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Consentimento da vítima nos crimes sexuais

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Agenda 24/01/2004 às 00:00

IV – Análise crítica das diferentes teorias apresentadas.

Interpretar é dar sentido. Não é a descoberta do unívoco ou correto significado, mas um processo de produção de sentido. Para tanto, convém deixar claro, desde o início, que nenhum intérprete pode pretender estar livre de pré-compreensões como quer o cânone da autonomia ou neutralidade hermenêutica do objeto. Até porque, como acentua Karl Larenz, o texto nada diz a quem já não entenda alguma coisa daquilo de que ele trate. [7]

À luz desse contexto, uma doutrina, por melhor que seja ela, não pode se pretender absoluta, estando, sempre, sujeita a críticas. Ademais, um intérprete do século XXI deve estar imbuído de pré-compreensões diferentes das do legislador/aplicador de 1940. Portanto, a tarefa aqui imposta não é a de descobrir o sentido que o legislador quis dar ao artigo 224, a, em 1940, mas os possíveis sentidos que tal dispositivo pode ter hoje.

Partindo disso, vislumbra-se que a tese defensora da natureza absoluta da presunção não pode prevalecer. Em pleno século XXI, no auge da era da informação, em que somos bombardeados com variadas notícias em um curto espaço de tempo, sem que haja qualquer filtro nesse tipo de "serviço" prestado, não se pode olvidar que existem inúmeros adolescentes com a malícia necessária a consentir na prática de uma relação sexual, muitas vezes com jovens que regulam idade com as "vítimas" (quinze, dezesseis anos, por exemplo).

O ordenamento jurídico deve guardar coerência entre suas normas, buscando, ao máximo, a solução de conflitos sociais e não a criação deles onde, até então, não existiam. Nesse sentido, não se pode pretender que um casal de namorados de quatorze anos, por exemplo, que decida manter relações sexuais esteja praticando ato infracional: ele, estupro com violência ficta e ela, caso haja qualquer ato diverso da conjunção carnal, atentado violento ao pudor. Essa interpretação absoluta pode, se levada a extremos, provocar situações esdrúxulas como a apresentada.

Acrescente-se, ainda, que depois do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90) ficou ainda mais insustentável o posicionamento de que a presunção de violência deve ser ficta. [8] Isso porque, à luz do mencionado estatuto, somente o consentimento da criança (menor de doze anos) é absolutamente inválido, enquanto o consenso do adolescente (entre doze e dezoito anos de idade) é válido até prova em contrário. Ora, seria um dissenso admitir-se que, para uma determinada lei que tem como desiderato exclusivo a proteção do menor, o consentimento do adolescente entre doze e quatorze anos é válido e não o é para o Código Penal. Há aí um nítido confronto de normas, que não pode haver em um ordenamento jurídico, que deve prezar pela coerência de seus institutos. Tal conflito, então, deve ser resolvido aplicando-se o princípio da temporariedade, segundo o qual lei posterior revoga lei anterior naquilo em que forem divergentes (nesse sentido o art. 2º, § 1º da Lei de Introdução ao Código Civil). Ademais, mesmo que se argumente que tal conflito é apenas aparente — na medida em que o Código Penal poderia ser entendido como uma lei especial em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente —, acredito que, conforme ressaltado supra, a interpretação consentânea com a Lei 8.069/90 é a que melhor se amolda aos dias atuais, devendo prevalecer (ou melhor, entre a presunção absoluta e sua relativização pela mencionada lei, deve prevalecer essa última, não obstante acreditar, como se verá adiante, que a melhor exegese não é nenhuma das duas).

Portanto, "aceitar (rousseaunianamente) sem nenhum questionamento a presunção de violência prevista no art. 224 do CP, particularmente no que concerne ao menor de catorze anos, significa ignorar a realidade do mundo que nos circunda. É privilegiar a forma sobre a substância. (...) Se isso [a consciência sexual precoce] representa uma evolução ou uma involução é algo que depende das idiossincrasias e posturas éticas de cada um. O juiz, no entanto, não está autorizado a julgar conflitos consoante suas idiossincrasias". [9]

No que se refere à tese que defende a relativização da presunção de violência, em que pese ser uma nítida evolução em relação à anterior, alguns pontos são absolutamente criticáveis. O principal deles, a meu ver, refere-se a que tal posicionamento continua reconhecendo a presunção (e, nesse sentido, a crítica também vale à teoria anterior), ou seja, continua atribuindo objetivamente uma responsabilidade criminal a um agente. Nessa esteira de raciocínio, o indivíduo que praticou relações sexuais com o consentimento da (o) menor será responsabilizado, salvo se ela (e), comprovadamente, tiver uma vida pregressa devassa, ou que ela tenha algum tipo de experiência sexual, etc. Acredito ser nítida a afronta aos princípios que regem o Direito Penal hodierno, especialmente os da inexistência de crime sem culpa e o da ofensividade (cf. item IV supra).

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Um outro ponto que julgo passível de críticas é o que toca à nítida inversão do ônus da prova: o agente é que teria que provar sua inocência (provando, v.g., que a (o) menor já possuía uma vida promíscua), ao invés do Ministério Público ter que provar a culpa do acusado, demonstrando que ele teria se valido de um consentimento viciado da menor, ou que, de fato, teria havido o uso de violência real. Enfim, há um nítido choque entre a presunção de inocência (o acusado é considerado culpado até que prove o contrário!) e a presunção relativa de violência. Não resta dúvida que, diante da colisão entre uma norma de hierarquia constitucional (o princípio da presunção de inocência e seu corolário lógico do ônus probatório do órgão acusador encontram-se no art. 5º, LVII, da Constituição Federal) e uma norma prevista na legislação infraconstitucional (a presunção de violência está prevista no art. 224 do Código Penal), deve prevalecer a norma de natureza constitucional.

Por fim, uma crítica mais específica que se faz, como se as citadas não fossem mais do que suficiente ao desprestígio da tese que sustenta a presunção relativa, é a que se refere ao moralismo dos argumentos que pretendem criticar o absolutismo da presunção (que já é, em si, eminentemente moralista). Nesse sentido, é conclusiva a lição de Luiz Flávio Gomes: "No que concerne à presunção afinada com a idade da vítima, a tentativa de encontrar ‘abertura’ na lei (sem renegá-la) tem tangenciado o insustentável, mesmo porque se procura afastar uma presunção claramente moralista com concepções da mesma natureza. Vítima prostituta ou de comportamento reprovável não mereceria a tutela penal. Revela, ademais, desprezo total pelo bem jurídico tutelado (liberdade sexual), culminando por ‘criar’ um requisito típico (honestidade) de forma absolutamente inconstitucional". [10]

Por fim, cumpre analisar criticamente a última das teorias, que é a que defende a inconstitucionalidade de toda e qualquer presunção em Direito Penal. Estou convencido que, juridicamente, essa tese é a que melhor se coaduna com os princípios hodiernos do Direito, respeitando e dando ênfase a princípios como o da presunção de inocência, o da lesividade e o da culpabilidade em detrimento de uma presunção legal de violência. Nesse contexto, vislumbro, patentemente, a inconstitucionalidade do disposto no artigo 224 do Código Penal, porquanto, como já indicado, viola a presunção de inocência, na medida em que se presume, que se imagina, uma parte da conduta do agente — sem a qual ela não seria típica —, sendo ele, então, culpado — até que prove o contrário — de uma coisa que sequer ele fez, mas, ao revés, se presumiu. Tal artigo viola, ainda, o princípio da ofensividade porque o bem jurídico tutelado é a liberdade sexual e, na medida em que a vítima consente validamente com a prática do ato sexual, não há, então, lesão a qualquer bem jurídico. Por fim, afronta o princípio da culpabilidade, vez que, se o agente não cumpriu aquilo que se encontra descrito no tipo penal, presumindo-se uma "parte" de sua conduta para que possa haver a consunção, há uma nítida hipótese de responsabilidade sem culpa.

Entretanto, em que pese a nítida possibilidade de contradição interpretativa, acredito que uma tal exegese constitucional do dispositivo (art. 224 do Código Penal) pode levar a uma outra situação que vislumbro ser, também, inconstitucional: o menor que não pudesse consentir validamente ficaria desprotegido caso "consentisse" na prática de atos sexuais sem violência. Ora, não há dúvida que a Constituição de 1988 guardou um grande destaque à tutela do menor, haja vista o Capítulo VII da Constituição, que estabelece uma série de garantias às crianças e adolescentes. Nessa mesma linha de raciocínio, estabeleceu o Constituinte Originário no art. 227, § 4º, da Constituição: "A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente".

Chegamos, então, a um paradoxo: caso se declare a presunção de violência, da maneira como ela se encontra disposta na lei, inconstitucional — o que, como demonstrado acima, é concernente com as idéias inspiradoras do moderno Direito Penal — levar-se-ia a uma outra violação da Constituição, qual seja, não tutelar o menor de idade quando fosse abusado sexualmente. [11]

Para solucionar esse paradoxo e dar máxima efetividade à Constituição, propomos uma "nova" exegese dos dispositivos, como se verá adiante.


V – Uma "nova" proposta.

Antes de adentrarmos no mérito da solução do impasse a que se chegou no item anterior, cumpre perpassar pelos métodos, pelo caminho hermenêutico trilhado até que se chegue a uma conclusão solucionadora.

Com Heidegger, aprendemos que todo questionamento é uma procura, que retira do procurado a sua direção prévia. [12] Assim, o primeiro cuidado do hermeneuta contemporâneo consiste na procura da finalidade social da lei no seu todo, pois é o fim que permite penetrar na estrutura de suas significações particulares. Finalidade é sempre um valor, cuja atualização ou preservação o legislador tencionou garantir e, como valor, só pode ser objeto de um processo compreensivo que se realiza através do confronto das partes com o todo e vice-versa, iluminado-se e esclarecendo-se reciprocamente. Não é, em absoluto, diverso o que se dá na hipótese analisada: à luz dos princípios ordenadores do sistema jurídico, analisamos o que está disposto no art. 224 do Código Penal e na Constituição Federal, para, então, chegarmos a possíveis conclusões.

Feitas essas considerações, é possível pôr em realce alguns pontos fundamentais da interpretação jurídica, que nos orientarão sobremaneira na verificação da (in)constitucionalidade do dispositivo em exame e na busca de uma solução que atenda aos requisitos constitucionais: essa (a interpretação) é sempre resultado de uma junção entre sua natureza teleológica e sua consistência axiológica, com o intuito de estruturar operadores de concretização válidos para aplicação no caso concreto. O trabalho do intérprete, portanto, é de construção de natureza sistemático-axiológica, não só por captar o valor da norma (que, por sua vez, depende da pré-compreensão do intérprete sobre tal valor) extraindo-lhe um dos possíveis sentidos, mas também porque se deve ter presentes os preceitos de todo o ordenamento. Ademais, encontramos em Hesse — em um método denominado hermenêutico-concretizador — a lição de que se deve buscar a aproximação da Constituição com a realidade constitucional, através de uma concretização da norma a partir da situação histórica concreta. É um processo de interpretação-aplicação que visa ao caso concreto, porém, com primazia da norma. Em outros termos, não é possível imaginar uma interpretação útil que não seja para solucionar um caso específico, o que significa dizer que a norma só ganha sentido válido quando confrontada com as peculiaridades do caso que visa a resolver.

Ressalte-se, ainda, que a hermenêutica constitucional apresenta uma série de particularidades, o que não a torna, no entanto, uma disciplina autônoma, não abandonando os fundamentos de interpretação da lei em geral. A primeira delas e a mais importante para o objetivo desse trabalho, apontada por Lenio Streck, está contida no fato de que o texto constitucional deve se auto-sustentar, enquanto os demais textos normativos, de cunho infraconstitucional, devem ser interpretados em conformidade com aquele. [13]

Acrescente-se, ainda, que, embora a tarefa interpretativa não seja apenas um ato de conhecimento no qual a norma simplesmente se "revela" [14], mas, antes, é um ato de vontade, não sendo dado ao intérprete desconsiderar o marco normativo imposto, seja pela norma de nível superior, seja pelos princípios informadores do próprio sistema em que a norma se encontra, ao extrair a decisão para o caso concreto.

Por fim, deve-se ter em mente que, à luz de uma doutrina moderna, a linguagem não pode ser vista, nunca, como um elemento lateral no processo interpretativo. Ela é, sempre, parte integrante de qualquer processo de conhecimento, porque "ser que pode ser conhecido é linguagem" [15] e o Direito, enquanto linguagem (palavra), é interpretável, é plurívoco. Nessa linha de raciocínio, interpretar significa, tão-somente, atribuir um sentido dentre os possíveis. Assim, a idéia de que o texto legal/constitucional comporta uma única exegese, devendo buscar-se, a qualquer custo, a mens legis ou a mens legislatoris, afigura-se desarrazoada, inverídica e, quiçá, impossível.

Resumindo todas essas importantes lições acerca do modo "moderno" de interpretar as normas e a Constituição, chega-se às seguintes conclusões para a análise da presunção de violência nos crimes sexuais:

1.Todo processo interpretativo deve levar em conta o sistema jurídico como um todo, dando especial realce à Constituição enquanto fonte de todas as demais normas, buscando nela a validade para os textos infraconstitucionais;

2.A tarefa hermenêutica deve, sempre, levar em conta o caráter axiológico-teleológico das normas, em um processo em que o intérprete, necessariamente, utiliza suas pré-compreensões, alcançando — porquanto as normas são eminentemente plurívocas — um dentre os possíveis significados;

3.Só se obtém uma hermenêutica válida, útil, quando se pretende solucionar um caso específico, com todas as suas particularidades, com todas as nuances históricas bem delimitadas, ganhando, nesse contexto, destaque a figura do juiz, pois deve avaliar os possíveis sentidos da norma diante de cada hipótese real. Até porque, quando as leis são criadas, o são com o fito de solucionar, regulamentar, conflitos sociais. Assim, só se atinge tal objetivo quando da efetiva solução de tais "problemas".

Tendo como ponto de partida tais esclarecimentos e conclusões, acredito que a única forma de solucionar o paradoxo do sistema de presunções de violência vigente frente à Constituição, sem que se deixe desamparado o menor, é permitindo ao juiz analisar especificamente cada caso, verificando objetivamente se houve, ou não, consentimento válido da (o) menor, ou se houve abuso da incapacidade dela (e).

Perceba que, nesse processo, não deve o juiz ter em conta elementos moralistas, éticos ou religiosos (pois esses não são os princípios que decorrem de um Estado laico), analisando, tão-somente, se houve, ou não, consentimento válido: se houve, a conduta do agente é atípica, na medida em que não viola nenhum bem jurídico; se não houve, deve haver a aplicação da sanção penal, não por uma presunção, mas fazendo uma interpretação do artigo 224, a, à luz dos princípios norteadores do sistema penal e do artigo 227, § 4º da Constituição. Nessa análise, o juiz deve, com base nas provas trazidas aos autos pelo Ministério Público e, por laudos técnicos, aferir a maturidade e consciência da vítima para a prática de atos sexuais, para, enfim, prolatar a decisão.

Constata-se, então, uma inconstitucionalidade parcial sem redução de texto: o artigo 224 do Código Penal é inconstitucional enquanto presume a violência, ou seja, ele não presta à tipificação ampliada dos crimes sexuais; contudo, serve para garantir a tutela do menor, evitando-se a inconstitucionalidade de deixar o menor desamparado frente a uma conduta abusiva sexualmente.

Assim, caberia ao Ministério Público ou à parte, em prevalecendo tal tese, comprovar que houve a violência real ou mesmo a nulidade do consentimento (por ser a vítima incapaz de compreender as conseqüências de suas condutas), acabando-se, portanto, com a violação ao princípio da presunção de inocência e seu corolário lógico, qual seja, o ônus probatório daquele que acusa.

Por fim, não foi de todo diferente, apesar de percorridos caminhos completamente diversos, a conclusão a que Luiz Flávio Gomes chegou em seu livro "Presunção de Violência nos Crimes Sexuais". Acredito, entretanto, que não é preciso a "ginástica exegética" proposta por aquele autor: segundo ele, dever-se-ia reconhecer a inconstitucionalidade do caput do artigo 224 do Código Penal, retirando-o, assim, da esfera jurídica, para se valer das alíneas como meio de tutela contra o abuso sexual. A conclusão é a mesma, mas na medida em que se retira o caput do mencionado dispositivo, perde-se, a meu ver, completamente a razão de ser das alíneas. Ademais, uma análise do próprio texto constitucional (art. 227, § 4º) nos indica a tutela sexual do menor, não sendo necessária a exclusão de qualquer dispositivo para a proteção do menor: basta que se faça, como pretendido neste trabalho, uma análise do dispositivo vigente à luz dos dispositivos constitucionais, constatando a sua invalidade para presumir violência, mas a regulamentação da necessária tutela do menor.

Sobre o autor
Gustavo Teixeira Nacarath

Acadêmico do curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora- MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NACARATH, Gustavo Teixeira. Consentimento da vítima nos crimes sexuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 202, 24 jan. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4718. Acesso em: 16 nov. 2024.

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