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A corrupção na Administração Pública no Brasil

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Agenda 29/12/2003 às 00:00

SUMÁRIO: 1.Introdução; 2.Corrupção; 3.A corrupção na Administração Pública do Brasil, 3.1. A corrupção e outras condutas do mesmo "gênero" como forma , legitimação do Poder, 3.2. A corrupção especificamente na Administração Pública; 4.Anomia; 5.A aplicação do diagnóstico da anomia ao Brasil; 6.A atuação recente do Ministério Público tem proporcionado um abalo na cultura da corrupção; Conclusão ; Referência bibliográfica


RESUMO

Trata esta monografia da corrupção (em sentido amplo) na Administração Pública do Brasil, evidenciando que ela é em si um mal, e representa, talvez, uma das principais causas das desigualdades sociais e da miséria que afetam a maior parcela da população do Brasil. Sem deixar de reconhecer que a corrupção em um país está intimamente ligada a fatores como a cultura e a educação de seu povo, sendo inclusive, no Brasil, diagnosticável como um estado de anomia social, mostra, contudo, que ela sempre recua sua incidência quando o controle preventivo e repressivo é ampliado. Por fim, sustenta que, sem prejuízo de outros fatores, a atuação eficaz do Ministério Público tem proporcionado a diminuição da anomia social, no que diz respeito à política e à Administração Pública no Brasil.


1.Introdução

Não constitui novidade para nenhum brasileiro o fato de que quantias absurdas de dinheiro público são desperdiçadas e até desviadas, diariamente, nos três níveis da Administração Pública da Federação, mediante práticas corruptas como a simulação de dados ou documentos para "legalizar" despesas não realizadas ou realizadas a menor custo, clientelismo, relações pessoais, concussão, corrupção etc.

Todos concordam em que o País vive uma crise de moralidade e que, não fosse por isso, já estaríamos inseridos no "primeiro mundo". Infelizmente, todos os brasileiros reconhecem esse fato, mas não se dão conta de que também contribuem, individualmente, para isso, na medida em que o cometem pequenas ilegalidades e acham isso natural. Silva (1999, p.27) demonstra que todo brasileiro comete pequenas infrações – tal como avançar um sinal de trânsito – e quase sempre pretende ter alguma razão para que seu ato não seja considerado ilegal.

O fato é que essa cultura de corromper e ser corrompido, atualmente, atinge níveis alarmantes no âmbito das atividades da Administração Pública nos três níveis da Federação, podendo ser diagnosticada como uma das maiores, senão a maior, causa da pobreza e miséria. A opinião pública é, nessa matéria, uma fonte de constatação extremamente válida.

Mas que fatores contribuem para a elevação dos níveis de corrupção em uma sociedade? Essa é uma indagação que tem sido feita reiteradamente entre os estudiosos, mas não tem uma resposta uniforme, até porque a corrupção afeta também sociedades desenvolvidas. Há registros da existência de práticas de corrupção em todas as fases históricas, variando somente em grau extensão.

Para compreender esse fenômeno em razoável dimensão, é necessário recorrer-se ao auxílio da Sociologia, eis que, afinal de contas, como registra Martins (2000, p. 33), é esse o ramo do conhecimento humano que se envolve, desde o seu início, "nos debates entre classes sociais, nas disputas e nos antagonismos que ocorriam no interior da sociedade, buscando explicações que sempre contiveram intenções práticas, desejo de intervir no rumo da civilização, tanto para manter como para alterar os fundamentos que a impulsionam e a tornaram possível."

A corrupção, enquanto ato humano contrário à lei, interessa ao Direito, e este, enquanto fato social, interessa à Sociologia. Logo, especificamente, a matéria enfocada é tema pertinente à Sociologia do Direito, já que, conforme Oliveira (1984, p. 3), uma das funções que é designada para essa disciplina acadêmica é a de contribuir, com estudos empiricamente fundamentados, para uma melhor articulação do direito com a realidade social.

Neste trabalho monográfico de Sociologia Jurídica, intenta-se justificar que a tolerância dos brasileiros às práticas corruptivas chega a ser caracterizável como um estado de anomia social, sendo que a sociedade brasileira parece o estar paulatinamente superando nos últimos anos.


2.Corrupção

Bezerra (1995, p. 11), partindo da definição de corrupção manifestada pelo empresário Emílio Odebrecht, publicada no Jornal do Brasil de 24/05/1992, mostra como é difícil determinar, em certas relações e práticas sociais, um limite claro entre o que é lícito ou não. Indagado sobre o que considera corrupção, o citado entrevistado assim respondeu: "Eu acho que a sociedade toda é corrompida e ela corrompe. Hoje para o sujeito resolver alguma coisa, até para sair de uma fila do INPS, encontra seus artifícios de amizade, de um presente ou de um favor. Isso é considerado um processo de suborno. O suborno não é um problema de valor, é a relação estabelecida."

O referido autor (op. cit., p. 12-18) mostra como se confunde corrupção com "amizade", "presente", "favor" e como aquela é fundamentalmente entendida como "relação estabelecida", expondo ainda que esses meios pelos quais a corrupção se efetua constituem caminhos para a obtenção de benefícios.

A corrupção não é um fenômeno exclusivo de uma sociedade ou de um momento de seu "desenvolvimento", apesar de ser isso o que sugerem as teorias evolucionistas ou modernizantes. E não o é porque está presente nas mais distintas formações sociais, como registra Silva (1999, p. 31) e muitos outros autores em trabalhos recentes. O fenômeno tem dimensão legal, histórica e cultural que não pode ser negligenciada, de modo que sua avaliação está condicionada aos contextos a partir dos quais ela é realizada e a partir dos critérios adotados para elaborá-la. Além disso, não há um consenso entre as diferentes sociedades e entre os diversos grupos no interior de cada uma delas quanto a que ações especificamente são corruptas e corruptoras.

Os cientistas sociais que já analisaram o tema também apontam definições divergentes para a corrupção. Conforme anota, ainda, Bezerra (1995, p. 11-18), Heidenheimer, por exemplo, aponta três tipos básicos de definições mais freqüentemente utilizadas pelos estudiosos: a definição centrada no ofício público (definição legalista), a definição centrada no mercado e a definição centrada na idéia do bem público. Registra, mais, que também Gibbons, partindo da idéia de que o conceito de corrupção tem dimensões definíveis que são reconhecidas pelo público, argumenta que seria um quarto tipo a definição baseada na opinião pública.

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Pela definição legalista, existe corrupção quando há o desvio por parte de um funcionário público dos deveres formais do cargo devido à busca de recompensa para si ou para os outros; a definição centrada no mercado - que tem servido de base para as análises economicistas - considera corrupção a utilização do cargo público pelo seu ocupante como uma forma de maximizar a sua renda pessoal; e a definição centrada na idéia do bem público considera uma prática como corrupta quando o interesse comum, pensado como algo que tem existência e pode ser identificado, é violado em função da preocupação com ganhos particulares. Da definição baseada na opinião pública é exemplo aquela apresentada no início deste tópico, fornecida pelo empresário Emílio Odebrecht.

As preocupações das análises até agora empreendidas em torno da corrupção têm sido as seguintes: definir o conceito, a relação entre modernização e corrupção, a presença da corrupção nas sociedades desenvolvidas, as causas da corrupção, as suas conseqüências, as formas e os programas de contenção da corrupção; a corrupção nos países em desenvolvimento, nos países comunistas; corrupção e administração pública; a reação e os efeitos sociais produzidos pela corrupção, a percepção social da corrupção e a relação entre corrupção e escândalo.

Europeus e norte-americanos preocupam-se mais intensamente desse tema desde os anos sessenta, ao passo que, no Brasil, não tem ele recebido atenção de cunho científico por parte dos mais renomados cientistas sociais. Esse fato, aliás, é curioso, pois o tema da corrupção, no Brasil, está presente todo dia nos jornais e televisões, tendo sido causa até mesmo do afastamento de um Presidente da República, mediante impeachment.


3. A corrupção na Administração Pública do Brasil

3.1. A corrupção e outras condutas do mesmo "gênero" como forma de legitimação do Poder

Em interessantíssimo trabalho, Adeodato (1992, p. 207 – 242), abstraindo-se de classificações intermediárias dos países e contentando-se com a classificação em países desenvolvidos e países subdesenvolvidos, demonstra criteriosamente que estes últimos – entre os quais inclui o Brasil – são dotados de sistemas jurídicos alopoiéticos, de modo que a forma de legitimação legal-racional do poder jurídico-político funciona, mas para tanto depende da interferência de outros subsistemas sociais, com suas próprias estratégias de legitimação.

As explicações do citado professor em torno da noção de legitimação do poder, da legitimação racional-legal e algumas outras considerações serão adotadas para a fundamentação deste tópico.

A legitimação do poder consiste em impor-se decisões discursivamente, sem uso de violência. Modernamente, com a constituição de sociedades de massas, abrandaram-se os critérios externos, anteriores e superiores ao ordenamento jurídico positivo e efetivamente vigente, como instâncias de referência para o apoio das decisões. Antes, a dominação podia se dar através da sua continuidade histórica ou pelo carisma dos líderes, mas isso não é mais possível, pois as sociedades tornaram-se complexas e os conflitos variam muito em especificidade.

Atualmente, as sociedades exigem uma legitimação do tipo legal-racional. A legitimação legal-racional está relacionada com a positivação do direito, ou seja, com "a possibilidade de o direito ser estabelecido através de decisões e também por decisões ser substituído, transformando-se em instrumento de controle e modificação social capaz de influir no cotidiano dos cidadãos a níveis historicamente inusitados e de fazer com que a ordem social dependa de normas jurídicas emanadas em larga escala daqueles centros decisórios." [1]

Os sistemas jurídicos dos países desenvolvidos promovem sua própria autopiese, isto é, não necessitam da interferência de outros subsistemas sociais para desenvolverem suas estratégias de legitimação.

Os sistemas jurídicos dos países subdesenvolvidos não se legitimam legal-racionalmente, mas também não apresentam uma estrutura social simplificada a ponto de se legitimarem tradicional ou carismaticamente. Há, nessas sociedades, muitas características de sociedades desenvolvidas, razão pela qual são encontradiças formas de legitimação tanto jurídicas como não jurídicas do poder.

Dentre as formas de legitimação não jurídica do poder estariam as várias formas de corrupção, entendida esta em um sentido mais literal do que técnico. De tais formas de legitimação, citam-se: a) "a excepcionalidade da aplicabilidade", como forma de adotar como regra as exceções à regra legal, visando a beneficiar alguém ou algum grupo dominante; b) a "ficção da isonomia", adotando-se pesos e medidas diferentes na apliação da lei, para beneficiar pessoas ou grupos dominantes; c) "as boas relações", que consiste na troca de favores com ou entre os burocratas, às custas do erário; d) "o poder militar politizado", ou seja, a subversão do poder militar que, ao invés de servir à garantia da segurança contra ameaças externas, trabalha contra as "ameaças" internas, mediante um acerto entre as elites militares e civis (exemplo disso são os tratamentos diferenciados dos funcionários militares em relação aos civis); e) "o jeito" (ou jeitinho) que, segundo Motta e Alcadipani (1999, p.9), quem o concede não é incentivado por nenhum ganho monetário ou pecuniário, sendo levada a faze-lo por razões de ordem cultural e psicológica, historicamente enraizadas entre os brasileiros; f) "a corrupção" em sentido estrito, que é definida na legislação penal, englobando também a figura da concussão; g) o "clientelismo", que é uma forma de favorecer elites na distribuição de recursos públicos; h) as formas de procrastinação do feito, que são táticas de protelar a decisão, também muito difundidas entre os magistrados brasileiros; i) a própria ineficácia da lei (as pessoas tendem a afirmar que "umas pegam, outras não"); e j) a ficção da hierarquia no sistema oficial, muito comumente invocada para o pisoteio de direitos adquiridos.

Nos centros desenvolvidos, algumas dessas práticas não aparecem e outras aparecem como disfunções das sociedades diferenciadas, ao passo que em um país subdesenvolvido, elas podem agir justamente "como lubrificante da máquina decisória, aumentando sua eficiência e aliviando as instâncias estatais legalmente organizadas". Mas apesar de apontar as "estratégias extra-legais" como um "mal necessário" em países como o Brasil, o autor reconhece que elas, nos países carentes, "podem tanto auxiliar os órgãos estatais quanto atuar contra eles" e salienta que "ela não deve aparecer em público sem ser devidamente punida, do ponto de vista da legitimação do poder estatal." [2]

Como se nota, Adeodato concebe as práticas corruptas em países periféricos (incluindo nesse rol o Brasil) como estratégias extra-legais que auxiliam na decisão de conflitos e que tornam possível o exercício do poder sem o uso da força, o que lhes confere certo grau de legitimidade.

Não obstante tal concepção, deve ser salientado que o citado trabalho data do ano de 1992 e muita coisa se alterou até agora. Além disso, a corrupção na Administração Pública há muito ultrapassou limites toleráveis, tendo se tornado causa notória do empobrecimento econômico da nação.

3.2. A corrupção especificamente na Administração Pública

Embora haja acordo em que certas formas não convencionais de legitimação do poder não podem ser de pronto eliminadas em um país como o Brasil, não se pode mais aceitar tal argumento no campo da Administração Pública deste país.

No Brasil, conforme as palavras de Silva (1999, p. 27), a corrupção é dramática, podendo-se ilustrar essa afirmação apenas com o caso Collor e o escândalo do orçamento, para não citar outros tantos, mais recentes. A corrupção, que já era intensa durante a Ditadura e prosseguiu com a abertura democrática, parece que se institucionalizou no Governo Collor, prosseguiu nas gestões de Fernando Henrique e, ao que tudo indica, continua presentemente.

Alguns anos atrás, esse estado em que se encontra o Brasil pôde ser sentido de forma muito veemente, por toda a sociedade, quando o então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, editou Medida Provisória onde, praticamente, proibia que os Membros do Ministério Público intentassem ações de improbidade administrativa. E como não bastasse, ainda instituía, na própria lei da ação de improbidade, uma ação que poderia ser intentada pelo ímprobo contra o membro do Ministério Público (não contra o Estado, como orienta a Teoria da Responsabilidade Objetiva do Estado), para cobrar deste uma indenização de R$ 151.000,00, caso a ação de improbidade que lhe movesse o Ministério Público viesse a ser julgada improcedente pelo Poder Judiciário.

A referida medida só não foi convertida em lei devido ao empenho dos próprios membros do Ministério Público (salvo os Procuradores-Gerais, que em regra não têm de fato uma independência, eis que são escolhidos pelos Chefes de Executivos), os quais, pessoalmente e através de suas associações de classe, buscaram apoio na sociedade e em organizações externas como a Transparência Internacional. Devido à pressão sofrida, o referido Presidente da República voltou atrás, reeditando, sem a excrecência já apontada, a Medida Provisória em comento. Esse episódio é aqui citado porque é emblemático para ilustrar que a sociedade começa a sentir que pode deter a corrupção, mesmo a despeito da sua disseminação em todas as esferas do poder, e que o Ministério Público é uma ferramenta importante para esse fim.

Como se sabe, após o advento da Constituição Federal de 1988, o Ministério Público do Brasil passou a ser uma instituição soberana do Estado, dotada de autonomia funcional e administrativa, tendo como missão defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis (artigo 127 da Constituição do Brasil de 1988). Essa feição, associada aos poderes e instrumentos (como o inquérito civil e a ação civil pública) de que também lhe dotaram a Constituição e leis infraconstitucionais, elevou o Ministério Público à condição de controlador, por excelência, dos atos administrativos de todos os Poderes do Estado. Isso torna óbvio o motivo da inquietude dos "Donos do Poder", sobretudo porque, constantemente, investigações do Ministério Público conduzem aos palácios.

No entanto, ainda prevalece no Brasil a apatia. É possível que a classe política e burocrática do Brasil, em si, bem como a própria sociedade como um todo - esta, devido à sua conformidade com a corrupção -, estejam sofrendo de um mal que, em Sociologia, já foi diagnosticado como estado de anomia, tema do qual se tratará adiante.


4.Anomia

Merton (1968, p. 236 –237) afirma que a anomia, do ponto de vista sociológico, é uma ruptura na estrutura cultural, ocorrendo, particularmente, quando há uma disjunção aguda entre as normas e metas culturais e as capacidades socialmente estruturadas dos membros do grupo de agir de acordo com as primeiras. Quando a estrutura social e cultural estão mal integradas, a primeira exigindo um comportamento que a outra dificulta, há uma tendência rumo ao rompimento das normas ou ao seu completo desprezo.

Esse não é o único processo que favorece a condição social da anomia, de modo que as teorias e pesquisas têm buscado outras fontes padronizadas, geradoras de um alto grau de anomia.

Dá-se anomia aguda quando ocorre a deterioração e, no caso extremo, a desintegração dos sistemas de valor, o que resulta em profundas angústias.

Durkhein (1930, p. 188-221), analisando as causas que conduzem as pessoas a cometerem suicídio, ao incluir a anomia como uma das daquelas causas, fornece clara noção. Ele evidencia que cada sociedade, em um dado momento histórico, tem uma consciência moral daquilo que cabe a cada membro, em termos de serviços sociais, remuneração, conforto que convém à média dos trabalhadores de cada profissão. As diferentes funções são como que hierarquizadas na opinião pública, e certo coeficiente de bem-estar é atribuído a cada um segundo o lugar que ocupa na hierarquia.

Há uma certa maneira de viver considerada como o limite máximo ao qual possa aspirar, por exemplo, um operário, nos esforços que faz para melhorar a sua existência, bem como há um limite mínimo aquém do qual dificilmente se tolera que ele desça sem forte razão. Um e outro são diferentes para o trabalhador do campo, para o doméstico, para o funcionário etc. Com base nessa mesma lógica, a sociedade condenará o rico que vive como pobre, mas também o reprovará se procurar com excesso os requintes de luxo.

Existe, assim, uma verdadeira regulamentação que a consciência da sociedade impõe aos seus integrantes, no sentido de conformarem-se com as diferenças que existem entre eles, diferenças essas que podem ser tanto econômicas como também inatas, como a inteligência, o gosto, o valor científico, artístico, literário, industrial, a coragem, a destreza manual etc. Em regra, pois, a ordem coletiva é tida como equânime pela maioria das pessoas. O poder que a impõe é obedecido por respeito e não por medo.

Mas pode ocorrer que a sociedade seja perturbada, ou por uma crise dolorosa, ou por súbitas transformações, mesmo que felizes. Nessa ocasião, ela se sente provisoriamente desprovida daquele "freio" que limita a ação das pessoas, ou seja, aquela regulamentação que está na consciência de cada indivíduo.

Um exemplo marcante dado por Durkhein (op. cit., p. 188 – 189) é o de quando ocorrem catástrofes econômicas. Elas podem jogar indivíduos bruscamente em uma situação inferior à que ocupavam até então, impõe que eles restrinjam suas exigências, limitem-se em suas necessidades, enfim, que aprendam a se conter mais. Todos os frutos daquela consciência social refreadora de das condutas ficam perdidos no que se referem a tais pessoas, ou seja, elas têm que refazer sua educação moral. E não será de um momento para o outro que a sociedade as há de dobrar a essa nova vida e lhes ensinar a exercer sobre si mesmos essa contenção a mais a que não estão acostumados. Resulta disso que dificilmente conseguem se ajustar à condição imposta e a própria perspectiva dessa condição se lhes torna intolerável, advindo daí os sofrimentos que os desprendem de uma existência diminuída antes mesmo que a tenham experimentado.

O mesmo pode se dar quando ocorre brusco aumento de poder e riqueza. Bruscamente tornados ricos, os indivíduos já não sabem mais o que é possível ou o que não é, o que é justo ou injusto, que reivindicações não serão mais legítimas e quais as que ultrapassam a medida. Conseqüentemente, nada há mais a que não se tenha pretensões.

Nessas circunstâncias, as normas tradicionais perdem a sua autoridade e surge um estado de desregramento, ou seja, de anomia, o que se reforça pelo fato de que as paixões se tornam menos disciplinadas exatamente no momento em que teriam necessidade de uma disciplina mais rígida.

Os exemplos ministrados por Durkhein são para mostrar que a falta do "freio" que é representado pela moral social faz com que as pessoas queiram sempre mais e, quando não alcançam o objeto desejado, a frustração é muito maior, podendo-as conduzir até ao suicídio. Numa situação de normalidade, ao revés, nossa impotência - com a qual somos naturalmente conformados - nos obriga à moderação, a ela nos habituamos de uma maneira tal que não se torna muito doloroso se eventualmente falhamos em realizar uma meta a mais que desejávamos atingir. Prova disso são as estatísticas que revelam, nos países pobres, a singular imunidade das pessoas ao suicídio.

Mas Durkhein (op cit., p. 201) também constatou que há um setor da vida social no qual a anomia não é episódica: o mundo do comércio e da indústria. Segundo o referido autor, o progresso econômico libertou as relações sociais de qualquer regulamentação. Até recentemente, um sistema inteiro de poderes morais disciplinava tais relações: a religião, o poder temporal, as corporações de ofício.

A religião perdeu a maior parte do seu império e o poder governamental tornou-se mero instrumento e servidor da vida econômica, de modo que um empresário não encontra mais limites para a sua ganância. Após o advento da globalização da economia, a falta de limites é tanta que um se tornou possível a um comerciante ter como fregueses pessoas do mundo inteiro.

O desregramento axiológico nas atividades econômicas foi inevitavelmente assimilado nas atividades administrativas dos Estados e isso, somando-se a outros fatores, proporciona estado de anomia da população, ou seja, sentimento de que são normais e inevitáveis as práticas ilícitas na condução da Administração Pública.

Sobre o autor
Marco Aurélio Lustosa Caminha

Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região. Ex-Procurador Regional do Trabalho. Professor Associado de Direito na Universidade Federal do Piauí. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (Buenos Aires, Argentina). Doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMINHA, Marco Aurélio Lustosa. A corrupção na Administração Pública no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 176, 29 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4657. Acesso em: 25 nov. 2024.

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