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A corrupção na Administração Pública no Brasil

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Agenda 29/12/2003 às 00:00

5.A aplicação do diagnóstico da anomia ao setor público do Brasil

Em livro sobre o poder e a ética na sociedade brasileira, Oliveira (1995, p. 95 - 96), tratando da corrupção nos campos da Saúde e da Previdência Social, refere-se à corrupção no Brasil como algo que se difundiu mediante contágio.

O referido autor prossegue aquela afirmação, sentenciando que "o contágio hierárquico (passagem de hábitos de classes mais altas para classes mais baixas) leva pessoas humildes (diante da certeza da impunidade) a praticar fraudes."Ainda nas mesmas páginas Oliveira assinala também que "o contágio hierárquico ocorre quando pessoas de altas esferas sócio-políticas praticam atos que violam o sentimento de justiça da comunidade, mesmo que tais atos não sejam tipificados como delitos. Estes comportamentos atuam como fatores criminógenos, estimulando ações delituosas de pessoas de estratos inferiores, convencidos de que a impunidade pode ser a regra" (op. cit., p. 96).

De fato, a cultura da corrupção no Brasil parece que, se não foi nascida, pelo menos foi difundida pela classe dos "homens públicos". Políticos e administradores públicos desrespeitam a lei tranqüilamente, praticam sucessivos atos de improbidade, e a sociedade, historicamente, não os assistiu serem punidos nem na esfera administrativa nem na esfera judicial criminal ou civil.

Os custos da corrupção como tomada como um sistema são enormes. Um dos exemplos mais visíveis são as comissões que se pagam para a obtenção de algum movimento por parte daqueles que decidem sobre um negócio.

Klitgaard (1991, p. 118), salienta que pesquisas recentes – o que não é surpresa alguma para pessoas que vivem em países pobres – corroboram que a corrupção causa prejuízos, fazendo inclusive alusão a um estudo do Banco Mundial, na série Administração e Desenvolvimento, ainda em 1983.

Dentre outras constatações empíricas, o referido autor mostra que em grande parte do mundo em desenvolvimento a reação das pessoas a essa intensificação da corrupção se traduz em sentimentos de derrotismo e de desespero (op. cit., p. 115). Em seguida, fazendo alusão a uma conferência internacional das Nações Unidas, em 1989, Klitgaard afirma que os participantes concluíram que o livre mercado e a Democracia irão ajudar a reduzir a corrupção, mas, em curto prazo, a liberalização dos mercados parece estar relacionada com o crescimento, não com a diminuição, da corrupção; e que a competição democrática tem algumas vezes estimulado uma indisciplinada busca por rendas que parecem aos cidadãos até mais corruptas do que no prévio regime ditatorial (op. cit., p. 116).

Klitgaard, afinal, conclui que a corrupção é um problema de grau e extensão, pois está e tem variado no tempo e no espaço; que a experiência mostra que ela pode ser reduzida, se nunca eliminada; e que a maioria dos atos corruptos não são crimes de paixão, mas crime calculados. Funcionários públicos não são corruptos todo o tempo, mas em cada oportunidade, de modo que é razoável afirmar que um funcionário pratica uma ação corrupta quando, a seu juízo, ela lhe proporcionará mais benefícios do que custos. Assim, sugere o autor, entre outras medidas, que a punição mais severa pode ser útil para a diminuição da corrupção. A escolha da pena poderia ser adotada com olhos voltados para a "cultura de corrupção". Quando a corrupção é sistemática, cinismo e alienação são a regra. Assim, continua o autor, "o sucesso com campanhas anti-corrupção sugerem que a pena severa em um ´peixe grande` é um modo de começar a subverter aquela cultura. Esse ´peixe grande` deve ser um homem público importante, não devendo a punição denotar jogo político. Por esta razão, é melhor que o ´peixe grande` seja do próprio partido do Governo." [3]

A "cultura de corrupção" a que se refere Klitgaard coincide com o que aqui está sendo diagnosticado como estado de anomia em relação à atividade dos políticos, administradores públicos e servidores públicos em sentido amplo.

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Efetivamente, não há qualquer dúvida que para reduzir drasticamente a corrupção nada será mais eficiente do que asseverar os sistemas de controle e tornar mais rigorosas as punições, inclusive criando novos tipos penais para alcançar quaisquer atos de improbidade


6. A atuação recente do Ministério Público tem proporcionado abalo na cultura da corrupção

É indisfarçável que recentes investidas do Ministério Público, através de suas investigações e das ações penais e de improbidade ajuizadas contra pessoas até há pouco intocáveis, têm proporcionado certo ânimo na sociedade brasileira, ou seja, têm causado diminuição no grau de anomia acima diagnosticado.

Sabe-se que o Ministério Público é uma instituição que não foi concebida para vigiar o Estado, mas sim o cidadão, tendo, porém, acompanhado a evolução do Estado. No Estado Absoluto, o Ministério Público servia ao Rei, pois os interesses do Estado eram os interesses particulares do Soberano; no Estado Liberal, embora a instituição servisse aos interesses do Estado, já era, todavia, o fiscal da lei; afinal, no Moderno Estado Democrático de Direito, o Ministério Público passou a ser concebido como instituição de defesa da Sociedade, devendo atuar inclusive – e especialmente - contra o Estado, considerando-se que hoje este, com freqüência, violenta direitos fundamentais em nome da política econômica neoliberal.

No Brasil, somente com a criação da Ação Civil Pública, por meio da Lei nº 7.347/1985, foi que o Ministério Público passou a agir mais pela sociedade do que pelo Governo (Poder Executivo). Com a atual Constituição (05/10/1988), o Ministério Público saiu das amarras do Executivo e ganhou inúmeras atribuições, todas voltadas para a defesa do interesse social e do Estado Democrático.

Vianna (1999, p. 83) salienta que "o novo Ministério Público foi concebido como um personagem cujo ativismo institucional deve dedicar-se à defesa das leis e da sociedade, como nos casos dos interesses sociais e individuais indisponíveis, imprimindo à sua ação um caráter ético-pedagócico e induzindo a sociedade, com a liderança conferida pelo seu papel, a um maior envolvimento com a coisa pública."

Na primeira metade da década de noventa, os membros do Ministério Público do Brasil, graças a uma tremenda renovação nos seus quadros devido à completa democratização do acesso através de concurso público, assumiram, efetivamente, a consciência do papel atribuído à instituição pela Constituição Federal de 05/10/1988. Desde então, a sociedade brasileira tem assistido, eufórica, ao processamento judicial e até à efetiva condenação de políticos e administradores corruptos, assimilando afinal, graças ao Ministério Público e outras instituições como é o exemplo da imprensa, uma cultura de "maior envolvimento com a coisa pública".

As denúncias por corrupção, feitas pelo Ministério Público, em relação a vereadores, prefeitos, deputados estaduais, juízes, promotores e até de Deputados Federais e Senadores da República, logrando várias condenações criminais conforme tem divulgado diariamente a imprensa, constituem prova incontestável de que essa instituição está efetivamente cumprindo o seu papel de defender o patrimônio público e fomentar a cultura do zelo pela coisa pública.

O caso do juiz apelidado de "Lalau", processado e preso por apropriação de dinheiro destinado à construção do prédio do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, é um exemplo emblemático de que a corrupção não é mais vista como um fato normal pela sociedade brasileira. O referido juiz também perdeu sua aposentadoria, recentemente, por decisão do Tribunal Superior do Trabalho, após recurso do Ministério Público do Trabalho; o senador Luís Estevão perdeu o mandato, foi processado pelo Ministério Público e - embora solto rapidamente - saiu do Senado direto para a cadeia, por envolvimento com o juiz "Lalau" no citado desvio de verbas.

É claro que muito ainda tem que ser feito para o aperfeiçoamento do Ministério Público, pois, é sabido que essa instituição não está imune de também ser palco de falcatruas, notadamente na órbita estadual, onde os Governadores ainda mantém os Procuradores-Gerais mais suscetíveis a seu controle.

Mas a comprovação viva de que a sensação de certeza da impunidade está diminuindo inclusive no seio da classe de políticos e administradores foi a atitude do Presidente da República, antes citada, ao desistir da reedição de Medida Provisória pela qual impedia os Membros do Ministério Público de acionar, por improbidade, administradores públicos.

O episódio da edição de Medida Provisória que permitia aos corruptos processar os membros do Ministério Público coincidiu com o momento em que investigações do Ministério Público Federal conduziam para figuras do alto escalão do Governo Federal. A sociedade brasileira interpretou a atitude do Presidente como uma indisfarçável providência casuística destinada a proteger ocupantes de cargos do alto escalão do Governo Federal. Por outro lado, a desistência de inserir na Medida Provisória a proteção aos corruptos constituiu uma demonstração patente de que o próprio Presidente havia sentido que a sociedade já não acha mais normal que esquemas de corrupção, propinas e subornos funcionem como fatores "legitimadores" do exercício do poder.


Conclusão

No moderno Estado democrático de direito, nada melhor que o controle, tanto preventivo como repressivo, para combater a corrupção. A anomia aguda que tem proporcionado o alastramento da corrupção no Brasil tende a diminuir na medida em que aumentam os casos de punição dos corruptos e corruptores.

O controle preventivo e repressivo necessita, todavia, partir de órgão que detenha legitimidade conferida pelo corpo social, ou seja, este deve ser um órgão que atue de acordo com os anseios sociais. Atualmente, contudo, quase todos os sistemas de controle da atividade administrativa do Estado, ou seja, os sistemas de "controle da legitimidade do Poder através do controle dos atos administrativos no seu mais amplo sentido", como se refere Brüning (1989, p.21), estão aos pés do Poder Executivo ou são controláveis indiretamente por este. Cita-se, por exemplo, no âmbito federal, quanto à primeira hipótese, a Secretaria da Receita Federal, o Sistema Integrado da Administração Financeira (SIAF), a Advocacia Geral do Estado e a Polícia Federal; quanto à segunda, o Tribunal de Contas da União.

Isso leva a crer que, dentre os meios de controle estatal dos atos da Administração no Brasil, o mais legítimo é o realizado pelo Ministério Público, uma vez que este, além de manter teórica e concretamente – salvo certas imperfeições que se deve lutar a fim de eliminá-las – independência em relação aos três Poderes, tem hoje a maioria dos seus membros imunes à contaminação pela cultura da corrupção, graças, sobretudo, ao fato de serem arrebanhados mediante o processo seletivo e altamente democrático do concurso público.

Por fim, o apoio que a sociedade tem dado às investidas do Ministério Público contra os corruptos (apoio que se torna evidente pela atenção dispensada ao tema pela mídia) revela que o povo retoma uma cultura de moralização da Administração Pública, uma consciência dos critérios morais mínimos que espera sejam observados pelos seus representantes no Poder e gestores da coisa pública. Essa consciência, o povo brasileiro retoma apoiada, grandemente, no Ministério Público, do mesmo modo que este reciprocamente se fortifica para agir no respaldo que recebe daquele.


Referência bibliográfica

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Notas

01. Cf. N. LUHMANN apud Adeodato (1992, p. 211)

02. Adeodato (1992, p. 235).

03. op. cit., p. 123.

Sobre o autor
Marco Aurélio Lustosa Caminha

Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região. Ex-Procurador Regional do Trabalho. Professor Associado de Direito na Universidade Federal do Piauí. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (Buenos Aires, Argentina). Doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMINHA, Marco Aurélio Lustosa. A corrupção na Administração Pública no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 176, 29 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4657. Acesso em: 22 nov. 2024.

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