenar dominação exercida pelo sexo masculino em desfavor do sexo feminino.

Defendem ainda que, sobre o tema, não é suficiente a opinião das prostitutas (vez que estas não ousariam defender a mudança do “status quo” em que estão inseridas), mas sim de todas as demais mulheres da sociedade, que seriam desfavorecidas caso essa “violência de gênero” obtivesse a conivência estatal. Sendo assim, os interesses imediatos (de curto prazo) das prostitutas não poderiam ser capazes de sobrepujar os interesses mediatos (de médio/longo prazo) do restante da classe feminina, no sentido de findar com o “patriarcalismo” vigente na sociedade11.

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Ademais, entende a corrente feminista antiprostituição que esta é uma atividade socialmente desnecessária e inútil, cuja finalidade é, apenas, a manutenção do “patriarcado”, de forma que jamais poderá ser encarada como uma atividade “normal”12.

Ainda, as feministas defendem que o combate à prostituição implica, também, o combate a todo conjunto de atividades montadas ao redor da mercantilização do corpo feminino, e que o discurso da “liberdade sexual” e do “consentimento” no exercício das atividades relacionadas à prostituição só servem para encobrir as relações sociais de desigualdade (entre homens e mulheres, entre habitantes de países ricos e pobres, entre adultos e menores) sobre que recai atualmente o comércio sexual (VIGIL; VICENTE, 2006, p. 17).

Ademais, consideram que eventual regulamentação/aceitação estatal, abarcando a prostituição dentro de estatutos legais, não teria o condão de “dignificar a prostituição”, pois a indignidade na prostituição seria ínsita em si mesma. Vale a transcrição do posicionamento de Carmen Vigil e Mª Luisa Vicente (2006, p. 9), paradigma desta forma de enxergar a prostituição:

La relación entre el comprador de servicios sexuales y la persona que ofrece su cuerpo para satisfacerlos es, siempre, una relación de sujeto a objeto, porque lo que el primero demanda, cualquiera que sea la percepción subjetiva de la segunda, es un cuerpo sin más, cuánto más joven mejor. La prostitución despoja a las mujeres prostituidas de su condición humana, de su naturaleza de seres pensantes dotados de razón e inteligencia, y las reduce a una condición puramente animal: en tanto que prostitutas, ellas son solamente uma anatomia femenina, uma masa de carne, unas tetas, unos agujeros (boca, vagina,ano) en los que introducir los órganos genitales masculinos. Ellas personifican la condición de “sexo”, de placer degustable y consumible atribuida a las mujeres en general. La asunción voluntaria de esta función por parte de algunas prostitutas no sólo no modifica sus relaciones objetivas con los consumidores de servicios sexuales, sino que facilita su utilización por parte de éstos.

Outrossim, a corrente recalcitrante sustenta que a legalização da prostituição, longe de reduzir o tráfico, o favorecerá, pois tornará o negócio mais rentável, vez que poderá ser exercido “abertamente”.

Ademais, alega-se que a legalização da prostituição acarretará aumento do crime organizado (o que se mostra despido de sentido, pois as organizações criminosas, por definição, se relacionam com atividades ilícitas, e, legalizando a prostituição agenciada, esta deixaria de sê-la13. Por outro lado, é improvável que os prostitutos optem por trabalhar em locais clandestinos ao invés de trabalharem em locais regulamentados, salvo se estiverem sendo coagidos a isto – e, neste caso, não será a legalização da prostituição o fator determinante da situação em que o coacto se encontra).

Defendem, ainda, que, onde a prostituição é legalizada, houve aumento no tráfico de pessoas para fins de exploração sexual14, e que a legalização da prostituição não refreia a indústria do sexo, mas só a expande (RAYMOND, 2003, p. 2)15.

Argumenta-se, ainda, que a legalização da prostituição e descriminação da indústria do sexo aumenta a prostituição infantil (RAYMOND, 2003, p. 4).

Para alguns, a legalização da prostituição acarretaria não uma minoração, mas sim um acréscimo da prostituição exercida nas ruas, pois muitos prostitutos preferirão continuar exercendo suas atividades na clandestinidade, onde não terão que pagar tributos ou fazerem exames médicos. Muitos prostitutos enfermos e irregulares continuariam a oferecera prostituição nas vias públicas16

Ademais, legalizada a prostituição, sustenta-se que haverá a criação de um “mercado paralelo”, onde adentrarão os prostitutos mais vulneráveis e em piores condições, que oferecerão seus serviços a preços mais baratos aos clientes que não querem se servir da prostituição legalizada (pois não é o cliente que se adapta à oferta, mas sim o mercado que se adapta à demanda) (GÍMENO, 2008, p. 6).

Sustenta-se, ainda, que a prostituição causa indeléveis danos psicológicos aos prostitutos17, e que é uma violação aos direitos humanos que, ademais, são universais e indisponíveis.

Alguns entendem, ainda, que a sexualidade pertenceria ao recôndito mais íntimo do ser humano, e vendê-la seria coisificar aquele que a oferece18.

A legalização da prostituição é vista com recalcitrância até mesmo por alguns profissionais da área. Muitos temem a diminuição do lucro em razão do pagamento de tributos19, bem como as consequências da imposição de jornadas de trabalhos fixas, as regras a que seriam submetidos, etc.

3.2. Os argumentos a favor da legalização da prostituição

Por outro lado, não faltam vozes a favor da legalização da prostituição.

“Não causamos dano algum, queremos ser legalizadas”, era o grito unânime que presidiu uma manifestação massiva de prostitutas na Barcelona dos anos 80, quando, todavia, as atividades correlatas à prostituição estavam submetidas ao crivo do Direito Penal que castigava os empregadores do mercado do sexo (ABREU, 2006, p. 1).

Os que são a favor da legalização entendem que, com ela, e com a consequente intervenção estatal em relação à prostituição, haveria a redução do tráfico de pessoas destinadas à exploração sexual, pois permitiria às autoridades conhecer quem exerce a atividade de forma legítima ou não20.

Outrossim, Maria Luisa Abreu Maqueda (2006, p. 2) critica:

Criminalizando su entorno y sus relaciones no se les protege, sino que se les oculta en la subcultura de lo desviado, garantizando su victimización. La prohibición crea estigma, aislamiento y mayores dosis de vulnerabilidad e indefensión para sus supuestos beneficiarios.

Ademais, o comércio sexual pode ser encarado como decorrência da autonomia da vontade (princípio constitucional implícito21), do direito fundamental à intimidade22 e da liberdade sexual dos indivíduos, não cabendo ao Estado imiscuir-se no âmbito dessas relações se exercidas por pessoas capazes de maneira livre, consciente e desimpedida. Afinal, impor que o único sexo “legítimo” seja o sexo gratuito deságua num intervencionismo estatal inconcebível, que fomenta uma suposta sexualidade “correta”, com resquícios ditatoriais.

Os que defendem a legalização da prostituição entendem, ainda, que a criminalização desta atividade representa traços morais que são inconcebíveis com um intervencionismo penal mínimo.

Por outro lado, como bem sintetiza Paulo Roberto Ceccarelli (2008, p. 9-10):

Evidentemente, não se pode negar que, no Brasil, a miséria seja um dos maiores fatores que leva as mulheres à prostituição. Entretanto, atribuir a entrada e a permanência nessa prática unicamente a questões financeiras é um argumento redutor, além de misógino, pois nega, mais uma vez, o direito à mulher de escolher livremente como quer viver sua sexualidade. Ou seja, se posicionar como sujeito desejante e histórico, fazendo da prostituição uma escolha como qualquer outra. (...) Além disso, a sociedade que cria fiscalizações, sanções e punições às atividades de prostituição em nome da moralidade e dos bons costumes é a mesma que cria subterfúgios para manter esses serviços ativos e disponíveis quando a ocasião, e/ou a necessidade, se apresentar.

Nucci (2014, p. 113), citando Beatriz Gímeno, aponta que a Organização Internacional do Trabalho não somente considera a prostituição como um trabalho que deve ser regulamentado como tal, mas também afirma que esta regulação seria boa para os países pobres que dessa maneira poderiam encontrar, na prostituição, uma importante fonte de ingressos de receita ou aumentá-la com os impostos que seriam cobrados dos prostitutos.

Ademais, numa sociedade capitalista tal qual a atual, nada mais natural que a prestação de serviços sexuais tenha, também, se mercantilizado. E seus consumidores não são, necessariamente, homens prepotentes, machistas, que veem nas mulheres mera mercadoria de consumo e que as subjugam por força de uma suposta violência de gênero.

Certamente, as feministas não consideram que as mulheres que pagam pelos serviços sexuais masculinos subjugam estes rapazes, ou que esta relação paga decorre de algum tipo de “dominação de gênero”, ou que, finalmente, vivamos numa “sociedade matriarcal” não obstante, ontologicamente, não haja nenhuma diferença entre os serviços sexuais prestados por mulheres e por homens23. Todas consubstanciam formas lícitas de trabalho, que, em última análise, buscam garantir uma sobrevivência digna (e, sim: há dignidade na vida dos prostitutos, conquanto os mais extremistas não consigam vislumbrá-la).

Ademais, “as pessoas prostituídas não se consideram aviltadas, nem tampouco exploradas sexualmente. Permanecem nessa atividade por motivos variados, a maioria dos quais se centra no ganho financeiro” (NUCCI, 2014, p. 117).

Outrossim, legalizar e regulamentar a prostituição permitiria um maior fomento às políticas públicas preventivas quanto às doenças sexualmente transmissíveis em favor dos profissionais do sexo. Vale, contudo, mencionar a observação de Isabel Holgado Fernández (apud NUCCI, 2014, p. 123), segundo a qual os principais transmissores das DSTs não são os prostitutos, mas sim os seus clientes, que chegam a pagar quantias mais altas para que façam sexo pago sem o uso de preservativo.

Legalizar a prostituição agenciada geraria, ainda, maior segurança no préstimo dos serviços dos prostitutos, que preferirão exercer as suas atividades nos estabelecimentos legalizados ao invés de se submeterem aos perigos da noite e das ruas. As exigências de higiene e salubridade passariam a ser passíveis de fiscalização pelos Auditores Fiscais do Trabalho, que deixariam de se deparar com o paradoxo que existe atualmente, qual seja, o de saber sobre a existência destes locais (que são de conhecimento público e notório), mas não fiscalizá-los por se tratarem de “comércios clandestinos” aos olhos da lei.

Por fim, legalizar a prostituição agenciada representaria um estímulo para que estes sujeitos buscassem seus direitos em face de eventuais violências – não a suposta “violência de gênero”, mas sim a violência real e efetiva, como estupros, homicídios, lesões corporais, etc. Poderiam, então, buscar a tutela da segurança pública, e não teriam que buscar socorro nos “cafetões” e “cafetinas” em prol de proteção, uma vez que a sua atividade sairia das sombras da clandestinidade.

Sobre o autor
Darlon Costa Duarte

Analista Judiciário - Área Judiciária do Supremo Tribunal Federal. Graduado em Direito pela Faculdade Baiana de Direito e Gestão. Pós-graduando em Direito Administrativo pela Universidade Anhanguera.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DUARTE, Darlon Costa. Os modelos da disciplina penal acerca da prostituição, a problemática da sua legalização e suas possíveis consequências sociais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4598, 2 fev. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46174. Acesso em: 22 dez. 2024.

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