INTRODUÇÃO
Este artigo visa apresentar aspectos históricos, conceitos, fundamentos e aplicações práticas da Teoria do Domínio do Fato, com ênfase em sua aplicação no julgamento da ação penal 470, pelo Supremo Tribunal Federal, julgamento este que ficou popularmente conhecido como “mensalão”.
A Teoria do Domínio do Fato, originariamente concebida pelo alemão Hans Welzel, em 1939, e que veio a se tornar internacionalmente conhecida após a publicação da obra Täterschaft und Tatherrschaft (“Autoria e Domínio do Fato no Direito Penal”), pelo jurista Claux Roxin, em 1963.[1]
Recentemente, ganhou amplo destaque nas discussões jurídico-acadêmicas brasileiras e mesmo no noticiário nacional após ter sido usada como fundamento, pelo ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ação penal 470, para a condenação do réu e ex-ministro chefe da Casa Civil, José Dirceu.
Esta Teoria relaciona-se ao tema envolvendo o concurso de pessoas na prática de um delito e suas principais ponderações levam em conta a conduta dos envolvidos no crime e não o resultado em si do mesmo.
Para a Teoria do Domínio do Fato, o autor não é somente aquele que executa o crime, mas é também aquele que tem o poder de decisão sobre a realização do fato típico e utiliza-se de outrem para executá-lo. Distingue-se de um mero partícipe, na medida em que este tem conduta acessória no delito.
Portanto, a Teoria em questão aduz a uma interpretação extensiva do conceito de autoria, segundo um critério final-objetivo, entendendo-se também como autor aquele que domina a realização do crime, arquitetando, controlando e instruindo a sua execução, bem como a sua continuidade; este personagem seria autor, não um mero partícipe. Contrapõe-se à interpretação da autoria, segundo o critério formal-objetivo que aponta como autor, exclusivamente aquele que realiza a conduta do verbo típico.
Deste modo, esta Teoria consegue, em tese, resolver situações que envolvem autoria mediata, designando como autor, nestas circunstâncias, aquele que se valeu de outrem para a prática do delito.
Para o Código Penal em vigor, adota-se o conceito restritivo de autoria e não há distinção entre autor e partícipe em consideração às penas aplicáveis.
A Teoria do Domínio do Fato surgiu como proposta para completar, por assim dizer, interpretações mais restritivas do conceito de autoria, resolvendo todas as situações relacionadas a esta e à participação.
De todo modo e qualquer que seja a teoria utilizada para a interpretação do conceito de autoria ou participação em um delito, a condenação somente pode estar alicerçada na culpabilidade do agente, devendo esta ser demonstrada por provas lícitas e convincentes, após o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, sem os quais não há de se falar em respeito à dignidade da pessoa humana, princípio norteador do Direito.
Ademais, um dos elaboradores da Teoria do Domínio do Fato, Claus Roxin, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, em novembro de 2012, no Rio de Janeiro, rechaçou qualquer tentativa de desvirtuar os princípios desta Teoria. Reafirmou que a condenação deve sempre ser baseada na apresentação de provas e que a simples posição hierárquica de comando não fundamenta o domínio do fato.[2]
É exatamente estas considerações que causaram calorosas discussões recentes sobre a aplicação desta Teoria para a condenação do réu José Dirceu, na ação penal 470, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, alcunhada de “mensalão”.
Não houve e não há consenso entre os juristas e estudiosos do Direito pátrio sobre a correta inserção desta Teoria no julgamento citado.
Enquanto uns defendem que ela sofreu adequações para condenar, outros alegam ter sido corretamente aplicada, uma vez que não se trata de algo inédito na doutrina penal brasileira, sendo que, ao se estudar Direito Penal, particularmente o tema “concurso de agentes”, qualquer um tem contato com o conceito e aplicabilidade da Teoria do Domínio do Fato.
Para apoiarem suas opiniões, conclamam exemplos históricos desta aplicabilidade, como se explica abaixo.
A Alemanha, o berço da Teoria, é também o país onde é mais utilizada desde a sua aplicação pelo Supremo Tribunal Alemão no julgamento dos crimes cometidos durante a divisão do país, por oficiais da Alemanha Oriental. Tais oficiais, dentre eles o ministro do Interior, foram condenados com base nesta Teoria, uma vez que foram admitidas suas autorias nos homicídios daqueles que tentaram fugir da ex-República Democrática Alemã. Muito embora não tenham sido os executores, foram autores mediatos, em outras palavras, mandantes.
Outros exemplos estão na América Latina, quando tal Teoria foi utilizada para os julgamentos do ex-ditador Alberto Fujimori e da Junta Militar da Argentina.
Alberto Fujimori foi condenado como mandante de homicídios e sequestros, pois a Suprema Corte do Peru entendeu que ele dominava as ordens para tais crimes, durante o seu governo.
Já na Argentina, os comandantes da Junta Militar foram condenados admitindo-se que deles partiram as ordens para sequestro e morte de todas as pessoas opositoras do regime militar daquele país.
Como se percebe, a Teoria foi aplicada nestes países em casos de grande relevância nacional, sempre pelas Cortes Superiores e sempre envolvendo o comando político local, nas figuras dos réus governantes.
Contudo, muito embora presente nos Manuais de Direito Penal do Brasil, a Teoria do Domínio do Fato nunca havia sido albergada como tese para a condenação pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro.
Vem deste fato a estranheza e, consequentemente, a controvérsia sobre o tema após a inaugural utilização no julgamento do escândalo político do “mensalão”.
À semelhança dos exemplos históricos citados, estiveram em cena o tema da corrupção, com abuso do poder político, e a condenação de eminentes figuras da cúpula governista do país.
Se por um lado as condenações dos réus não encerram os debates sobre a correta aplicação da Teoria do Domínio do Fato, sem dúvida, de outra sorte, a introduziu definitivamente na jurisprudência do STF.
1. CONCURSO DE AGENTES
O concurso de agentes ocorre quando um mesmo crime é cometido por mais de uma pessoa. Dois ou mais agentes se unem com o desígnio comum de praticar determinado crime.
Segundo Luís Regis Prado, para a caracterização do concurso de agentes, são requisitos elementares:
a) pluralidade de pessoas e de conduta; b) relevância causal de cada conduta (nexo causal eficaz para o resultado); c) liame subjetivo ou psicológico entre as pessoas (consciência deve ser idêntica ou juridicamente uma unidade para todos a contribuir para uma obra comum); d) identidade do ilícito penal (o delito deve ser idêntico ou juridicamente uma unidade para todos).[3]
Estando presentes todos estes pressupostos, há concurso de agentes de um crime.
Contudo, nos casos concretos, uma vez que se constate pelo concurso de agentes, é imperioso estabelecer qual é o papel de cada um deles no crime.
O ordenamento jurídico pátrio, assim como a doutrina e a jurisprudência, admite dois papéis possíveis para o agente de um delito em concurso de agentes: é co-autor ou partícipe.
2. AUTORIA
O Código Penal de 1940, em seu artigo 29, não distingue, quanto à conduta delituosa, autor ou partícipe, uma vez que preceitua que aquele que concorre, de qualquer modo para o crime, estará sujeito às penas impostas pela lei, na medida de cada culpabilidade.
Mas a distinção entre autor e partícipe se dá, expressamente, no Código Penal por meio dos parágrafos 1º e 2º do artigo 29, conforme se transcreve.
Art. 29, CP – Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.
§ 1º - Se a participação for de menor importância, a peã pode ser diminuída de um sexto a um terço.
§ 2º - Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste, essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave.
Ao referir que aquele que concorreu para um resultado de menor importância, terá pena diminuída de um sexto a um terço, conforme art. 29 § 1º deste Código diferencia-se este como partícipe.
Com igual conseqüência, o parágrafo 2º do mesmo artigo, estabelece que o participante que quis enveredar pelo ato criminoso, intentando um delito menos grave, deve responder por aquele de seu objetivo, muito embora outro tenha sido o resultado, com a ressalva de pena aumentada na hipótese de ser previsível o deslinde mais grave.
Deste modo, é possível perceber distinção expressa entre as conseqüências dos atos do autor e do partícipe, à luz do ordenamento jurídico.
Porém, quanto ao conceito dos personagens do crime, autor e partícipe, não há qualquer referência no Código Penal.
Em decorrência disto, tal função foi assumida pela doutrina, que o fez por meio de critérios interpretativos para se atingir o conceito almejado.
Neste sentido, doutrinariamente, surgiram conceitos de autoria mais restritivos e outros mais abrangentes, e, por fim, um conciliatório, dito intermediário, trazido pela Teoria do Domínio do Fato.
2.1. Conceito restritivo
Segundo o critério restritivo para a definição de autoria, autor é, exclusivamente, aquele que pratica a conduta descrita no núcleo do tipo penal. Distinguindo-se sob um prisma mais objetivo ainda, a participação conceitua-se também por duas teorias: teoria objetivo-formal e teoria objetivo-material, ambas intimamente relacionadas à conceituação restritiva de autoria.
Para a teoria objetivo-formal, autor é o que executa o verbo do tipo penal e, em contrapartida, partícipe é todo aquele que contribuiu para o crime, mas não executou o verbo do tipo.
Já a teoria objetivo-material, conceitua o autor segundo sua contribuição para o delito. Autor, segundo esta teoria, seria aquele que mais colabora para a ocorrência do crime, sendo partícipe aquele que tem menor contribuição para que este aconteça.
O principal problema envolvendo o conceito de autoria por este critério restritivo, quer em sua forma objetivo-formal ou objetivo-material, é punir, como autor, aquele que se vale de uma outra pessoa como instrumento para a conduta criminosa, ou seja, para punir o autor mediato, uma vez que este nunca pratica o verbo descrito no tipo penal.
Em situações concretas como a de um chefe de uma quadrilha que, estando à frente de toda uma ideação criminosa, elaborando, orientando e dominando todo o fato delitivo, pelo critério restritivo acima descrito, jamais poderia ser imputado como autor de qualquer crime, pois, segundo conceitua tal critério, não teria executado o verbo do tipo penal descrito.
Diante deste severo viés conceitual, outras teorias surgiram para conceituar a autoria.
2.2. Conceito extensivo
Absolutamente distinto do critério restritivo para conceituação de quem é autor de um crime, o critério extensivo não considera diferenças entre autor e partícipe.
De acordo com o critério extensivo, autor é toda a pessoa que colabora para que um crime venha a ocorrer. Este critério parte da teoria conditio sine qua non, ou teoria de equivalência das condições, segundo a qual, quaisquer condutas anteriores ao fato, podem ser consideradas culpáveis pelo resultado.
Aquele que instiga ou é cúmplice, é igualmente autor, segundo o critério extensivo, posto que não se valoriza a contribuição da conduta de cada concorrente e sim, prioriza-se a atenção ao resultado das condutas envolvidas.
Apesar de, objetivamente, não haver neste critério distinção entre autor e partícipe, admite-se que a participação impõe menor parcela de culpabilidade, em comparação com a autoria. Sendo assim, a punibilidade do partícipe é limitada.
É para poder haver diferenciação capaz de limitar a punibilidade do partícipe, que os adeptos do critério extensivo de conceituação de autoria também o são da teoria subjetiva da participação, entendidos conjuntamente.
Desta forma, pela teoria subjetiva, autor é aquele que executa o crime com animus auctoris (deseja o fato com interesse próprio), enquanto que o partícipe o faz com animus socii ou alheio.
Uma crítica que o critério extensivo recebe é que não dá qualquer relevância para a realização da conduta descrita no verbo do tipo penal.
Outra crítica, não menos relevante, é de que, se seguida à risca, a teoria subjetiva poderia deixar de punir como autor, por exemplo, um matador profissional que cometeu homicídio com animus socii, por ter recebido vultosa quantia de dinheiro daquele que verdadeiramente possuía a vontade própria de banir da vida a vítima.
Ambas as críticas mereceram criteriosa atenção e, em consonância com as falhas dogmáticas do critério restritivo acima apresentado, tornaram necessária uma teoria intermediária, que vislumbrasse situações não amparadas por estes dois critérios de conceituação de autoria.
Neste contexto, apresentou-se a Teoria do Domínio do Fato, conhecida ainda como teoria finalista.
3. TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO
3.1 Conceito
Trata-se de uma Teoria que visa aferir a autoria do delito, contrapondo-se à teoria objetiva de determinação da autoria, buscando explicar a autoria mediata e a figura do mandante, situações não abarcadas pelos outros critérios de determinação de autoria do crime.
Na autoria mediata, o agente não realiza o verbo do tipo e nem concretiza a realização do fato, exatamente porque se utiliza de outrem para tanto.
Mas tal Teoria não se limita a definir autor como o executor ou o autor mediato. Para ela, autor é ainda aquele que, sem realizar a ação típica, planeja, organiza e decide a atividade dos demais personagens do crime, pois ele tem o domínio finalista da ação delitiva. 6 É o chefe do grupo, o mandante.
Ter domínio do fato significa que o autor tem domínio sobre o resultado típico, o controle subjetivo e final do fato e de suas circunstâncias, atuando pessoalmente no exercício deste controle.
Denota-se disto que é uma Teoria que se assenta em princípios relacionados à conduta e não ao resultado.
Segundo Damásio E. De Jesus:
É a teoria que passamos a adotar. Em outras palavras, nossa posição adere à teoria do domínio do fato, que é uma tese que complementa a doutrina restritiva formal-objetiva, aplicando critério misto (objetivo-subjetivo). De notar, pois que a teoria do domínio do fato não exclui a restritiva. É um complemento. Unem-se para dar solução adequada às questões que se apresentam envolvendo autores materiais e intelectuais de crimes, chefes de quadrilha, sentinelas, aprendizes, motoristas, auxiliadores, indutores, incentivadores etc. Sob rigor científico, é mais um requisito da autoria que uma teoria do concurso de pessoas.[4]{C}
Por ocupar uma posição intermediária entre a teoria objetiva e subjetiva sobre a autoria, a Teoria do Domínio do Fato, também conhecida como finalista, é considerada conciliatória entre estas.
Reveste-se de importância uma vez que, ao distinguir com clareza a figura do autor e do executor, posiciona facilmente, no contexto em que se fizer presente, a pessoa do autor mediato e do mandante.
Na seara penal, não é tarefa fácil, como poderia se pensar, a distribuição das responsabilidades nos delitos praticados, quando da presença de mais de um agente. Esta dificuldade aumenta ainda mais quando se está diante da responsabilização de agentes que fazem parte de uma mesma empresa, organização criminosa ou, como no caso da ação penal 470, organização político-governamental. A Teoria do Domínio do Fato buscou uma justa forma para definir os limites da autoria e da participação.
Esta dificuldade advém do fato de que os chefes das organizações de qualquer natureza, pela posição hierárquica em que se encontram, podem coordenar as práticas criminosas executadas por seus subalternos sem precisarem, eles mesmos, executarem a conduta típica.
Se por um lado a busca da justiça deve passar necessariamente pela imputação de crime ao mandante, igualmente, como se percebe, é difícil a coleta de provas, elementos materiais, por excelência, que vinculem o mandante ao crime.
Apesar das controvérsias e distorções que envolveram a Teoria do Domínio do Fato, quando do julgamento da ação penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal, há de se afirmar que tal teoria em nada se aproxima da responsabilidade objetiva, nem tampouco com a temática da substituição de provas por indícios.
Segundo a professora livre docente de Direito Penal na USP, Janaína Conceição Paschoal, esta Teoria deve ser aplicada no momento de se averiguar se determinado concorrente de um delito teve ou não domínio sobre o fato em questão. Se teve domínio sobre o fato, deve ser considerado co-autor e, em caso contrário, partícipe.[5]
Em momento algum, a Teoria em questão afasta a necessidade de se provar a culpabilidade do mandante. Sua mera posição hierárquica não motiva a condenação, o que seria admitir a responsabilidade objetiva indiscriminada, vedada no Direito Penal.
Em contrário, para o Direito Penal, a responsabilidade pelo delito praticado é subjetiva, sendo essencial a demonstração de dolo ou culpa por parte do agente, o que se faz por meio de provas que o vinculem, num nexo de causalidade, ao crime. Já na responsabilidade objetiva, observada particularmente no Direito Civil, há a responsabilização mesmo sem a necessidade de se comprovar culpa ou dolo. Por mera prática de determinados atos, considerados em lei, assume-se o risco pelo resultado. Em existindo o dano, há a responsabilização direta do agente.
Nos casos em que prevalece a responsabilidade objetiva, somente a quebra do nexo de causalidade entre o ato do agente e o resultado, exime este de culpa, afastando a necessidade de indenização.
Um caso ilustrativo de responsabilidade objetiva do Direito Civil é a conduta do cirurgião plástico que venha a provocar dano estético permanente no paciente.
Sua conduta é considerada de resultado e não de fim, existindo, neste caso, prevalência da responsabilidade objetiva. Não há necessidade de se demonstrar culpa ou dolo, sendo essencial somente que se demonstre o nexo causal entre o ato do profissional e o resultado do dano, para ensejar a reparação civil.
Diferentemente, no Direito Penal, há a sempre premente necessidade de se demonstrar, inequivocamente, a culpa ou o dolo na conduta do agente a fim de se imputar as penalidades previstas em lei.
3.2 Origem
Historicamente, quem trouxe as primeiras considerações relevantes sobre a figura do mandante, no concurso de agentes, foi Cesare Beccaria, em sua obra Dos Delitos e das Penas, capítulo XXXVII, conforme se transcreve:
(...) quando houver vários cúmplices do delito, e não todos eles executores imediatos, mas por diferentes motivos. Quando vários homens se unem num risco, quanto maior for este risco tanto mais eles procuram tornar igual para todos. Será, pois, mais difícil achar quem se contente com o papel de executor do delito, correndo maior risco do que os outros cúmplices. A única exceção seria a hipótese em que fosse prometido prêmio ao executor, caso em que, tendo ele, então, recompensa pelo risco maior, a pena deveria ser igual.[6]
Contudo, somente em 1939, a Teoria do Domínio do Fato surgiu, por obra de Hans Wenzel, jurista alemão, com a criação do finalismo no tocante ao concurso de agentes, entendido assim, como autor, aquele que tem o controle final do fato nos crimes dolosos.
Hans Wenzel a idealizou com a finalidade de alcançar juridicamente as autoridades nazistas da Alemanha, que ordenaram atrocidades contra a humanidade, mas que, encontrando-se em posição de meras mandantes, não responderiam por seus crimes, uma vez que não foram autores imediatos dos mesmos.
Entretanto, a doutrina reconhece a figura do jurista alemão Claus Roxin, como o grande responsável pela elaboração, difusão e aplicabilidade desta Teoria, nos meios jurídicos.
Pela obra publicada em 1963 e intitulada Täterschaft und Tatherrschaft (Autoria e Domínio do Fato no Direito Penal), Claus Roxin obteve a cátedra de Direito Penal da Universidade de Munique.
Claux Roxin elaborou tal Teoria, sustentando como razão ideológica, sua insatisfação com a jurisprudência alemã de meados de 1960, a qual julgava como partícipe e não autor de um crime, aquele que, ocupando posição de comando, dava a ordem para a execução de um delito”.
Na concepção de Roxin, aquele que profere ordem para que outrem cometa um crime, mesmo não estando presente na cena deste, não só faz parte da organização criminosa, como é autor do tipo penal em questão. Isto porque, ele domina a vontade da ação, então, sem ele, o crime não se configura. Diferentemente, caso fosse partícipe, não possuiria o domínio do fato, sendo sua ação, apenas acessória.
4. QUESTÕES ESSENCIAIS SOBRE A TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO
4.1. O mandante
É elemento essencial desta Teoria que o agente que realiza a conduta descrita no verbo do tipo penal seja o verdadeiro senhor de seus atos, podendo, em assim desejando, inclusive deixar de lado a empreitada criminosa. Portanto, tanto é autor, conforme conceito restritivo aqui abarcado, aquele que executa o crime, como o autor mediato e o mandante.
O Direito Brasileiro, como exemplo, indiretamente, prevê em seu artigo 121, § 2º, I, do Código Penal, a figura do mandante, ao qualificar o homicídio mercenário; é que, aquele que mata mediante paga ou promessa de recompensa, tem sua pena aumentada:
Art. 121, § 2º - Se o homicídio é cometido: I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por motivo torpe (...) Pena – reclusão de doze a trinta anos.
Ora, se há quem mate para receber quantia em pagamento, supõe-se existir aquele que a paga, ou seja, o mandante.
Mas, a grande inovação da Teoria do Domínio do Fato, está exatamente em considerar autor também aquele que tem o manejo dos fatos, que elaborou e, somente por razões de divisão de tarefas delituosas decididas pelo grupo de criminosos, não foi o executor do crime.
Contudo, tendo tido, desde o início da ideação criminosa, vontade de ação e domínio do fato, segundo esta Teoria, irrefutavelmente, é autor da conduta típica, podendo a ele ser imputada pena, provada a sua culpabilidade.
Deste modo, o mandante tem o domínio funcional do fato, não podendo ser considerado partícipe, uma vez que este, ao contrário, tem conduta acessória, ou seja, não tem o condão de decidir as diretrizes do fato delituoso.
Em concordância com este pensamento, assim decidiu o TJSP:
Agente que não atuou na execução material dos delitos. Possibilidade de ser considerado co-autor, se na empreitada criminosa concertada por prévio acordo de vontades, lhe foi incumbida atividade complementar para a obtenção da meta optada, cabendo-lhe parte do ‘domínio funcional do fato’. Divisão do trabalho que importa na responsabilidade pelo todo, independentemente de não ter o agente atuado na execução material dos crimes em sua totalidade, mas todos conducentes à realização do propósito comum.[7]
4.2. A condenação
Como salientado anteriormente, a Teoria do Domínio do Fato surgiu como proposta para completar as interpretações mais restritivas do conceito de autoria, resolvendo situações cujo seguimento fiel, quer da teoria subjetiva, quanto da objetiva, poderiam levar à falha do Estado em punir determinado personagem que participou de ação criminosa.
Também fora discorrido anteriormente que tal Teoria em momento algum se filia à idéia de responsabilidade objetiva pelo fato típico.
Admitir que ela poderia abarcar esta tese soa inconsistente com o seu conceito histórico idealizado, bem como com a jurisprudência que já se utilizou de sua base em casos concretos, como o julgamento do ditador Alberto Fujimori, da Junta Militar argentina e dos militares da antiga Alemanha Oriental.
A condenação, baseada na Teoria do Domínio do Fato somente pode estar ancorada na culpabilidade do agente. E esta culpabilidade, como sempre, deve ser demonstrada por provas sólidas, lícitas e convincentes.
De outro modo, estaria sendo desconsiderados princípios constitucionais fundamentais como a dignidade da pessoa humana, a presunção de inocência. O formalismo processual democrático, enraizado no devido processo legal, ampla defesa e contraditório, também sofreriam sérios riscos de serem banalizados e mesmo banidos, com todas as inefáveis conseqüências do que isto pode representar para um Estado Democrático de Direito.
Não foi outra a posição do próprio elaborador da Teoria, Claus Roxin, que assim declarou em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, em 2012, em oportunidade em que esteve presente no Rio de Janeiro, quando perguntado se um acusado poderia ser condenado apenas pelo fato de sua posição hierárquica (aludindo aos contornos da responsabilidade objetiva pelo ato): Não, em absoluto. A pessoa que ocupa a posição no topo de uma organização tem também que ter comandado esse fato, emitido uma ordem. Isso seria um mau uso.[8]
E continuou na mesma linha, quando indagado se o dever de conhecer os atos de um subordinado implicaria corresponsabilidade:
A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato. O mero ter que saber não basta. Essa construção “dever de saber” é direito anglo-saxão e não a considero correta. No caso de Fujimori, por exemplo, foi importante ter provas de que ele controlou os seqüestros e homicídios realizados.
Finalmente, as jornalistas perguntaram se a opinião pública pode influenciar o juiz, situando a questão para o julgamento da ação penal 470, pelo Supremo Tribunal Federal. Esta foi a resposta:
Na Alemanha temos o mesmo problema. É interessante saber que aqui também há o clamor por condenações severas, mesmo sem provas suficientes. O problema é que isso não corresponde ao Direito. O juiz não tem que ficar do lado da opinião pública.
Destarte, a Teoria do Domínio do Fato não é disfarce teórico para se banir a exigência de provas para uma condenação.
Foi exatamente este aspecto o que gerou mais controvérsias e discussões a respeito das condenações dos réus do “mensalão”, como se discorrerá adiante.
4.3. Co-autoria e Teoria do Domínio do Fato
Ensina Mirabete que: O concurso de pessoas pode realizar-se por meio da co-autoria e da participação” e que “a co-autoria é, em última análise, a própria autoria. [9]
É co-autor aquele que, com outras pessoas, executa uma ação ou omissão, configurando o crime. Ora, em havendo um mesmo crime e vários agentes que o concretizaram, é muito assimilável a idéia da existência, entre os co-autores, do princípio de divisão de tarefas criminosas. De fato, isto ocorre.
Quando os co-autores se unem pelo ânimo criminoso comum, repartem o trabalho do crime, visto que compartilham de um mesmo objetivo desde sempre: o resultado que é o delito em si.
É elemento imperioso para se falar em co-autoria, exatamente o domínio do fato dos agentes, ou seja, a vontade de cometer o crime, sendo todos os envolvidos, senhores de seus atos.
Se faltar a consciência uníssona entre os agentes para o cometimento do delito, não se pode falar em co-autoria; e se, o crime vier a ocorrer, está configurada uma situação de autoria colateral ou imprópria, posto que nesta, inexiste a cooperação consciente entre os concorrentes da conduta típica.
Nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt: A ausência do vínculo subjetivo entre os intervenientes é o elemento caracterizador da autoria colateral.[10]
Na autoria colateral coexistem as condutas dolosas dos agentes que se convergem para um mesmo resultado, porém os agentes desconhecem a intenção uns dos outros.
Um possível problema em relação à autoria colateral está na situação em que é impossível definir qual agente provocou a ação ou omissão determinante do resultado. Este caso conduz à autoria incerta que, pelo princípio do in dubio pro reo, minimiza a aplicabilidade da pena a cada agente, na medida em que sua culpabilidade não pode ser provada.
Para a Teoria do Domínio do Fato, a definição de co-autoria é de suma importância e explicita exatamente a forma apropriada de se distinguir autor e co-autor. É autor o agente que, em concurso de pessoas unidas subjetivamente no intuito criminoso, realizam um resultado desejado, que é o delito. É aquele que, aceitando entrar na empreitada criminosa, tem total domínio dos fatos, quer executando ou mandando, conforme a divisão das tarefas propostas pela organização criminosa.
Nos dizeres de Luís Regis Prado, na co-autoria, há “um condomínio do fato”.
Tal Teoria, no tocante à co-autoria, abarca sob um só manto todos aqueles que possuem o objetivo criminoso, uma vez que compartilham de um domínio do fato unitário; pouco importando a parcela da tarefa criminosa que irá desempenhar: planejar, organizar, executar, ordenar etc.
Para ser chamado de autor, basta que, por sua contribuição, o delito tenha se realizado com o sucesso que a organização esperava quando se uniu.
Contudo, de maior importância ainda, esta Teoria é a que melhor se adapta à questão de imputação da responsabilidade penal a cada co-autor, meramente porque melhor o identifica.
4.4. Autoria direta e indireta e a Teoria do Domínio do Fato
Segundo os ensinamentos de Rogério Greco:
Autor pode ser aquele que executa diretamente a conduta descrita pelo núcleo do tipo penal, ocasião em que será reconhecido como autor direto ou autor executor; ou poderá ser, também, aquele que se vale de outra pessoa, que lhe serve, na verdade, como instrumento para a prática da infração penal, sendo, portanto, chamado de autor indireto ou mediato.[11]
O autor direto tem sempre o domínio do fato. Ele pessoalmente, e com objetivo doloso, pratica o ato criminoso. Não há qualquer resquício de dúvida deste tipo de autoria.
No entanto, a autoria também se perfaz quando um indivíduo, para concretizar uma conduta comissiva e dolosa, por ele idealizada, utiliza-se de outro para cometer o delito. Neste caso, está-se diante de uma forma de autoria mediata, ou indireta.
O autor indireto também deve deter o domínio do fato. Em outras palavras, tem de ter o controle da situação, a consciência e o dolo criminoso.
O Código Penal brasileiro considera a autoria indireta em quatro situações.
A primeira seria a hipótese abarcada no parágrafo 2º do art. 20, que define autor mediato como aquele que determinou o erro. Um exemplo clássico desta situação dentro da doutrina é o da enfermeira que mata o doente por aplicar-lhe uma injeção letal cujo conteúdo era conhecido pelo médico que lhe furtou tal informação. É autor do crime, nesta circunstância, somente o médico, pois a enfermeira não detinha o dolo criminoso.
A segunda hipótese considera autor mediato aquele que provoca coação irresistível e está fundamentada legalmente no art. 22 do Código Penal, que, em sua continuação, define a terceira situação: é autor mediato aquele que comete o crime através de um subalterno, que a ele está submisso por hierarquia. Um exemplo desta última situação seria o do delegado que ordena a prisão ilegal de uma pessoa, levada a cabo por um subalterno seu, alegando que detinha um mandado de prisão inexistente. O subalterno não cometeu crime algum, pois cumpriu, estritamente, um dever hierárquico; não detinha a consciência do crime, o domínio do fato. Ao contrário, o delegado, no exemplo, é o mandante, pois agiu com ato comissivo e doloso.
Finalmente, o art. 62, III, do mesmo diploma, determina que aquele que instiga pessoa sujeita à sua autoridade a cometer crime, ou o faz por meio de uma pessoa não punível, por sua condição pessoal, também é autor indireto.
Esta última circunstância concebida no art. 62, III, é muito comum nos dias atuais, quando chefes de quadrilhas utilizam-se de menores, inimputáveis, portanto, para cometer crimes, valendo-se da impossibilidade de punição destes.
Infelizmente, assim como em quaisquer situações que envolvam a autoria indireta, angariar provas sólidas que liguem os mandantes aos crimes, nem sempre é tarefa fácil, muito embora, imprescindível.
4.4.1. Autoria mediata e a Teoria do Domínio do Fato
A Teoria do Domínio do Fato utiliza-se basicamente da figura do autor mediato para alcançar o mandante e puni-lo. Tal autor amolda-se perfeitamente na tese idealizada por Welzel.
Nos diferentes exemplos históricos, desde a sua criação e utilização na Alemanha, como no Peru na condenação de Alberto Fujimori e na Argentina, durante a condenação dos militares de altas patentes da Junta Militar atuante durante a ditadura, ela foi aplicada exatamente para buscar a punição de superiores hierárquicos, sempre ligados aos governos dos respectivos países, que, muito embora não estivessem presentes nas cenas dos crimes, coordenaram e dominaram o fato criminoso desde o seu nascimento até a sua plena concretização.
Difícil seria conceber que, em todos estes casos, pessoas diretamente ligadas aos crimes referidos, com provas robustas nos autos, admitidas pelas Supremas Cortes dos países que os julgaram, saíssem sem punição, meramente por não estarem ligadas, materialmente, aos crimes.
De fato, o conceito de autoria mediata é a fundamentação da Teoria do Domínio do Fato e, como se desprende do texto acima mencionado, já está presente no ordenamento jurídico brasileiro.
O próprio Código Penal, de certa forma, acolhe esta Teoria em seu art. 62, I, ao definir punição mais severa àqueles que promovem, organizam ou dirigem atividade de outros agentes. Não é mais que a pura tradução do domínio do fato.
Vale, no entanto, a ressalva de que, a mera posição hierárquica não admite, pela Teoria, a condenação, se esta circunstância não vier corroborada com fartas e admissíveis provas de que o autor indireto possuía o domínio do fato criminoso e que, por mera divisão de tarefas da ação criminosa, não esteve presente na cena do crime.
Nos dizeres do jornalista Paulo Moreira Leite:
Sei que os mandantes de atos considerados criminosos não assinam papéis, não falam ao telefone nem deixam impressão digital.[12]
Não estar na cena do crime, não deixar impressões digitais ou quaisquer outras provas materiais, não exime os personagens indiretos do crime de por ele responderem, restando aos que acusam a árdua tarefa de provarem a participação daqueles.
4.4.2. Autoria mediata e participação
Em sua origem, a autoria mediata surgiu como uma forma de preencher a lacuna deixada pela teoria da acessoriedade extrema da participação.
Também, decorreu da necessidade de bem se distinguir os limites entre autoria e participação.
A participação é sempre uma conduta acessória do fato principal.
Não há participação sem que exista uma ação principal típica e punível, uma vez que a punibilidade do partícipe é acessória à do autor.
Diversas teorias são propostas pela doutrina para adequar a conduta do partícipe que, em tese, não seria punível, tornando-a condenável, à medida que é vinculada à ação principal do autor.
Assim, pela teoria da acessoriedade mínima, se a ação do partícipe pode ser ligada à do autor, já se considera a participação no crime, desde que a conduta do autor seja típica.
Já pela teoria da acessoriedade limitada, é preciso que a conduta principal seja típica e antijurídica, isto é, contrária ao Direito.
Finalmente, pela teoria da acessoriedade extrema, exige-se que a conduta do autor seja típica, antijurídica e culpável.
Tanto a teoria da acessoriedade mínima como a extrema, sofrem severas críticas. Isto porque, pela teoria da acessoriedade mínima, uma situação, por exemplo, em que alguém instigasse o autor a cometer homicídio em legítima defesa, seria condenado por participação em homicídio, uma vez esta teoria exige tão somente que a conduta do autor seja típica, pouco importando se antijurídica.
Por outro lado, pela teoria da acessoriedade extrema, aquele que instiga um menor ou doente mental a cometer um homicídio, por nada responderia, uma vez que a conduta destes autores, por suas características especiais, seria considerada não culpável.
Destarte, a teoria que parece ser mais apropriada para definir a participação é mesmo a teoria da acessoriedade limitada.
O Código Penal brasileiro não elencou taxativamente todas as formas de participação, limitando-se a exemplificá-la no art. 31, que traz em suas letras o ajuste, a instigação e o auxílio, como formas de agir do partícipe.
A doutrina majoritária sobre o assunto destaca duas principais formas de participação: a instigação e a cumplicidade.
O partícipe que instiga age reforçando uma idéia já existente do autor, estimulando-o a agir segundo esta.
Aquele que induz o autor, também atua com participação. Isto porque, nesta modalidade, na indução, o partícipe faz surgir uma idéia criminosa inexistente no autor, que vem a desenvolvê-la, ou seja, vem a cometer o crime.
Embora distintas conceitualmente, a instigação e a indução se igualam como formas de participação moral, ou seja, influentes na vontade do autor.
Já a cumplicidade é uma participação material no crime. Exterioriza-se de modo palpável como uma colaboração com o crime. É, por exemplo, o caso do empréstimo de um carro para um seqüestro ou de uma arma para o homicídio.
De qualquer modo, deve-se distinguir claramente a participação da autoria mediata quer por se tratarem de conceitos diversos, quer porque suas punições são distintas.
Na participação, a conduta do partícipe é sempre acessória e ele responde na medida da sua culpabilidade, sempre que o autor é punido.
O partícipe apenas coopera com o crime, incitando-o ou auxiliando-o.
Na autoria mediata, o agente não atua com conduta meramente acessória. Possuindo o domínio do fato, este personagem, que é autor, utiliza-se de outrem para a prática delituosa que sempre almejou, dolosa e comissivamente.
O autor tem do domínio final do fato, no sentido de que pode, a qualquer tempo, decidir quanto à sua realização e consumação. Ele tem o controle subjetivo sobre as ações e atua exercitando este controle.
O Código Penal brasileiro, em seu artigo 29, §§ 1º e 2º, determina que a participação tenha pena diminuída de um sexto a um terço, caso seja de menor importância e que aquele que quis participar de crime menos grave e acabou, pelas circunstâncias, envolvido em crime de maior potencial ofensivo, responda pelo crime que intentou, desde que o mais grave não pudesse ser previsível.
O partícipe responde por concorrer em fato alheio, uma vez que a sua responsabilidade é acessória, derivada da do autor.
Já o autor mediato, sempre responde pelo crime que cometeu, na medida da sua culpabilidade, uma vez que sua responsabilidade é originária.
4.4.3. Autoria mediata e crime de mão própria
Os crimes próprios não afastam a possibilidade de autoria mediata.
Tratam-se de crimes que, por definição expressa do tipo penal, somente podem ser cometidos por aqueles que gozam de características especiais para a sua execução.
Assim é que somente funcionários públicos podem cometer peculato e somente a mãe em estado puerperal pode cometer infanticídio.
Destarte, é este o ensinamento de Rogério Greco: Entendemos ser perfeitamente possível a autoria mediata em crimes próprios, desde que o autor mediato possua as qualidades ou condições especiais exigidas pelo tipo penal.[13]
No entanto, os crimes de mão própria não admitem a autoria mediata.
Crimes de mão própria são aqueles em que o autor deve praticar, pessoalmente, a conduta típica expressa no tipo penal.
Deste modo, somente a testemunha pode cometer crime de falso testemunho, somente o militar pode cometer o crime de deserção e apenas o funcionário público pode prevaricar.
A ação criminosa, nos crimes de mão própria, não pode ser transferida a ninguém, assim, não há de se falar de autoria mediata para estes crimes.
Não é outro o ensinamento de Júlio Mirabete, sobre este tema:
Não há possibilidade de autoria mediata nos crimes de mão própria. É possível, porém, a participação nestes ilícitos, como, também, nos crimes e contravenções de mera conduta (instigação, mandato, auxílio material etc).[14]
Tal autor admite a possibilidade de participação, exatamente porque é uma atividade acessória que colabora com a conduta do autor para que este venha a concretizar o crime, mas que, sozinha, não é capaz de definir-se como ilícito.
A conduta que instrui a participação somente passa a ter alguma relevância quando o autor, ou co-autores, iniciam o crime.
Sendo assim, o simples ato de entregar uma faca a uma pessoa não é ilícito. Porém, instigá-la a matar, entregando a faca ao autor, que vem a desferir golpes mortais contra uma vítima, é ato punível, na modalidade participação.
Deste modo também entendeu o STJ: Os crimes de mão própria não admitem autoria mediata. A participação, via induzimento ou instigação, no entanto, é ressalvadas exceções, plenamente admissível.[15]
Esta discussão reveste-se de relevância justamente porque a Teoria do Domínio do Fato é acolhida, em particular, em julgamentos que envolvem entes públicos do governo.
Sendo assim, para crimes de mão própria, como a prevaricação, não há de se falar em autoria mediata e, portanto, não há que se admitir o domínio do fato como fundamento para uma condenação.
5. LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E A APLICAÇÃO DA TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO
Apesar de recepcionada na doutrina e jurisprudência brasileira, a Teoria do Domínio do Fato e, em particular, a figura do mandante, são escassas as legislações em vigor no Brasil que evidenciam o assunto.
Algumas o fazem, dentre elas a Lei do Crime Organizado e a Lei do Meio Ambiente.
5.1. Lei do crime organizado
A Lei 12.850/2013 ou Lei do crime organizado além de definir o que vem a ser organização criminosa, dispõe sobre a investigação criminal, sobre os meios de obtenção de provas e procedimento criminal a ser aplicado.
É sem dúvida um grande avanço na legislação sobre o assunto, pois desmistifica conceitos que antes eram alicerçados pelos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, como a própria definição do que seria um crime organizado.
Além disto, busca direcionar os procedimentos investigatórios de maneira correta e uníssona, respeitados os limites da dignidade da pessoa humana em toda a sua amplitude.
Contudo, sem a adoção correlata da Teoria do Domínio do Fato no caso das organizações criminosas, a investigação deste grupo pode chegar até o envolvimento de criminosos menores, por assim dizer; até aqueles executores da conduta criminosa, deixando isentos os verdadeiros mandantes, os líderes deste tipo de organização.
Assim pensa Roger Augusto Tojeiro Morcelli:
Ocorre que, na maioria das vezes as investigações chegam apenas até os pequenos criminosos envolvidos; os verdadeiros “cabeças” da organização nunca ou quase nunca são revelados, o que faz com que a população em geral passe a desacreditar nas Comissões Parlamentares de Inquérito.[16]
Como em nenhuma outra situação, nas organizações criminosas, a figura do mandante é central.
Por vezes, existe até hierarquia de mandantes, muito bem organizados quanto aos limites funcionais de suas atuações criminosas.
Sem a aplicação da Teoria do Domínio do Fato, os verdadeiros mandantes poderiam ser tomados como meros partícipes, muito embora, em sendo os mentores do delito, deveriam ser apenados de forma mais grave.
É em prol da busca da verdadeira Justiça, que se apregoa que, nesta legislação, por sua peculiariedade, a Teoria do Domínio do Fato, seja recepcionada e aplicada.
5.2. Lei do meio ambiente
O Brasil baseou-se na teoria da dupla imputação, de origem espanhola, para a idealização e concretização da Lei 9.605/98, também conhecida como Lei do meio ambiente.
Isto porque, por tal teoria, recepcionada no art. 3º desta Lei, a própria pessoa jurídica, em razão da manifestação da vontade institucional, responde administrativamente, civilmente e penalmente pelos seus ilícitos.
Esta vontade institucional emana quer de seus representantes legais, quer de seus órgãos colegiados.
Há de se destacar que, muito embora haja a imputação da responsabilidade da pessoa jurídica, esta não exclui que as pessoas físicas envolvidas também venham a responder por seus atos, na medida de suas culpabilidades.
A Lei do meio ambiente introduz no ordenamento pátrio a responsabilização penal das pessoas jurídicas, o que é grande inovação.
Muito embora, como dito, abarcou a teoria espanhola da dupla imputação, coexistem outras teorias que tratam do assunto da responsabilização penal das pessoas jurídicas.
Pela teoria da ficção, a pessoa jurídica, como obra da imaginação, não possui vontade, não podendo cometer crimes.
Já pela teoria do direito de intervenção, originária de Portugal, a punibilidade da pessoa jurídica pode ocorrer somente no campo administrativo, através de cassação de licenças, multas e suspensões de atividades.
Finalmente, pela teoria da realidade, a pessoa jurídica podendo emanar uma vontade, traduzida por atos reais sobre o meio ambiente, deve ser penalmente responsabilizada por estes, quando os mesmos constituírem crimes.
Contudo, conforme descrito anteriormente, a teoria adotada pela Lei do meio ambiente é a da dupla imputação.
No que concerne à aplicação da Teoria do Domínio do Fato, esta é amplamente aplicável quando se fala de crime ambiental, sendo destacável a figura do mandante ou dos mandantes.
É que, por tratar-se de uma pessoa jurídica, uma organização, portanto, aquele que vem a executar o dano ambiental, em regra, não é o que tomou a decisão de fazê-lo, sendo mero executor de ordens.
Há, via-de-regra, um conselho deliberativo que, por manifestação de vontade, e tendo em vista os interesses econômicos da empresa, toma a decisão, consciente e comissiva, de pôr em prática a conduta que, posteriormente, vem a ser considerada crime ambiental.
Deste modo, para a justa punição dos responsáveis pelos crimes ambientais, que atentam contra um patrimônio que é comum à toda humanidade, necessária é a aplicação da Teoria do Domínio do Fato, na qualificação da autoria destes crimes, posto que somente esta é capaz de chegar aos mandantes, imputando-lhes penas.
6. O JULGAMENTO DA AÇÃO PENAL 470 E A TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO
6.1. Ação penal 470
A ação penal 470, alcunhada pelo delator do esquema criminoso como “mensalão”, assim ficou conhecida no Brasil.
A denúncia que iniciou esta ação foi baseada na delação de um esquema de compra de votos de parlamentares, durante o primeiro mandato do governo do então presidente Luís Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores.
Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, em junho de 2005, o deputado federal e presidente do Partido Trabalhista Brasileiro, Roberto Jefferson, levou a conhecimento público o fato de que deputados da base aliada do PT recebiam uma quantia mensal de R$ 30 mil para votarem segundo as diretrizes do governo federal.
Após investigação da Polícia Federal, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, denunciou quarenta réus, dentre eles, o ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu, tido como o chefe e mentor de todo o grupo, o presidente do PT, José Genuíno e o tesoureiro deste partido, Delúbio Soares, os quais, segundo aquele, constituíam o núcleo político do esquema de corrupção.
Estes réus seriam os responsáveis pela abordagem dos parlamentares e pagamento da quantia acordada.
Porém, segundo o Ministério Público, o esquema ilícito funcionava com três núcleos: político, operacional e financeiro.
Marcos Valério Fernandes de Souza, um publicitário e dono de agências, foi denunciado como operador do “mensalão”. Ele era o responsável pela arrecadação do dinheiro que financiava a compra de votos, junto a empresas estatais e privadas e junto aos bancos, por meio de empréstimos avalizados, mas que nunca foram pagos. A garantia que dava para estes empréstimos eram os inúmeros contratos que Marcos Valério mantinha com o governo, originário da influência que o publicitário gozava entre o alto escalão político da República.
Com o dinheiro arrecadado, parlamentares eram pagos e, uma parte do capital financiava também o caixa dois para os gastos com as campanhas eleitorais do PT.
Os políticos da base aliada aprovavam concessões de contratos do governo com Marcos Valério, fechando o ciclo criminoso.
O “mensalão” foi considerado o maior escândalo de corrupção do governo de Luís Inácio Lula da Silva e seu julgamento, ocorrido em 2013 foi tido como o grande julgamento da história do Supremo Tribunal Federal, restando 25 condenados.
6.2. Teoria do Domínio do Fato no julgamento da ação penal 470
A Teoria do Domínio do Fato, criada na Alemanha com o intuito de alçar um ideal de Justiça ao punir os chefes responsáveis pelo massacre nazista que, de outra forma, jamais seriam culpados pelos crimes que cometeram nos campos de concentração espalhados pela Europa, de certa forma, sempre ganhou relevância quanto à sua aplicação em questões envolvendo o alto escalão político das diferentes nações que a cogitaram para respaldar a determinação da autoria dos crimes cometidos por suas cúpulas governantes.
Destarte, foi utilizada para condenar oficiais de altas patentes da então Alemanha Oriental por crimes contra nacionais oposicionistas. Respaldou a condenação do ministro de interior alemão deste período pelos crimes de homicídios que cometeu, enquanto mandante.
Não foi de outra forma que alicerçou a condenação do ex-ditador Alberto Fujimori e de oficiais da Junta Militar da Argentina responsáveis por seqüestros e homicídios de opositores aos seus regimes de governo.
Em comum, tais julgamentos guardam a particularidade de serem exercidos diante das Cortes Superiores dos respectivos países, além das denúncias recaírem sobre o comando político destes.
No Brasil, a aplicação da Teoria do Domínio do Fato não seguiu padrão distinto.
Muito embora presente na doutrina jurídica nacional, tal Teoria nunca havia sido utilizada pelo Supremo Tribunal Federal como tese justificadora da autoria de um crime e, portanto, como alicerce para a condenação de um réu.
Ao contrário, são incontáveis os julgados desta Corte que acabaram arquivados devido ao fato do conteúdo probatório dos autos não conseguirem se mostrar suficientes para envolver os mandantes na cena do crime, excluindo-os, portanto de uma condenação.
Ao longo dos anos, o Supremo Tribunal Federal sempre priorizou a presunção de inocência. Sem provas robustas e materiais do envolvimento do mandante, mesmo em contraposição a fartos indícios, houve a predileção pela inocência do réu.
No julgamento da ação penal 470, a maioria dos ministros seguiu o pedido de condenação proposto pelo procurador-geral, Rodrigo Janot, assim como, acatou o relatório do ministro Joaquim Barbosa, relator do processo.
A aparente tomada de outro rumo, na seara das teses doutrinárias, gerou calorosa controvérsia entre os diferentes entendimentos de juristas sobre o assunto.
Tal controvérsia está longe de ser assunto ultrapassado e ainda não é contingente pacífico, muito embora tenha se introduzido na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
6.3. Posição favorável à aplicação da Teoria do Domínio do Fato no julgamento da ação penal 470
Partindo do pressuposto de que o Direito Penal brasileiro somente condena por ação ou omissão, nunca por mera posição, aqueles juristas favoráveis à aplicação da Teoria do Domínio do Fato no julgamento da ação penal 470, justificam sua posição afirmando, em síntese, que ela foi utilizada pelos ministros para incluir José Dirceu, como chefe da organização criminosa do esquema de corrupção.
Sem sua aplicação neste julgamento em concreto, José Dirceu jamais poderia ser alcançado e punido como autor das condutas ilícitas a ele impostas.
Alega-se que a Teoria não foi utilizada para determinar a autoria dos delitos que eram julgados e que, em nenhuma hipótese, serviu para substituir uma condenação sem provas. Ela foi conclamada apenas para distinguir se o réu era autor mandante ou mero partícipe.
Para eles, os crimes existiram, as provas apresentadas foram inquestionáveis e, somente diante deste quadro, passou-se a avaliar a qualificação dos atos de cada personagem denunciado: se praticante de conduta atípica, mero partícipe ou autor, na modalidade imediata e mediata.
O ponto mais controverso deste julgamento repousou exatamente na condenação do ex-ministro da Casa Civil José Dirceu.
Ele foi considerado culpado porque os ministros consideraram que o mesmo, durante todo o tempo que durou o escândalo, foi mentor do esquema, tendo pleno domínio dos fatos típicos que ocorriam.
Para os juristas favoráveis a esta concepção, os ministros acertaram, afinal, conforme Luís Greco: A teoria do domínio do fato define quem é o autor de um crime, em contraposição ao mero partícipe. O autor responde pelo fato próprio, sua responsabilidade é originária.
E continua:
Na prática, a teoria do domínio do fato não condena quem, sem ela, seria absolvido; ela não facilita, e sim dificulta condenações. Sempre que for possível condenar alguém com a teoria do domínio do fato, será possível condenar sem ela. [17]
Para os ministros que condenaram este réu, a Teoria serviu apenas para fixar a fronteira entre a autoria e a participação, tendo sido escolhida a primeira hipótese.
Isto porque, para eles, José Dirceu esteve presente como agente do delito, conhecia os fatos ilícitos e colaborou com ânimo doloso e conduta comissiva para a empreitada criminosa.
Sua autoria foi corroborada por meio de provas inequívocas e demonstrada com todos os seus requisitos. A Teoria do Domínio do Fato foi usada apenas para distribuir a responsabilidade entre aqueles já identificados como responsáveis em maior ou menor grau, pelos crimes apontados.
Segundo Pierpaolo Cruz Bottini:
Sabe-se que a fixação da autoria nos crimes empresariais é complexa,e muitas vezes a estrutura organizacional é voltada para ocultar os efetivos responsáveis pela determinação da conduta delitiva. E tal estratégia merece atenção, devendo ser minada por análises cuidadosas dos fluxos de poder e responsabilidade dentro das instituições – que, aliás, a Corte fez com precisão em diversas oportunidades na AP 470.[18]
Deste modo, observa-se que aqueles que concordam com a forma como a Teoria do Domínio do Fato foi utilizada como tese no julgamento da ação penal 470, admitem que houve uma fartura de provas que foram mais que convincentes para formar o juízo de que houve crime e aqueles eram os agentes deste.
Contudo, é neste ponto, o das provas, que se situa um dos mais fortes motivos do conflito de idéias envolvendo o tema.
6.4. Posição desfavorável à aplicação da Teoria do Domínio do Fato no julgamento da ação penal 470
De modo contrário, aqueles juristas que defendem a idéia de que a Teoria do Domínio do Fato não foi aplicada de modo correto no julgamento da ação penal 470, o fazem de modo ainda mais incisivo.
Numerosos são os críticos da decisão do Supremo Tribunal Federal no caso em voga.
A primeira crítica que recebe o julgamento desta ação, repousa no fato de que entendem que os réus já estavam condenados desde antes do julgamento pela Corte Suprema, em virtude do forte empenho midiático que exibia um clamor público pela condenação dos mesmos.
Para estes, a condenação dos réus e, em particular de José Dirceu, que se apoiou na Teoria do Domínio do Fato, foi política, muito mais que jurídica.
Contudo, as críticas não se limitam a este aspecto mais externo do que pareceu ser o julgamento em questão.
O ponto mais emblemático parece ser a questão das provas que se apresentaram contra o réu José Dirceu.
Para os juristas que discordam da decisão da Corte, esta deveria ter agido conforme o seu costume jurisprudencial até então: sem provas, ou em dúvida, absolve-se o acusado, com ou sem teoria do domínio do fato.
Aponta-se, neste contexto, que a Teoria foi uma tese criada com uma forte influência e motivação política, visando acusar os mandantes de crimes políticos ou de violação dos direitos humanos.
Sendo assim, a sua aplicação inaugural pelo Supremo Tribunal Federal não teve outra intenção senão a punição política.
Mesmo porque, argumenta-se, não havia provas contundentes da participação de José Dirceu como chefe da organização criminosa.
Uma das opiniões mais incisivas neste sentido vem do jornalista Paulo Moreira Leite que, acompanhou todo o julgamento e assim se posiciona:
O futuro dirá o que aconteceu hoje no Supremo Tribunal Federal. O primeiro cidadão brasileiro condenado por corrupção ativa no processo de repercussão nacional se chama José Dirceu de Oliveira. Foi líder estudantil em 1968, combateu a ditadura militar, teve um papel importante na organização da campanha pelas Diretas Já e foi um dos construtores do PT, partido que em 2010 conseguiu um terceiro mandato consecutivo para governar um país. Pela decisão, cumprirá um sexto da pena em regime fechado, em cela de presos comuns. O sigilo fiscal e bancário de Dirceu foi quebrado várias vezes. Nada se encontrou de irregular, nem de suspeito[19].
Trata-se de uma opinião marcante, compartilhada por algumas personalidades que entendem que a Teoria do Domínio de Fato, fugiu de suas essências históricas e foi adaptada pelo Supremo Tribunal Federal a fim de justificar a condenação do réu José Dirceu.
Para alguns, ficou a impressão de que se utilizou desta Teoria como um verdadeiro elemento de imputação de responsabilidade, afastando-se exatamente da correta aplicação da mesma, quer seja, distinguir autores de partícipes.
Sem provas capazes de condenar, recorreu-se à Teoria para afirmar ter havido responsabilidade, tão somente por indícios que havia a partir de uma denúncia que partiu de Roberto Jefferson.
Os que são contrários à decisão do Supremo em condenar José Dirceu, chegam a afirmar que, em determinados votos de alguns ministros, o termo “domínio do fato” foi utilizado como sinônimo de domínio pela posição.
Porém, pela Teoria, o chefe do grupo deve ser punido por comandar a ação criminosa, não pela posição hierárquica que ocupa.
De tal modo que, a mera posição hierárquica de chefia não pode ser interpretação direta de que, por ocupar tal posto, é responsável pelos crimes que seus subalternos venham a cometer.
Sua posição de líder não pode significar que tenha que dominar todos os acontecimentos da organização que comanda.
Admitir que a mera posição do chefe o condena seria o mesmo que admitir a responsabilidade objetiva em circunstâncias criminosas, o que é inadmissível no ordenamento jurídico penal comum.
Neste contexto, a Teoria explica que, ter o domínio do fato, significa que também deve participar ativamente, executar o plano delituoso, comandando que seja, mas com ânimo doloso e conduta comissiva.
Assim, completa-se a crítica de que houve verdadeira adequação da Teoria para condenar, afirmando-se que esta tese não dispensa, em hipótese alguma, a prova da culpa, nem a relativiza. Ela continua sendo um pressuposto de qualquer condenação.
Muito criticado foi o voto da ministra Rosa Weber, no seu pronunciamento, ao condenar José Dirceu, pela mesma ter utilizado a expressão “presunção relativa de autoria dos dirigentes”. É que indícios ou presunção de autoria não é capaz de, por si, sustentarem uma condenação.
A Teoria não deve ter sofrido alterações a fim de servir a uma necessidade premente de condenar quem quer que seja, na ação penal 470, ainda que existisse um clamor público legítimo de quem quer erradicar a corrupção de um país que sofre desta doença crônica.
A este respeito, posiciona-se Luís Greco:
A teoria do domínio do fato não pode ter sido a responsável pela condenação deste ou daquele réu. Se foi aplicada corretamente, ela terá punido menos e não mais do que com base na leitura tradicional de nosso Código Penal. Se foi aplicada incorretamente, as condenações não se fundaram nela, mas em teses que lhe usurparam o nome. Não se deve temer a teoria, corretamente compreendida e aplicada, e sim aquilo que, na melhor das hipóteses, é diletantismo e, na pior, verdadeiro embuste.[20]
6.5. Outra posição sobre a aplicação da Teoria do Domínio do Fato no julgamento da ação penal 470
Como descrito anteriormente, o julgamento da ação penal 470 originou grandes discussões sobre a condenação dos réus.
De tão polêmico o assunto, não existem somente aqueles que defendem que foi correta a aplicação da Teoria do Domínio do Fato e aqueles que são diametralmente contrários a esta.
Um exemplo é a opinião da professora Janaína Conceição Paschoal, livre docente de Direito Penal na USP.
Na opinião dela, não houve aplicação da Teoria do Domínio do Fato no caso do julgamento da ação penal 470.
Explicando seu pensamento, expõe:
E é possível fazer afirmação tão categórica porque, se tivesse sido aplicada tal teoria, o réu apontado como líder, no caso do mensalão, não teria sido condenado apenas por corrupção e por quadrilha; ele teria sido condenado por todos os crimes perpetrados pelo grupo, ou seja, por peculato, lavagem de dinheiro, corrupção ativa, corrupção passiva, evasão de divisas e gestão fraudulenta de instituição financeira. Isto porque, uma vez criada a estrutura, uma vez elaborada as engrenagens, postas as normas, presume-se que o líder tinha o controle sobre TODOS os atos criminosos.[21]
Também esta estudiosa afirma que a aplicação da Teoria do Domínio do Fato é garantidora de direitos dos réus e a mesma segue o art. 29 do Código Penal brasileiro, uma vez que o agente deve ser responsabilizado na medida de sua culpabilidade.
Para ela, apesar de não ter sido utilizada a Teoria referida na condenação dos réus do “mensalão”, e com a ressalva de que a mesma não concorda com todas as nuances das condenações, o Supremo Tribunal Federal respeitou, durante tal julgamento, todas as garantias individuais exigidas no ordenamento jurídico.
O que a professora argumenta finalmente é que não se pode confundir a Teoria do Domínio do Fato com a Teoria do Domínio da Organização.
6.6. Teoria do Domínio do Fato e Teoria do Domínio da Organização
Para a Teoria do Domínio do Fato, o chefe da organização criminosa responde pela atuação de qualquer membro que tenha agido por meio de coordenadas suas.
Isto ocorre simplesmente porque ele é detentor do domínio do fato delituoso. A Teoria do Domínio do Fato não pode ser confundida com a Teoria do Domínio da Organização.
Esta última, também foi idealizada por Claus Roxin e, segundo este, o líder de uma organização criminosa tem o domínio sobre todos os fatos executados pelos seus subalternos, com base em regras que ele mesmo criou, ainda que não tenha conhecimento de um ato específico.
Neste caso, o líder responderia pelos atos de quaisquer membros do grupo que viessem a seguir uma norma instituída por ele mesmo.
Os chefes, pela Teoria do Domínio da Organização, criariam um “Estado dentro do Estado”, com suas próprias regras, obviamente, transgressoras e exigiriam daqueles que participam com ele da organização criminosa, que as seguissem.
Nesta situação, sempre que um dos participantes do grupo cumprisse qualquer destas regras criminosas, poderia haver imputação do crime ao chefe do grupo, instantaneamente.
O próprio autor da Teoria do Domínio da Organização, posteriormente, arrependeu-se de sua tese.
Isto ocorreu, porque, apesar de a ter idealizado para tratar exclusivamente de organizações criminosas, viu a mesma ser utilizada para condenar presidentes de empresas lícitas em supostos crimes de sonegação, ambiental e contra o consumidor, decorrentes de condutas ilícitas de seus subalternos hierárquicos, sem que o mesmo sequer tivesse conhecimento do crime praticado.
Devido ao desvio na natureza de sua tese, Roxin chegou a afirmar o arrependimento pelo mau uso dela.
CONCLUSÃO
Conclui-se de todo o exposto, que a Teoria do Domínio do Fato, muito embora sempre presente como tópico de estudo de Direito Penal, dentro dos capítulos sobre “concurso de agentes”, tornou-se um tema muito discutido no Brasil, em virtude de sua citação por ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ação penal 470.
Tese tão somente conhecida nos meios jurídicos foi debatida publicamente, particularmente na mídia escrita, ora concebendo-a como base correta que condenou políticos envolvidos em corrupção, ora apontando-a como distorcida a fim de justificar uma condenação que de outro modo não ocorreria.
A população em geral passou a se familiarizar com o tema, buscando na informação vinculada, formar uma opinião.
A aplicação desta Teoria não deve ter tido o condão de, por si só, condenar qualquer réu do “mensalão”. Se assim foi, tal condenação foi errada, uma vez que a Teoria foi criada e, posteriormente, aplicada, como forma de se atingir os verdadeiros autores mediatos ou mandantes de crimes, mas nunca sem provas fartas de suas autorias. Serviu, ao longo de vários julgamentos internacionais, para imputar autoria na conduta dos réus, em cujos crimes estavam vinculados, afastando a idéia da simples participação.
Tal Teoria, como anteriormente explicitado, não apóia a idéia de uma mera presunção de conduta ligada a fato ilícito. De outro modo condena, por provas, aquele que está diretamente ligado ao domínio de toda a ação criminosa, alcançando-o e punindo-o certeiramente como autor.
De outro lado, se no julgamento da ação penal 470, a maioria dos ministros formou sua convicção pela condenação baseando-se em provas do envolvimento dos réus, e, somente para qualificar a autoria, lançou mão da Teoria do Domínio do Fato, correta está a condenação.
Diante da relevância nacional do julgamento da ação penal 470, visto tratar do maior escândalo de corrupção da República do Brasil, não é de se estranhar que a Teoria do Domínio do Fato foi aventada. Historicamente, ela já fez parte de julgamentos envolvendo réus que eram figuras iminentes dos Governos de nações estrangeiras envolvidos em esquemas criminosos, como outrora citado neste trabalho.
Contudo, é salutar que se discuta pormenorizadamente os fundamentos desta Teoria, como devem ter agido os ministros do Supremo Tribunal Federal, posto que o fulcro de sua aplicação não é o da condenação sem provas, nem a condenação por mera ocupação de posto de chefia em organização estatal hierárquica.
Em particular, a condenação de José Dirceu, afeta pela Teoria do Domínio do Fato, tem de ter ocorrido por sua participação inquestionável no esquema de corrupção e compra de votos, agindo aquele como chefe de toda a ação delituosa. Se assim o foi, condenou-se pela responsabilidade subjetiva da conduta deste réu que, dolosamente e, tendo todo o domínio do fato, deu sequência a ação, podendo tal situação tornar-se, pacificamente, paradigma para decisões de instâncias menores em todo o país.
No entanto, caso estejam corretos alguns juristas brasileiros em suas manifestações contrárias à correta aplicação da Teoria do Domínio do Fato, o seu uso, além de inaugurar uma nova postura jurisprudencial pela Suprema Corte, pode ter ensejado uma indesejável aproximação do Direito Penal com a responsabilidade objetiva, uma vez que alegam a condenação sem provas.
Trata-se de uma discussão em aberto, longe de qualquer consenso.
Este trabalho buscou apenas demonstrar a origem e fundamento da Teoria do Domínio do Fato, sua aplicação na ação penal 470, além dos posicionamentos a favor e contrários a esta, fomentando o debate democrático e salutar, que faz crescer e é o fundamento de todo saber jurídico.
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